Foi questão de segundos, mas pareceu uma eternidade para nós: da caixinha, que até aquele instante tocava uma musiquinha infantil, saiu um pequeno coringa (ou bobo da corte, chamem do que quiser) com o seu chapéu colorido e espalhafatoso, uma bolinha vermelha pintada em cada bochecha daquela face branca dele e sua boca de um vermelho de sangue que ia de orelha a orelha. Ele saltou de dentro da caixinha com a parte de baixo do seu corpo de sanfona ainda ligada a ela; em sua mão havia duas miniaturas de facas e ele soltou uma risadinha que arrepiou minha espinha.
Quando o Capitão retornou o olhar que dirigia a nós para a caixa, o pequeno coringa lançou as duas miniaturas de faca, cada uma em um olho do Chefe. Observei o Chefe largar a caixinha no chão e cambalear para trás, gritando feito um condenado enquanto o coringa se rastejava pelo chão. Eu estava em choque, mas a Xila não. Ela foi até o coringa e pisou nele, pisou até não ter mais sinal de movimento. Todos fomos socorrer o Chefe. Podíamos ver as duas miniaturas de faca em seus olhos.
— Nós temos que removê-las — falou Xila, ofegante.
— Não, não podemos — disse Controle. — Pode piorar o estado dele.
— ALGUÉM TIRA ESSA PORRA DOS MEUS OLHOS! — urrou o Capitão.
— Tá legal, tá legal — falei, quase sem respirar. — No três, Xila. Um, dois, três!
Ambos removemos as facas dos olhos dele, e seu grito foi ainda mais alto. Ele se debateu no chão por algum tempo, berrando. Depois, sentou-se:
— Eu não consigo ver merda nenhuma! — gritou ele. O tom da sua voz indicava medo. Pela primeira vez na minha vida eu vi um homem durão espernear igual a um bebê. Foi então que ele começou a chorar. — Por favor, meu Deus! Por favor, não! Não quero ficar cego! Pelo amor de tudo o que é mais sagrado! — Ele se colocou em posição de oração e começou a implorar para Deus dar de volta sua visão, mas nós sabíamos que isso não aconteceria. Ele, então, vendo que ficaria assim para o resto de sua vida, tirou sua submetralhadora de trás das costas e apontou para o próprio queixo. Eu me movi rápido o suficiente para tirar o cano da arma da trajetória do seu rosto, porém ele pressionou o gatilho e uma saraivada de tiros acertou o teto.
— O que está fazendo? — indaguei.
— Me larga! — respondeu ele. — Não posso viver assim!
— É claro que pode! — refutei-o. — Milhares de pessoas vivem assim. Porra, várias pessoas nasceram assim!
— E eu com isso? — disse ele avidamente. — Não vou poder mais ver minha família.
Eu olhei para a Xila e vi que ela também estava com um olhar pesaroso.
— Capitão, você tem família? — ela perguntou.
— Sim, é claro que tenho.
— E por que nunca nos contou sobre isso?
— Porque não era necessário vocês saberem! — disse ele balbuciando e choramingando. — Ninguém precisa saber o passado de ninguém neste trabalho.
— Tudo bem, tudo bem — respondi num tom mais brando. — Mas não significa que não possamos compartilhar. Olha, eu tenho uma família pra sustentar e estive no exército antes de entrar neste ramo. Xila também era do exército e tem uma família também, não é, Xila?
— Sim! — respondeu Xila. — E eles precisam de mim tanto quanto eu preciso deles.
— Todos aqui têm família, certo? — perguntei a todos.
— Sim — disse Pia.
— Tenho! — falou Beta.
— Aham! — Panela disse.
— Mas é claro — disse Controle.
— Fala sério, aí. Claro que tenho! — falou Malandro com energia.
— Mas é lógico, mano — respondeu Fumaça.
— Então, Chefe, é melhor que você engula o choro e venha que nem homem conosco, ou pode ficar aqui apodrecendo neste lugar. A escolha é sua. Mas se alguém for te matar, não permitirei que seja o senhor. Eu posso fazer isso por você.
