A fórmula do escritor onisciente e das personagens sem “vida própria” tornou-se desgastada no final do século 19. Este estreitamento formal começou a ser descartado, àquela época, por autores do porte de Dostoievski, Maupassand, Tolstoi e Flaubert, para citar apenas alguns. No Brasil, Machado de Assis, com Dom Casmurro, foi quem primeiro rompeu com os moldes ditados pelas correntes seguidoras do Realismo-Naturalismo, tornando-se ele, o precursor do que viria a ser chamado de moderno romance brasileiro.
Os romances, que até então eram narrados em 3ª pessoa, passaram a ser narrados em 1ª pessoa, dando as suas personagens a possibilidade de adquirirem “pensamentos próprios” e de expressarem seus sentimentos e opiniões sobre o ambiente em que se encontram inseridas.
A maioria das obras surgidas durante a corrente Modernista não visava mais somente o mero entretenimento de seus leitores – objetivo maior do romance romântico – nem tampouco buscavam atingir o cunho excessivamente reformista da escola Realista-Naturalista. Objetivavam, sim, o aprofundamento do “eu” humano, dando ao leitor uma visão dura, porém extremamente verdadeira do mundo que o cercava, correspondendo isto à mundividência macroscópica e total do universo que os romancistas de então tinham como meta. Uma constante procura pela verossimilhança e consequentemente uma maior aproximação entre o enredo e a vida real, eram também fatores preponderantes aos que se aventuraram escrever sob a ótica Modernista.
E foi bebendo desta fonte, que Graciliano Ramos escreveu Caetés, em 1933. Romance inaugural de uma carreira literária impecável, há que se perdoar a imaturidade do autor quando da feitura desta obra específica. Livro de linguagem simples, porém enxuta, Caetés nada mais foi que um laboratório, um experimento de Graciliano para seus romances posteriores, estes sim, verdadeiras obras-primas da Literatura brasileira, como bem afirma Antônio Cândido, na introdução de seu Ficção e Confissão: “O romancista doloroso e profundo de São Bernardo e Angústia ainda é, aqui, praticante aliás magistral de fórmulas básicas da técnica do romance”[1].
Pouco afeito que sempre foi às descrições intermináveis, já em Caetés Graciliano Ramos nos dá provas de sua imensa capacidade de muito dizer em um curtíssimo número de linhas. Econômico, sim, mas nem por isso pobre em qualidades literárias, o autor brinda seus leitores com descrições que, apesar de extremamente breves, são profundamente ricas em conteúdo, movimento e plástica. Um excelente exemplo disto é a descrição que o autor faz de Marta Varejão, moça rica e de coração livre para amar, com a qual João Valério, em determinado ponto do romance, pensou em se casar. Note-se o uso sequencial de adjetivos, um artifício muito usado por Graciliano em todos os seus romances para descrever de forma rápida, porém bastante eficiente, as personagens por ele criadas:
“Realmente não era feia, com aquele rostinho moreno, grandes olhos pretos, boca vermelha de beiços carnudos, cabelos tenebrosos, mãos de mulher que vive a rezar. E alta, airosa, simpática, sim senhor, ótima fêmea.” [2]
De excessiva simplicidade só mesmo a estrutura fechada, com começo, meio e fim bem delineados e as passagens desnecessariamente óbvias que vez por outra surgem no corpo de Caetés. Fora isto, o romance inicial de Graciliano já permite ao leitor mais apurado, perceber os primeiros traços da genialidade que este alagoano traria à luz em suas obras posteriores.
O livro discorre sobre uma história de amor proibido que se passa na pequena cidade de Palmeira dos Índios, interior do estado de Alagoas, nos anos trinta do século 20. Nela, João Valério, guarda-livros de uma empresa de comércio, apaixona-se por Luísa Teixeira, a jovem esposa de seu chefe, Adrião Teixeira, homem abastado, mas já de idade avançada e saúde um tanto quanto imperfeita. A trama se desenrola sem muitas novidades até seu desfecho final, quando Adrião, ao receber uma carta anônima, descobre ter sido traído por sua mulher e por aquele que tratava como um filho desde que passou a trabalhar em seu comércio. O suicídio do velho e o arrependimento tardio de Luísa, que não mais pretende levar adiante seu relacionamento com João Valério, dão tintas finais ao romance.
