Livro II
A Batalha de Khaza-an Lori
Capítulo IV – O destino da viagem
A rotina de viagem era simples: caminhavam pela manhã, paravam quando o Sol estava a pino, procuravam algum lugar para acampar e após a refeição, Faldang ensinava algumas técnicas de espada e falava sobre a história de Harion.
─ Quando chegaremos ao Templo?
─ Starek, ou o que sobrou dela está a dois dias de viagem. Nesse tempo quero lhe ensinar uma coisa em especial, dentre tudo que já conversamos.
Rash não falou nada, mas ficou pensando em qual seria o assunto especial já que nesses últimos dias foram tantas informações sobre o passado de Harion e revelações sobre a Religião que não encontrava nada que pudesse ter importância maior. Faldang olhou o rapaz e imaginou que sentimentos poderiam rondar naquela hora a mente do seu companheiro de jornada. O mago respirou fundo e falou:
─ Você já notou que pessoas aumentam o volume da voz quando querem se impor? Ou que todos se viram na direção da fonte de algum ruído estranho? Quando acontece algum barulho desconhecido um medo nos assola? Já percebeu o quanto o som de um rugido de animal feroz nos apavora?
─ Sim, mas não entendo onde isso pode chegar. Não vejo relação.
─ Tudo é som. Em tempos muito remotos a música era usada apenas e somente em rituais religiosos. Não se sabe como, mas, os Antigos usavam a música para conjurar espíritos, em rituais brancos ou negros, para todas as ações de suas vidas. Nunca se rompeu o véu que separa os dois mundos. A música era a ponte, era a forma de comunicação. Feiticeiros quando pronunciavam as palavras de seus feitiços, precisavam que elas estivessem em determinados tons para que a vibrações das notas de seus cantos forçassem a união dos mundos. Então, o mundo material e o espiritual se fundiam. Em um instante abria-se o véu da realidade entre esses mundos. Doenças eram curadas, matéria surgia espontaneamente, tudo era possível. A força da magia de qualquer feitiço era oriunda da música proferia pelos que esculpiam o ar com os sons de seus feitiços.
─ Isso está nos livros de Marek Lar? – Pergunta Rash, processando tudo que ouviu e tentando localizar de onde poderiam vir esses ensinamentos. – E é por isso que a música é proibida?
─ Não. Isso é mais antigo. Marek Lar só escreveu sobre como devemos viver e conviver. São ensinamentos mais relacionados com a matéria que com o espírito. Esses saberes são muito mais antigos, de uma era onde o Homem possuía uma sensibilidade maior e conseguia sentir o poder que fluía no som.
─ Acho isso muito bobo. Contos para tolos ao redor da fogueira. – Rash disse, virando-se para a fogueira que ambos fizeram antes do início da conversa. Procurou um graveto para mexer no fogo e sentou-se próximo.
Prevendo essa reação de Rash, Faldang começou a sussurrar um canto antigo, em uma língua desconhecida por Rash que sentiu os pelos de sua nuca eriçar e o fez se virar para o mago. Uma leve brisa se formou entre os dois e o brilho do fogo se intensificou. Rash sentiu medo a principio, mas sem que quisesse, fechou os olhos e começou a sentir um formigamento no peito. Como se um vento fosse soprado diretamente em seu corpo. Quando um calor tomou conta de suas mãos, abriu os olhos e quase gritou quando viu uma chama azul sair das palmas de suas mãos. O canto de Faldang agora era mais alto em volume e as palavras eram pronunciadas mais rapidamente. As chamas azuis ampliaram-se. Rash levantou e sem governar seus movimentos abriu os braços formando uma cruz com os membros e deixou a força que saia de seu corpo assumir o controle.
Em um átimo de tempo que não se poderia mesurar o canto cessou. Gradualmente a chama azul apagou e Rash olhou para Faldang sem ser capaz de falar. Faldang calmamente, como quem acabara de fazer um ato de extrema facilidade, disse:
─ Ainda acha histórias de tolos? ─ Faldang claramente enxergava na face de Rash o deslumbrante e radiante fascínio que a magia revelada lhe causou. E Rash nem imaginava o que realmente significava aquilo que saia de suas mãos e lhe tomava o corpo.
─ Você é capaz de conjurar feitiços? De onde brota sua força?—Pergunto o rapaz, ávido por respostas.
