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A morte, a vida e a metamorfose do café


Na casa de portinha de ferro as folhas das plantas já ultrapassam os limites de seus vasos e se agarram ao portão. Já estão ali há tempos, já fazem parte daquela casa. No mesmo instante, em que mais uma folha se agarra a uma ferrugem já vivida, na cozinha, a água borbulhava ardendo como nunca, o bule gritava de dor anunciando que já estava bom e iria delatar qualquer um, mesmo sem nem ter ninguém para isso, mas a agonia lhe fazia jurar as impossibilidades. Passos eram escutados em sua direção e o bule foi se acalmando. Logo ganhou um pó cheiroso de cor idêntica ao portão. Agora toda aquela água se encontrou com o pó macio e cheiroso se envolvendo numa cena tão íntima que dava vergonha de ver, ao mesmo tempo que não se podia parar. Logo um terceiro elemento se juntou ali no recipiente e adoçou o que parecia ser um relacionamento que estava ficando amargo. Um close foi dado na xícara em cima da mesa contendo o tal líquido. Tudo fluía bem, ao menos era o que pensava o tal do café. Ali antes amargo, agora quase doce.

Bem quieto ele foi colocado em uma xícara sem entender muito o que acontecia. O ambiente era colorido diferente de si na sua intensa monocromática vida. Podia espiar um pouco ao seu redor. Estava em uma mesa, mais precisamente em uma bela toalha vermelha, branca e com alguns desenhos de comidas variadas. Via uma moça andando pra lá e pra cá preparando algo para acompanhar o café na sua jornada ainda temida e desconhecida.

O café percebeu que os passos, antes inquietos, agora cessaram e um corpo vivo e colorido se sentava ao seu lado. Percebeu-se sendo erguido e aquele corpo ia se tornando cada mais próximo, ao passo que tudo ao seu redor tornava-se distante, até o momento em que a xícara foi repentinamente largada e o café se esparramou no chão. Ao som de pragas sendo ditas pelo tal corpo, o café reparou que ele estava quente e acabou dizendo em vapor palavras de ódio levadas até a sua boca, que com um sustou largou a xícara. A situação foi provocada pelo próprio café, pois ele queria ficar vivo por mais tempo, assim, a única saída vista por ele foi machucar esse indivíduo para escapar desse cenário, o qual não sabia resolver. Talvez uma conversa tivesse ajudado e ninguém teria saído ferido, mas é claro que o café não sabia disso. Como poderia saber? Por toda sua passagem, o café veio se transformando de palpável para o escorregadio e depois para o não visível; fazendo sua triunfante caminhada rumo ao desconhecido temido.

Agora se encontrava ali esparramado no chão, sendo mais que uma única versão de si. Eram muitas outras e seus reversos em reunião confabulando o que seria feito dali em diante. Cada pocinha de si foi sendo sugada por um pano que o corpo vivo passava no chão, sempre ressaltando que estava fazendo isso para o piso não ficar grudento, mas aquele corpo não conhecia o café e nem o que ele era capaz de ser em seus relacionamentos movido pela persistência do amor à vida. Sim, o café grudou no piso, manchou o pano e espalhou seu cheiro pela cozinha colorida.

Estava ali mesmo não estando, onipresente como a solidão. Encontrava-se no chão grudento como uma lembrança para passar despercebida, para ser um incômodo, uma recordação sem muita graça ou a beira do esquecimento, talvez, quem sabe, seja um pouco distorcida. Poderia ele não ser mais pó, poderia ele ser partículas invisíveis, poderia ser líquido, e seria, e foi e será. O café estava em tudo, aos poucos foi se impregnando em todos os cantos nem deixando o corpo vivo se esquecer que ele — o próprio café — esteve em sua vida.

 

Sobre a Autora:

Autora baiana, Kananda Gomes começou a escrever quando criança e não parou mais. Além de escritora também é estudante de Museologia na UFBA e criadora da página no Instagram @eu.e.minhas.ironias onde compartilha diversos textos com seus seguidores leitores.


 

Revisão: Pamela G. Augusto

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