– Sinto medo em você, Silas.
– Não sabia que você era uma ave de rapina ou um felino predador? Essa habilidade não é das feiticeiras. Ou algo me passou despercebido?
– Não tente brincar com o óbvio. – Cecília perscrutava cada milímetro da face do mago. Poderoso mago. Mas turrão como rocha. – Eu sinto sim. Não sei seus motivos. Prefiro não sabê-los para não fazer julgamento moral de suas atitudes. Mas já é hora de agir. Olha o que se passou aqui nas últimas horas. Olhe em volta. Veja as oscilações na matéria. O reino etéreo está em constante guerra. Acima de nós há deuses poderosos, mas adormecidos. Estamos por nossa conta. Não me venho com desculpas. Nossa tarefa sempre foi vigiar. Agora temos que agir. A passividade nos matará.
– Já é tarde demais. Você ouviu o que ele disse. Uma espada mágica não será suficiente.
– Por isso vim aqui. Para que recrute os magos que ainda existem e estão escondidos. – finalmente Antônio voltara à normalidade. Seus pensamentos desanuviavam.
– Não. Não veio. Você andava pela Orla do Reino para encontrar magos – ou um em especial, eu no caso - e chamar os soldados contra Bento, tudo apenas um disfarce. Você foi torturado, embutiram uma memória falsa e com certeza quando lhe déssemos o Livro dos Feitiços de Marla, um portal se abriria e você seria sugado, sem contar o demônio que lhe possuía e estava adormecido. Eu vi o estrago que fizeram em sua mente. Você era uma isca, uma armadilha. Deram-lhe o aço arcano como moeda de troca. Eles devem ter pensado que assim você ganharia nossa confiança... Ou a minha especificamente.
– Mas os deuses adormecidos mudaram os rumos dos planos deles. Você sabe que essa intuição, e tudo que nos envolve está sob os olhos do plano etéreo. – disse Cecília, alimentando o argumento de que não podiam se omitir frente às ameaças.
– Cecília. Bento sabe que não entregaríamos o livro sob qualquer motivo. A ameaça é real. Mas... Você me confunde. Eu digo que não é problema meu. Que a fé os salve. Você fala dos deuses poderosos adormecidos que nos olham. Não entendo. De certa maneira concorda comigo, mas depois... E quando a sentir medo. Não é racional enfrentar uma guerra que não vai ganhar... – Cecília interrompe:
– Haverá um despertar quando a hora chegar. Já presenciamos isso.
– Cecília, isso foi há dois mil anos.
– Então, é isso. Sua fé se dissipou. Ou você acha que os dorminhocos acordarão e nos salvarão e essa certeza justifica sua omissão?
– Isso é um recurso dos bardos. No momento mais difícil, na hora mais escura, aparecem os salvadores. Na vida real não é assim. Lembra-se do cheiro de sangue? Dos gritos? Dos pedaços de corpos apodrecidos nos campos de batalhas? Das almas presas aos corpos deixados ao relento, sem rituais fúnebres? Não quero ser testemunha dessas atrocidades novamente. Não lutarei guerra alguma. Se tiver que fazer alguma coisa será diferente. Não brandirei espada, nem conclamarei meus confrades.
– Então o que? – Cecília era incisiva.
– Investigar. Entender o que houve. E ver se realmente Clarice nos traiu.
– Você está escondendo alguma coisa...
– E você nunca vai deixar de sentir ou ser vidente?
– Não se você me contar seus planos. Eu sei que Clarice não é seu alvo. Se for investigar alguma coisa, é o seu Mestre.
– Mestres não torturam nem fazem feitiços que embutem memórias. Se algo assim foi feito, ele não é mais mestre de nada. Clarice agora é uma desertora da Mística Ordem. Somos os Seis. A escalada de profecias é grande. Vou romper esse fluxo de maldades.
– Silas... – Cecília mais calma, disse:
– Você não é mais o ferreiro que esconde a própria verdade e nem eu a mãe viúva que cuida da filha. Você é o maior de sua família. Eu sou de outra família da Mística Ordem. Apenas um membro comum. Minha irmã era do mesmo grau que você. Ela desonrou nosso nome e tradição. Se você não a punir, não sei se eu posso. E sei que está vivendo o mesmo dilema com seu dever em punir seu antigo mestre. Mas não podemos nos omitir.
– Eu sei de nossos deveres...
Houve um silêncio.