Xila olhou para mim com um semblante chocado, mas não havia tempo para sentimentalismo.
— E então, Chefe?
Depois de alguns segundos de silêncio, ele finalmente concordou em vir conosco.
Chamei Panela e pedi para que me ajudasse a carregá-lo. Prosseguimos para os lances de escadas que nos levariam à sala anterior, mas ouvimos passos, que pareciam distantes, atrás de nós. Quando nos viramos para olhar, vimos as três estantes de bonecos de ação se esvaziando enquanto eles desciam e corriam para nos atacar. Foi fácil escaparmos, pois estávamos distantes deles. Chegamos à nona sala e fechamos a porta atrás de nós. Tudo lá parecia um caos. Havia bonecos de ação, soldadinhos de plástico com suas armas em mãos e soldadinhos de chumbo (aqueles com uniformes da época imperial do Brasil) carregando baionetas, aviões de madeira e de latão, carros, jipes, tanques de guerra, bonecas com roupas do século XIX com facas na mão e tudo quanto era brinquedo se movendo e avançando na nossa direção. Nós tivemos que deixar o Capitão em um canto enquanto dispúnhamos dos brinquedos, um por um.
Nosso objetivo ali não era eliminar todos os brinquedos, apenas aqueles que considerávamos ser um risco maior. Uma miniatura de helicóptero cruzou o ar bem na minha frente e, de dentro dele, vi um soldadinho de plástico com uma metralhadora rotativa que atirava em nós. As balas acertaram o meu braço direito, causando a mesma dor que se sente quando perfuram sua pele com uma agulha para retirar seu sangue ou aplicar algum soro. Um avião passou perto de nós e disparou dois mísseis que atingiram a parede, pois nós desviamo-nos de sua trajetória. Pisamos nos soldadinhos que estavam atirando em nossos pés, tentando nos perfurar com suas pequeninas baionetas ou atirando mini granadas em nós, uma dessas que explodiu no pé da Xila e ela exclamou “Filho de uma vaca arrombada!”.
Atiramos nos aviões e helicópteros, chutamos as bonecas com facas na mão e neutralizamos quase tudo o que estava se movendo, restando apenas uns carros ou jipes que não representavam nenhuma ameaça, incluindo a moto que tinha roubado a minha atenção anteriormente. Eu e Panela levantamos o Capitão de novo e prosseguimos até o próximo lance de escadas. Xila ficou na nossa retaguarda, a cinco metros de distância de nós, nos protegendo de possíveis ataques. Quando todos chegamos às escadas, avisei para a Xila vir também. Nós subimos as escadas e chegamos à oitava sala, fechando a porta. Tivemos que enfrentar os mesmos desafios, protegendo o Chefe o máximo que conseguíamos. Quando terminamos por ali, pegamos o Chefe e o carregamos até onde ficava o escorregador, nos perguntando como diabos faríamos para subir aquela coisa. Quando me virei para chamar Xila, que ficou protegendo nossa retaguarda, vi uma cena que durou poucos segundos, porém foi o suficiente para me fazer perder o fôlego.
O robô que eu tinha visto antes desceu de uma estante, bem ao lado de Xila, pegou sua metralhadora com uma mão e atirou na perna dela até que terminasse a munição. Nossa companheira rugiu de dor e virou sua metralhadora na direção da pequena máquina de matar, tentou acertar algum tiro, mas ela estava vacilando de um lado para o outro, pois sua perna estava perfurada de mini-tiros. O robô, então, com sua outra mão, ergueu sua espada, que começou a brilhar em vermelho. Ele fez um movimento diagonal com ela, de cima para baixo, e então saltou. Vi a espada dele mudar de uma cor vermelho neon e começar a pegar fogo, isso tudo nos dois segundos que ele permaneceu no ar até alcançar a Xila e enfiar a espada flamejante por entre os seios dela. Ela levantou a cabeça para o teto e gritou o mais alto que pôde. Sangue escorreu pela boca dela e, com a força que ainda a restava, ela retirou sua faca da bainha nas suas costas e a enfiou na cabeça do robô, atravessando-a de um lado ao outro.
