Gabrielly Hannaly

12 de jun de 20215 min

TRINTA E UM DIAS - Dia em Comum

Capitulo Parte III
 
ALICE

Dia em comum - O garoto pálido de olhos canelados

A primeira vez que o encontrei não me dei conta de que o encontro e a percepção dele são coisas totalmente diferentes. Talvez, se tivesse percebido antes, poderia ao menos usufruir de uma clara e boa lembrança, mas o engraçado sobre os acontecimentos é que além de inesperados eles são únicos. São bens dotados de tal singularidade que não é possível recriá-los. Talvez sejam como as obras de Da Vinci: uma vez pintadas por aquele par de mãos, não há nenhuma outra que possa imitar-lhe os traços.

Encontrei com aquele par de olhos caídos e perdidos tantas vezes, corri atrás de suas costas, intrigada por aquele olhar, desfrutei de uma liberdade concedida pelo rastro que aqueles olhos deixaram, ao acaso, em um semáforo e agora que a perda da visão era algo certo, daria céus e terras para apenas poder, novamente, olhar para ele, de frente e sem ser de longe, tocar sua face ressentida e imaginar como seriam suas reações. Mas senti o gosto amargo do humor negro da vida, quando já desacreditada de tudo… Topei, pela última vez, enxerguei aquele olhar, daquele garoto, agora, sentado no banco da praça.

Avistei-o de longe, tentei deixar meus passos mais firmes ou coisa parecida. Nesse dia, usava cores quentes apenas para sentir-me mais viva, mais aquecida, como se meu derradeiro final fosse uma peça desconhecida, no entanto, senti como se cada um daqueles dias fossem revividos, cada momento em que o encontrei, ao acaso, em que meus olhos o flagraram. Era patético como sempre estiveram analisando-o em meu mais bom humor, todas as vezes em que a gente se cruzou eu era o céu, o sol a brisa morna, porém agora… Agora eu estava tudo quanto fosse oposto, sou a lua, sou a noite, sou fria e isso me assusta. Caminho com livros que não irei ler, mas passo a confiança de quem os irá devorar por inteiro. Sou uma farsa, uma garota fraude que, pela última vez, vai ver os olhos canela… Nesse momento quis tudo, menos ser ela, a garota que viu tanto e ainda assim foi tão cega. Pois é, a ironia do termo é que a partir de amanhã ele será inteiramente literal.

Tentei transparecer confiança por debaixo daqueles óculos que ainda não havia me acostumado, fui rumo ao banco ao lado e sentei-me de um jeito imponente, olhei para ele e senti um calor no peito, porque aquele olhar de sempre, aquele mesmo par de olhos confusos trouxe-me conforto, saber que em meio a tantas mudanças ainda seria capaz de contemplar pela última vez o que eu passei dias aleatórios buscando… A diferença é que antes não tinha capacidade para alcançar e agora estava ali, bem do meu lado, sentado, ao toque da mão com os dedos esticados, senti que ele também me encarava e então, comecei a falar, foi por impulso e não consegui mais parar:

— Já se apaixonou por um livro?

Garoto de olhos canelados, já amou incessantemente algo que sabia que perderia no dia seguinte? Já tentou abraçar o mundo com braços curtos? Queria saber o que se passa em sua cabeça, o motivo desse seu olhar atordoado, queria que eles se suavizassem e ao mesmo tempo queria que continuassem assim… Porque é abominável saber que não poderei especular sobre um olhar novo e é mais abominável ainda saber que perderei a chance se desejar que não mude nunca esse seu jeito de olhar.

Esses pensamentos estavam a mil em minha cabeça. Queria impetuosamente romper meus lábios como as águas rompem um dique frágil, ainda assim me contive apenas na primeira pergunta, sobre livros e paixões, não falarei sobre coisas inalcançáveis.