Wilson Martins, na sua excelente apreciação crítica inserida na 13ª edição de Caetés, comenta que Graciliano Ramos, ao escrever este romance, expôs toda a influência absorvida em Eça de Queirós, mais especificamente das leituras que fez d’A Ilustre Casa de Ramires e d’O Primo Basílio. Muito bem observado, mas, sem querer sermos pretensiosos, cremos ter o crítico esquecido de acrescentar ao seu comentário, a gritante semelhança que há entre Caetés e Dom Casmurro, de Machado de Assis. O triângulo amoroso entre João Valério, Luísa e Adrião em nada difere do existente entre Escobar, Capitu e Bentinho, à exceção de que, ao final da história, Escobar não se suicida, nem Luísa dá à luz um filho bastardo. Fica pois, claro, ter Graciliano lido e intertextualizado Machado de Assis, fato que em nada desabona sua obra de estreia no campo da ficção literária.
Contudo, nem só de pequenos defeitos e algumas redundâncias é feito Caetés. Seu corpus já abriga traços da genialidade de Graciliano Ramos que, como já dissemos, só viria à tona em seus futuros romances. Uma prova cabal disso é o metaromance inserido ao longo de toda a trama. O Caetés que João Valério tenta a duras penas terminar, nada mais é que um intratexto do livro que o abriga, levando o leitor mais atento a constantemente formular perguntas do tipo: Seria João Valério o próprio Graciliano? Teria sido Luísa uma grande paixão proibida do autor? É Caetés uma autobiografia? Teria Graciliano Ramos lido A Normalista, de Adolfo Caminha? Quem sabe?!
Outra prova do excelente uso que o autor faz das técnicas que, em 1969, a crítica búlgaro-francesa Júlia Kristeva, partindo das noções de Dialogismo definidas pelos formalistas russos Mikhail Backtin e Tinianov, fundamentaria e donominaria como Técnicas de Intertextualidade, é a clara alusão que o autor João Valério faz a Iracema, de José de Alencar. Vejamos:
Daí passei para Iracema, da Iracema para o meu romance, que ia naufragando com os restos do bergatim de D. Pêro. Não era mal tentar salvá-lo, agora que, com o armazém fechado, eu podia dispor da tarde inteira. Decidi-me antes que o entusiasmo esfriasse. [3]
E João Valério – suponha-se Graciliano Ramos - vai mais fundo ainda em suas intertextualizações. Tendo pouco conhecimento da história de nossa colonização e sem muita imaginação para compor as personagens de seu romance, João Valério utiliza-se das pessoas que o cercam cotidianamente para gerar os selvagens que habitam seu Caetés:
Continuei suando, escrevi dez tiras salpicadas de maracajás, igaçabas, penas de araras, cestas, redes de caroá, jiraus, cabaças, arcos e tacapes. Dei pedaços de Adrião Teixeira ao pajé: o beiço caído, a perna claudicante, os olhos embaçados; para completá-lo emprestei-lhe as orelhas de padre Atanásio...
Sou incapaz de saber o que se passa na alma de um antropófago. Dos indivíduos das minhas relações o que tem parecença moral com o antropófago é o Miranda, mas o Miranda é inteligente, não serve para caeté. Conheço também o Pedro Antônio e o Balbino, índios. Moram aqui ao pé da cidade, na Cafurna, onde aldeia deles. São dois pobres degenerados, bebem como raposa e não comem gente. O que me convinham eram canibais autênticos e disso já não há.