Eu e os outros tentamos intervir, mas sabíamos que era tarde demais. Vi Xila encarando o robô enquanto os circuitos deste faiscavam e se desligavam. Ela rodou a faca, de modo a fazer um estrago ainda maior dentro da cabeça do robô.
— Morre logo, filho da puta! — disse ela enquanto tossia sangue.
Então ele caiu no chão, mas deixou a espada no peito dela. Ela, por sua vez, se ajoelhou e caiu de bruços, fazendo a espada penetrar ainda mais por entre os seus seios. Uma poça de sangue espalhou-se pelo chão. Ela caiu com a cabeça virada para nossa direção e seus olhos permaneceram abertos mesmo depois dela ter morrido.
— O que aconteceu? — perguntou o Capitão — Não consigo ver nada!
— Deu merda! Foi isso que aconteceu — respondi. — A Xila morreu.
Eu procurava o máximo não olhar para as fendas escuras escorrendo sangue que estavam no lugar dos olhos do Capitão, mas, assim como o Panela evitava olhar também, tinha vezes que eu não conseguia. E tinha o problema do escorregador, nós não tínhamos a menor ideia de como subiríamos para o sétimo andar. Foi quando olhamos para os brinquedos restantes que ainda tentavam nos atacar, mas não causavam o menor dano em nós. Dentre eles, havia um que não estava nos atacando, que era a caixinha de música da bailarina. Fui até lá e peguei-a. Não estava tocando som nenhum.
— Cara, o que você está fazendo? — perguntou Panela, chutando um dos jipes que ficavam indo de encontro com os seus pés. — A gente tem que sair daqui pra ontem!
— Só... só um momento — falei. Carrinhos também ficavam encostando nos meus pés, mas eu não me importei. Estava, de alguma forma, perplexo com aquela caixinha de música. Da última vez, quando Xila a ativou, nós conseguimos avançar para os andares seguintes. E se eu a ligasse de novo, o que aconteceria? Foi o que eu me perguntei enquanto pressionei o botão vermelho na lateral do brinquedo. A música que agora tocava era distorcida e macabra, não se parecendo nem um pouco com aquela que escutamos da última vez. Todos ficaram estáticos, escutando aquele hino ao horror distorcer-se cada vez mais, até que uma hora todos, menos eu, não aguentaram mais escutar àquilo e taparam os seus ouvidos.
Quando a musiquinha macabra acabou, a bailarina, naquela posição com um pé no pequenino palco e o outro levantado em uma posição deslumbrante, começou a gritar. Era um grito agudo que penetrou por todos os meus ossos e atingiu minha alma. Seu pezinho, que estava no palco, começou a sangrar, e então ela começou a se contorcer, seu gritinho agora se transformando em um som grave e bestial, como se ela estivesse possuída.
De repente, saí do meu transe hipnótico e larguei o brinquedo, que caiu no chão com a bailarina se contorcendo e uma expressão assombrosa e maligna que tomara o seu semblante. E então, tão lentamente quanto começou, tudo terminou. A mini bailarina continuou com o esgar de horror e eu, enquanto me recompunha, ouvi um apito vindo da minha direita, como se fosse o barulho que um pino faz quando o peru está pronto. Uma parte da estante que vinha daquela direção começou a subir, como se puxada por linhas invisíveis. Quando ela terminou esse movimento, vimos que havia um elevador atrás dela, mas não encontrávamos visores indicando em qual andar estávamos. Víamos apenas um elevador que parecia ter vindo dos anos vinte.
— Todo mundo, entrem no elevador!
Abri a grade de ferro do elevador e todos entraram, exceto Malandro, que se ajoelhou ao lado do corpo de Xila e lamentou a morte dela, mas o jeito como ele colocou as palavras não era exatamente romântico. Ele disse: “Caralho, Xila!”. Tive que chamá-lo pelo menos umas três vezes até que ele me ouvisse, entrasse no elevador e fechasse a grade de ferro.