Então ele me olhou, um pouco sério como se me analisasse, encarando meus pés com alguma frequência, será que algo ali o incomodava? Os lábios dele eram vermelhos, como se fossem constantemente apertados, talvez fosse uma mania, apertar os lábios enquanto se pensa em algo. Suas orelhas estavam um pouquinho vermelhas, suas mãos com os dedos entrelaçados e seu rosto aparentava estar ressecado, ele tinha um jeito de analisar as coisas, como se estivesse atentando-se aos detalhes mais ínfimos para uma descrição detalhada. Encarei seus olhos, seus lábios até que a resposta rompesse por eles.

E então ele balbuciou algo sobre os meus livros e eu como sempre deixei-me ser guiada por meus sentimentos:

— As pessoas só se apaixonam por aquilo que não mais podem ter…

E continuei despejando minhas lamúrias sobre ele, espreitando cada reação sua aos meus argumentos desarticulados. Para ele, tudo aquilo deveria ser muito incoerente, para ele, deveria ser apenas a garota louca da praça que fala mais que tudo.

"Sinto muito, sinto muito não se puder explicar detalhadamente, mas o tempo corre e o fluxo da corrente me leva com ela, leva uma coisa preciosa de mim, algo que não terei mais, algo que deveria ter valorizado mais. Entretanto não tenho culpa, se o valor prescinde da perda e a regra que domina a vida é a oferta e a da procura… Talvez seja estranho. Se o amanhã existir para você, talvez encontre-me novamente e quem sabe não se surpreenda tanto por estar diferente, talvez você entenda que o tempo traz suas mudanças, que para alguns essas mudanças podem ser o fim e para outros um novo começo. Não sei qual deles eu sou e muito menos saberei até vivenciar minha perda, mas por hora, estranho, quero que aprenda a apreciar o presente e que entenda que o futuro é algo que… Por mais piegas que possa parecer… A poucos pertence".

Ele analisava meus livros enquanto eu falava e pensava turbilhões. Tinha uma expressão confusa, como alguém que não entende, mas busca entender… Ele me olhava como se estivesse tentando ler uma obra em outra língua, como se soubesse que não entenderia nada, mas que mesmo assim, continuava.

Nesse momento, senti um ímpeto e uma grande vontade de chorar. Alice, sua tola, mesmo alguém como ele, alguém com os olhos perdidos como os dele, buscava um meio de entender, um jeito de transpor a barreira do desconhecido, enquanto eu estava ali, lamentando-me, reclamando sobre o tempo e suas lições nada prazerosas… Eu estava morrendo de medo, mesmo assim, olhando de novo para ele, entendi uma coisa fundamental, então parei de falar. Deixei o silêncio pairar e, antes que as lágrimas da comoção sobreviessem ao meu olhar, levantei-me e deixei vazio aquele lugar.

"Sinto muito estranho, sinto muito por não explicar essa profusão de respostas para perguntas que nem ao menos foram-me feitas. Contudo, se não fosse esse meu impulso, não teria vislumbrado em seus olhos canelados a vontade de tentar por outros meios. Mesmo sem entender, continuou ouvindo, analisando, buscando, ao invés de deixar minhas palavras morrerem no ar sob o seu silêncio. Você falou-me com a complacência, com um olhar de quem ainda tenta… E é isso, amanhã será minha vez, de tentar por outros meios, de refazer meu próprio início".

Alice Brandão.


Sobre a Autora:

Uma autora independente que gosta de escrever tanto quanto de respirar, participou de varias antologias e foi uma das dez finalistas no concurso "cuenta me un cuento" de 2020. Também participou da antologia anjos caidos da dar books, onde o livro esta na amazon com o conto intitulado: "o testemunho de Delphin". Foi selecionada para o a antologia Teleportados com o conto: " Por de trás da pálpebras", no entanto não participou na formação do livro. Uma escritora inovadora, aspirante a poeta e muito concentrada em sempre dar o seu melhor, buscando uma oportunidade de provar o valor de suas palavras.


Revisão: Tatiana Iegoroff

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