Antônio que permanecera quieto durante a conversa, rompeu o silêncio que pairava sobre o trio:
– Silas. Cecília. Eu sei que minha presença aqui desencadeou todo essa situação. Não há nada que eu possa fazer? Cecília, docemente responde:
– Você é apenas mais uma vítima. Uma peça que podem descartar. Devemos desculpas sinceras a você, pelas nossas atitudes e pelo que fizeram antes de lhe enviarem para cá.
– Não se desculpe. Quero ajudar. Ainda não sei como, mas quero. Vocês falaram que sou um guardião, mas não tenho lembranças claras de meu passado. Só das torturas que revivi na dimensão mental que Silas criara. Antes do exorcismo, também não era dono de minhas vontades. – percebendo que ainda não estava recuperado dos efeitos do que lhe ocorrera, Antônio foi gradualmente baixando a voz e os olhos em total desapontamento com sua situação. Silas, notando a entrega do forasteiro, resolve intervir – as palavras de Cecília provocaram algum efeito em Silas que franziu os cantos dos olhos – e, falou com uma voz que há muito tempo não era tão doce:
– Nós lhe devemos desculpas. Eu, principalmente. – disse colocando a mão no ombro de Antônio – Por não perceber o que havia em sua mente. Nem me atentei a possessão. Devo estar muito sem sintonia com o etéreo... Mas isso não alivia a minha culpa. Eu errei desde o começo. Ao sentir a magia em você, eu deveria ter tomado outras atitudes e não simplesmente declarar guerra. Vou lhe ajudar a recuperar suas verdadeiras memórias. Prometo. E Cecília! – disse olhando fixamente nos olhos da feiticeira. Você tem razão. Não posso fugir às minhas responsabilidades. Não digo com isso que é de bom grado ou que minha alma está inteira nessa demanda. É só o cumprimento de uma tarefa. Tarefa que não pode ser delegada. Tenho que assumir minhas designações.
Cecília respirou aliviada. Silas era muitas coisas. Entre elas, um homem justo. Que buscava o que era certo. Ver Antônio como vítima de Bento e o desamparo que demonstrava ao declarar que queria ajudar deve ter mudado o coração do mago.
Silas era dono de uma dualidade de difícil leitura. Como poderia um homem que vivia em uma forja, martelando aço, rompendo as fibras do metal; moldando armas, ferramentas; rústico, duro, áspero; ao mesmo tempo carregar em si uma empatia, indulgência e caridade irretocáveis? Apenas quem o conhecia intimamente poderia entender as mudanças de atitudes e ações. Silas era como um mar imenso. Um dia calmo outro tempestuoso. Entretanto, essas mudanças eram repentinas como relâmpagos. Não produzia sinais que iria mudar de humor. Apenas mudava. De imediato.
– Antônio. Não caminhei muito com você em sua mente porque você sofreu muito com as lembranças das torturas. Elas eram muito vivas e recentes. Vou destravar sua mente com outros meios. Menos dolorosos. Porém, mais lentos. E enquanto isso. Finalmente traçaremos as estratégias. Já adianto que um delas é não levantar armas.
– Então vamos preparar um lugar para Antônio ficar. Acho que ele não deve voltar, por enquanto, para a pousada. Eu preciso voltar para casa e cuidar de Anna.
– Ela não precisa de muita ajuda. – disse com um sorriso de cumplicidade, Silas.
– Sim. Mas não custa ficar de olho nela.
Sem entender nada, Antônio apenas concorda.
– Ficarei aqui essa noite? Amarrado? Imobilizado?
– Não, meu caro. Agora você não é mais um perigo. Vou cuidar de você. Melhor dizendo: cuidarei de sua mente.
Despediram-se. Cecília partiu de volta à Aldeia. Silas preparou um chá, dessa vez sem ervas mágicas, e mostrou um lugar onde Antônio poderia dormir. A casa não era grande, nem preparada para hospedar visitantes, mas nas condições em que se encontrava, o mínimo de acolhimento era uma dádiva para Antônio.
De Forasteiro para Hóspede. Sentia-se pequeno e acuado, mas Cecília e Silas emanavam uma bondade que contagiava e acalentava o coração.
Antônio, caso esse fosse mesmo seu nome, recostou-se na pequena cama e dormiu. Desejando que nenhum sonho lhe perturbasse a noite. Tinha a impressão que em breve não teria noite tranquila. Alguma coisa lhe dizia para aproveitar a calmaria.
Comments