Felizmente, era um elevador espaçoso. Àquela altura eu esperava por qualquer coisa, até mesmo que o elevador fosse nos levar para o nono círculo do inferno. Assim como por fora, por dentro também não havia números ou letras que indicassem em que andar estávamos e para qual iríamos. Havia um único botão com uma simples seta apontando para cima. Pressionei-o e o elevador começou a subir, para o meu alívio. Foi uma subida demorada, o que nos deu tempo de recuperar as nossas forças e os nossos ânimos. Eu e Panela colocamos o Chefe no canto do elevador para mexermos os ombros e tirar um pouco da sensação de câimbra que sentíamos neles. Malandro estava com uma mão na parede do elevador, sua cabeça abaixada e seus olhos fitavam o chão, a imagem era desoladora. Então, para melhorar a sua situação, coloquei a mão no seu ombro e disse:
— Garanto que ela está em um lugar melhor, parceiro.
— É, espero muito isso. Ela era maneira. Eu gostava no seu jeito firme, embora descontraído.
— Verdade — falou Fumaça. — Ela tinha uma energia que revigorava o clima em volta de nós.
— Pois é — falou Beta, e Pia completou com um “Eu teria feito alguma coisa se tivesse dado tempo”.
Controle, que até agora estivera em silêncio, esbofeteou a própria cara e arrastou a mesma mão rosto abaixo.
— Que bosta! — exclamou. — Esqueci de desativar a porra do sistema central!
— Mas não havia sistema central — falou Malandro, parecendo um pouco melhor.
— Ih, é mesmo, não tinha nada lá — disse Beta. Os outros concordaram com suas cabeças.
— Eu só lembro de estar tudo em construção, e do projetor — afirmei. — Fora isso, nada.
— Acho que você está certo — disse Controle. — Mas, como... de que forma esses brinquedos estão se movendo, Erres? — Vi em sua expressão que lá vinha o fardo do impossível pesar contra o possível. Ele não conseguia acreditar em nada do que via, sempre procurando uma explicação lógica.
— Escuta, Controle, você às vezes tem que deixar as coisas acontecerem, não precisa saber como o truque funciona para se impressionar com uma mágica, certo?
— Aham... — ele arqueou as sobrancelhas, interessado.
— Bom, a mesma coisa funciona com essa merda toda que está acontecendo com a gente. Estamos vendo coisas acontecerem, e pode até parecer anormal e fora da realidade, mas vá por mim, relaxe! Teremos tempo de sobra para descobrir como essas coisas funcionavam quando dermos o fora daqui. Até lá, meu amigo, tente pensar positivo, pelo amor de Deus!
Já era meio zoado eu ter que levantar a moral de um cara tão alto astral quanto o Malandro, mas lidar com as paranoias do Controle era um pé no saco.
— Falando nisso — continuei —, não era para termos chegado ao próximo andar há algum tempo? Alguém aqui também está sentindo a demora?
Todos concordaram, exceto o Chefe, que adormecera e, enquanto dormia, baba escorria do canto da sua boca.
— Preciso contar uma coisa que tem me incomodado desde que entramos neste lugar — disse Controle.
Ótimo, pensei. Se conseguirmos sair daqui, vou procurar um psicólogo pra esse cara. No entanto, o que eu disse foi: “Compartilhe conosco, não sabemos por quanto tempo ficaremos aqui”.
— Isso aconteceu quando eu estava no exército. Estávamos fazendo uma simulação de situação de refém. Precisávamos invadir o local, eliminar qualquer ameaça e retirar a refém sã e salva. Eu ainda não trabalhava como programador, na verdade eu ainda estava no meu segundo ano na faculdade de T.I. e, por isso, eu fazia parte como um membro ativo da simulação. Não que programar seja algo passivo, é que...
— Já entendemos, cara. Continua! — Olhei no meu relógio digital e estava tudo uma grande bagunça. Símbolos, números, letras e (“mas que porra é essa?” pensei) runas.
