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A Gargalhada

Joseph encontrou aquela fotografia no fundo de uma gaveta que não abria há tempos. Entre tantas outras que habitavam seu ateliê, aquela traduzia um momento fundamental da sua história.

Naquele final de tarde de outono, em Nantes, ele caminhava pela Rua Quai de Malakoff, seguro que aquele seria o último dia de sua vida. Acabara de sair do hospital Marcel Saupin e andava depressa e desnorteado pela cidade. Nenhum pensamento prolongava-se em sua mente. Sentido algum se estabelecia. Qualquer explicação não poderia convencê-lo a aceitar aquela ausência. Estava só.

Desistiu de viver exatamente no momento que o médico lhe informou que sua esposa morrera no parto. Ele sempre pensou que faria este caminho antes dela, com sessenta anos, não haveria possibilidade nos seus prognósticos dela partir primeiro. Porém, ela se foi e deixou um presente para desnorteá-lo.

Naquela tormenta, após meia hora os passos foram moderando-se e ele parou no meio da ponte de Tbilissi, acima do rio Erdre, próximo ao restaurante La Passarelli de Marcel. Estava decidido a desistir do que lhe restara de vida. Antes de sair do hospital não encontrou coragem para ver a filha que Marie concebera. A morte cortou seus afetos e cegou suas esperanças.

Não havia, para ele, motivo algum para resistir, e se lhe faltava coragem para viver lhe sobrava para morrer. Enquanto os pensamentos se debatiam dentro da sua cabeça e a tristeza rasgava seus órgãos, ele não conseguia elaborar uma estratégia para o suicídio: subir na ponte, jogar-se no rio, não se esforçar para nadar, contar com a sorte e com o peso da mochila para afundar.

Neste estado de transe foi subitamente acordado pelo som de uma gargalhada infantil. O riso vinha de uma menina sentada na varanda do restaurante La Passarille de Marcel, ao lado de um senhor. Poderiam ser avô e neta, filha e pai ou apenas amigos. O que lhe afetou foi a cumplicidade dos dois, a intimidade daquele olhar compartilhado. A gargalhada da garota foi como um tiro em sua testa, ele morreu antes de se jogar da ponte e ressuscitou imediatamente com a visão dos dois.

Três tempos se estabeleceram na sua frente: passado, presente e futuro; a vida, a morte e o amor. Sacou da bolsa sua Laica e, no instante decisivo, automaticamente registrou aquela cena. Gravou seu futuro através da imagem daqueles dois seres.

Guardou a fotografia na gaveta ao ouvir Anne chamá-lo. Respirou fundo, grato por aquela doce gargalhada e sorriu por a fotografia o salvar.

 

Sobre a Autora:

Artista visual, escritora, doutoranda e mestra pelo PPGAV, EBA-UFBA. Licenciatura Plena em Artes Visuais pelo Centro Universitário de Belas Artes de São Paulo. Artista visual e escritora dedica-se a pesquisa artístico-acadêmica tendo como poética a representação e simulação do corpo no campo do erotismo e pornografia e os processos de criação poética e suas singularidades. Atua nas linguagens do desenho, literatura, vídeo-arte, pintura, fotografia, instalação, ação artística e intervenção urbana. Realizou três exposições individuais e participou de inúmeras coletivas no Brasil e exterior.

Publicou entre 2017 e 2020 poemas e crônicas em antologias diversas. Professora de Arte na educação básica no município de Salvador/BA.



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Facebook: @jo.felix.7

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