Em falta melhor, aproveitei os remanescentes dos brutos da Cafurna, tirei-lhes os farrapos com que se cobrem, embebedei-os, besuntei-os à pressa, agucei-lhes os dentes incisivos. Matei alguns brancos, pendurei-os em galhos de árvores e esfolei-os com a ajuda do Balbino. Depois entreguei-os às velhas, entre as quais meti a D. Engrácia, nua e medonha, toda listrada de preto, os seios bambos, os cabelos em desordem, suja e de pés de pato. [4]
O Caetés de Graciliano Ramos é assim: o romance inaugural de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Redundante, cercado de influências claras, raso, um tanto instável e escrito por um homem “tão prevenido e mesmo tão desconfiado”, como bem afirmou o poeta Augusto Frederico Schmidt. Porém, se é de bom tom levar-se em conta a imaturidade de qualquer autor que se inicia no mundo literário, o que se dizer do primeiro livro de um escritor do porte de Graciliano Ramos?
De qualquer forma, Caetés é uma obra agradável de se ler. De enredo leve e já possuindo pinceladas de uma ampla visão sociológica da realidade e do profundo questionamento crítico-social que caracterizaram e permearam os romances nascidos durante a geração de 30, Caetés é leitura indispensável aos que desejam penetrar no fantástico mundo ficcional do alagoano Graciliano Ramos, a fim de desvendarem um dos mais vastos universos literários de nosso País.
[1] CÂNDIDO. Antônio. Ficção e Confissão. SP, Editora 3D. sem data, p.12.
[2] RAMOS, Graciliano. Caetés. SP, Editora Record, 13ª edição, 1977, p. 36.
[3] RAMOS, Graciliano. Op. Cit. p. 99.
[4] RAMOS, Graciliano. Id. Ib. p.100.
Sobre o Autor:
Túlio Monteiro – Escritor, biógrafo, historiador e crítico literário. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Grau de Especialização em Literatura e Investigação Literária, também pela Universidade Federal do Ceará – UFC, com a monografia: Intertextualidade e Fluxo da Consciência na Obra de Graciliano Ramos.
Membro efetivo da Academia Internacional de Literatura Brasileira - AILB - Cadeira de número 246 - Com sede em Nova York - Estados Unidos da América.
Autor dos livros
Agosto em Plenilúnio – Poesias – 1995 – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará.
Lopes Filho e a Padaria Espiritual – 2000 – Biografia – Coleção Terra Bárbara – Edições Demócrito Rocha – Jornal O Povo.
Sinhá D'Amora, Primeira-Dama das Artes Plásticas do Brasil – Biografia – 2002 – Coleção Terra Bárbara – Edições Demócrito Rocha – Jornal O Povo.
Antologia de Contos Cearenses – 2004 – Organizador – Coleção Terra da Luz – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará – UFC, em parceria com a Fundação de Esportes, Cultura e Turismo de Fortaleza – FUNCET – Prefeitura Municipal de Fortaleza – Ceará.
Dois dedos de prosa com Graciliano Ramos – Contos – 2006 – Coleção Literatura Hoje – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará – UFC.
Sonhos e Vitórias - A História de João Gonçalves Primo – Biografia – 2007 – Em parceria com o Poeta, Escritor, Historiador e Biógrafo Juarez Leitão – Premius Editora.
Cajueiro Botador – Infanto-Juvenil – 2008 – Coleção Paic – Secretaria de Educação do do Estado do Ceará – SEDUC – Governo do Estado do Ceará.
Assessoria Técnica do Texto Original
24º Cine Ceará – Prêmio de Melhor Produção Cearense para o curta-metragem "Joaquim Bralhador", adaptação do conto do livro "Joaquinho Gato", do escritor Juarez Barroso – Dirigido pelo cineasta Márcio Câmara – 2014.
Parabéns, pela excelente forma de análise em suas críticas, amigo Túlio. Tua proficiência na literatura é incomparável aos críticos que conheço. Obrigada, pela partilha. Abraços!