— Enfim — continuou Controle —, os alvos que tínhamos que eliminar eram bonecos de madeira com toda a parte da frente branca e a de trás sem nenhuma cor, e na cabeça de cada um deles estava escrito o que eles eram: inimigos ou civis. Nós todos conhecíamos uma história que falava de um soldado que, acidentalmente, pegou uma granada de verdade em vez de uma réplica e, quando ele tirou o pino dela, soltou também a alavanca, sem nem se dar conta de que tinha cometido um terrível erro, e enquanto estava pegando cobertura, antes mesmo de lançar a granada, ela explodiu na sua mão e o sujeito partiu desta pra melhor, ou pelo menos era o que todos pensávamos.
Enquanto simulávamos a situação de refém, atirávamos nos marcados como “inimigo” e abaixávamos a arma quando estava escrito “civil”, como era esperado que fizéssemos. Nossas armas eram de paintball, então não havia nem chance de machucarmos o “terrorista” que segurava a faca de madeira contra o pescoço da mulher “refém”. Tudo correu muito bem, conseguimos “matar” o terrorista antes que ele “cortasse a garganta dela”.
Todas as vezes que a palavra era acompanhada de aspas, Controle fazia o sinal de aspas com as mãos e isso me tirava do sério.
— Não precisa ficar fazendo sinal de aspas toda vez, nós sabemos que era tudo de mentira.
— Certo — disse ele, e continuou: — Então, quando estávamos indo embora, andando por entre os corredores do local em ruínas, vi um boneco demarcado como inimigo e, sem pestanejar, atirei bem na cabeça dele. E, logo após isso... — Ele fez uma pausa, tapou a boca com uma mão e colocou a outra na barriga, parecia estar enjoado. Ele tomou um momento, se recuperou e prosseguiu com o relato: — Logo após isso, uma coisa estranha aconteceu. Juro de pés juntos que vi as letras escritas “inimigo” em vermelho começarem e perder a forma, bem como a tinta amarela da minha arma, e então tudo começou a se misturar, a se espalhar pelo corpo inteiro numa combinação de vermelho e amarelo, tomando toda a forma do boneco. E bem na cabeça, onde não era para ter nada, vi uma face se formar em meio às cores. Não reconheci na hora, mas depois de ouvir da boca, que não deveria estar lá, as palavras “socorro, me ajudem”, eu soube na mesma hora que se tratava do soldado que morreu no acidente da granada. Não sei como eu soube, eu apenas soube. As palavras pareciam sair da boca daquela... coisa... de forma sofrida, como, se seja lá o que fosse aquilo, estivesse fazendo muito esforço para falar. De repente, ele começou a gritar alto e mais alto, até que o seu grito preencheu todo o lugar. Eu não consegui me mover, pois ainda duvidava do que eu via. E, sabe, estávamos a certa distância um do outro, mais ou menos uns 6 metros. Minhas pernas não respondiam ao meu comando de sair dali, nem minha boca ao comando de chamar os meus companheiros de equipe para vir ver o que eu estava vendo. Eu fiquei lá, parado, chocado e com muito medo do que estava a poucos metros de mim. De repente, a coisa começou a gritar alto e mais alto as mesmas palavras: “socorro, me ajude!”, “socorro, me ajude!”, até que, na terceira vez que ela falou, começou a gritar de desespero, a berrar, e o ferro na base dela que estava conectado com o trilho fino começou a avançar. Aquela... aberração... começou a avançar para cima de mim, gritando com todas as forças e, quando ela chegou até onde eu estava e ficamos face a face, a coisa berrando e eu imóvel, assustado como um bebê que assiste o primeiro filme de terror, ouvi um dos meus camaradas me chamar. Foi só então que eu consegui olhar para outra direção que não fosse para a frente. Subitamente percebi que não havia mais gritos ou berros. Meu amigo perguntou se estava tudo bem comigo, e eu disse que sim, embora estivesse com os neurônios fritando. E, quando olhei novamente para a frente, o boneco estava de novo na sua posição inicial. Apenas um boneco com contorno humano e com o dizer “inimigo” escrito na cabeça.