─ Não fiz nada além de liberar a força de sua Aura. O poder é seu. Eu apenas libertei as amarras que o represavam dentro de você. – Faldang queria que o rapaz aos poucos entendesse o poder que estava conhecendo naquele momento. Poder corrompe facilmente pessoas de pouca fibra moral. Ele queria que seu aluno não se encantasse erroneamente com as benesses que poderes como aquele davam aos seus possuidores. A força que imanava de seu eu era uma antiga e elementar energia que homens usaram tanto para o mal que deuses antigos nublaram os olhos deles para que ninguém mais voltasse a usar para benefício próprio ou para dominam e escravizar os mais fracos. Como acontecia em eras antigas. Perdido nesses pensamentos Faldang quase não ouviu a pergunta de Rash:
─ Mas como? Eu nunca fui iniciado em sociedade ou guildas de magos! Não posso ter poder algum. – Em sua mente o rapaz tinha um misto de sensações: dúvidas, assombro, fascínio.
─ Esse engano é proposital. É isso que todos os sacerdotes do Culto a Lutrien Hal querem que você e todos continuem pensando. – Faldang não perdia a oportunidade de sempre lembrar a qualquer um que ouvisse que o Culto era o veneno que aos poucos matava a humanidade.
─ Todos tem esse poder?
─ Sim. Alguns mais, outros menos. Mas no futuro te ensinarei mais sobre os segredos da Aura. Ainda temos muito que aprender. Também não sou um mestre nessas artes. Vou ensinar a primeira lição de um mago: Controle. Em breve lhe ensinarei a imbuir armas e objetos, mas agora suas armas serão suas mãos.
E assim, com o interesse desperto no rapaz e notando que havia um brilho novo em seus olhos de iniciado nas artes da magia, Faldang seguia com mais confiança em lhe passar os conhecimentos místicos ancestrais.
A noite entrou em seu fim. O sol já raiava, e raiava também as mãos de Rash. O mago ensinou-lhe como concentrar a força da Aura nos punhos e criar lanças, espadas e escudos de energia. Mas Rash ainda não conseguia fazê-los durar muito, não tinha a concentração necessária, e ficava tão animado com a materialização de um escudo qualquer que Faldang com um dedo conseguia partir a arma de defesa. Porém, a pouca resistência de suas armas conjuradas não diminuía a alegria de Rash ao criar cada uma delas. Faldang percebia que a forma e força de cada arma melhoravam a cada tentativa.
Quando se aproximava o meio-dia, Rash conjurou uma lança, e, ao atirá-la em uma grande rocha, penetrou com tanta facilidade que ambos acharam que a lança tinha se destruído ao bater na face da pedra. Ficaram mais impressionados ainda, quando notaram que a rocha possuía um furo e a lança ainda estava perfeita e deitada a poucos metros da pedra.
─ Sua lança percorreu a trajetória como se a pedra não estivesse no caminho. – Faldang assustou-se com a capacidade adquirida em tão pouco treinamento, mas não quis demonstrar toda sua admiração para que o rapaz não criasse muita confiança nos poderes recém-descobertos, tentou pelo menos. Em seus anos de vida viu muitos morrerem por se acharem prontos para enfrentar perigos ou tarefas que ainda não eram capazes de terminar.
─ Acho que foi sorte de principiante. – Rash não se vangloriava a toa. Não compreendia o poder que tentava dominar e não acreditava que poderia fazer novamente uma lança tão afiada.
─ Você deve sempre se lembrar de como pronunciou e entoou cantos de conjuração. Senão cada vez será uma arma diferente. Em épocas remotas havia registros de tudo. Livros Sagrados ditados por Deuses aos profetas que habitavam montanhas altíssimas. Ainda há no Oriente, templos e monastérios onde são encontrados monges enclausurados que estudam e praticam os ensinamentos desses livros.
─ São grimórios? – Rash já ouvira falar de livros que continham feitiços.
─ Não. Grimórios são compêndios de feitiços e encantamentos de armas objetos, plantas medicinais, imbuição, dentre outras coisas. No Oriente há mestres que se dedicam a praticar alta magia. São monges que se consagram à vida contemplativa e de orações. Passam a vida estudando pergaminhos, livros, e fazendo o que os deuses ditaram em eras primitivas.
─ São veneradores dos mesmos deuses dos Povos do Norte? – Havia uma infinidade de povos, religiões, cultos, deuses... Rash não compreendia as diferenças. Infelizmente não era capaz de reconhecer as doutrinas em função da destruição dos livros e de todos os registros escritos que Harion ou as cidades-irmãs possuíam. Faldang sabia disso, mas se reservava a somente responder as dúvidas conforme iam aparecendo. Não queria fazer da mente de Rash um caldeirão de informações. As doses de conhecimento deveriam ser conforme o ritmo do rapaz.
─ Não. As crenças de alguns povos são tão antigas que não temos como criticar sua veracidade. Algumas seguem apenas como tradição e não tem comprovações materiais. Nunca nenhum dos Nove Deuses dos Nortenhos desceu de seus montes divinos para fazer milagres ou atender os veneradores. No fim, isso são lendas apenas.
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