Todos ouvíamos ao relato como se fossemos crianças que se reuniam com aquele tio legal que conta histórias de terror à noite, para divertir todo mundo.
Controle, que até agora estava com os ombros curvados, empertigou-se:
— Até hoje não consigo explicar o que aconteceu. Fiquei por anos dizendo para mim mesmo que era só uma ilusão que minha mente criara, alguma artimanha do subconsciente, ou então que eu teria comido algo que me fez mal e que resultou em uma imaginação ruim. Fiquei dizendo essas coisas até que eu começasse a acreditar no que eu dizia, e depois de alguns anos a coisa toda meio que desapareceu da minha memória... até hoje. Erres, tudo com o que eu trabalho, a minha vida inteira... foi à base da lógica. Cresci em uma família católica, mas com o tempo me tornei ateu e rejeitei tudo o que fosse ilógico, incluindo esse acontecimento. Mas, como, em nome de... — ele hesitou por um momento — como essas coisas aconteceram e ainda estão acontecendo comigo? Como?
Eu não tinha uma resposta para todas essas perguntas, mas sabia que de nada ia adiantar eu dizer que o sobrenatural talvez exista e que coisas assim podem acontecer conosco, pois sabia que Controle não conseguiria suportar essa realidade. Então, num gesto amigo, eu dei um tapinha nas suas costas e disse tudo o que eu consegui pensar em dizer naquele momento:
— Um dia acharemos uma resposta para tudo isso. Apenas tenha paciência.
Depois dessas palavras ditas, ele pareceu se acalmar um pouco, mas no geral estávamos todos baqueados, só que alguém precisava levantar a moral da equipe, nem que fosse só eu. O elevador demorou mais uns cinco minutos para apitar de novo, e eu dei graças a Deus por ninguém ali ter claustrofobia.
Abrimos a grade do elevador e saímos na sala dos animatrônicos, desta vez na parede perpendicular àquela do vão que havia aparecido e nos levado ao escorregador. A luz, que iluminava apenas parte da sala agora, havia diminuído drasticamente, deixando todo o ambiente entre o claro e escuro, enquanto os fundos da sala eram um breu total. Saímos do elevador, demos alguns passos e vimos que o vão não estava mais lá; havia algo de diferente na sala, porém não conseguimos ver logo de cara. Mas, ao chegarmos perto do animatrônico mais próximo, percebemos que seus olhos estavam diferentes: brilhavam em escarlate e suas sobrancelhas estavam arqueadas, dando-lhe uma carranca ameaçadora. Seus dentes, que antes eram quadriculados, agora estavam pontudos e afiados.
Os outros dois animatrônicos, que estavam com os braços esticados na direção do vão que não estava mais lá, estavam com a mesma expressão e com as bocas mais escancaradas, além de estarem empertigados desta vez. Ao olharmos ao redor, também notamos que nenhum estava com o seu respectivo instrumento musical em mãos, estes estavam no chão. Panela disse “só um minuto” e, soltando o Chefe, pegou sua lanterna do bolso e apontou o feixe de luz para dentro da boca do jacaré, o maior deles. Ele levantou a mão para tocar em um dos dentes e eu na mesma hora mandei-o parar.
— Eu só quero checar do que são feitos esses dentes — falou Panela de forma inocente, ainda com a mão esticada na direção daquela boca escancarada.
— Não, é melhor você não fazer isso — eu disse.
— É, escuta o Erres, mano — disse Fumaça.
— Tá bom, tá bom. — Panela baixou a mão e continuou com a lanterna apontada para a boca do jacaré por alguns segundos, então dirigiu o facho de luz para um animatrônico que estava atrás dele, a zebra. Nesse exato momento, vi os olhos do jacaré se moverem: ele parou de olhar para frente e desceu a visão para Panela. Eu vi aqueles glóbulos mecânicos descerem e, na mesma hora, falei “Panela, cuidado!”.
Ele voltou a direcionar a luz da lanterna para o jacaré, enquanto este se inclinava para baixo e abria sua bocarra a fim de abocanhar um dos braços de Panela, que, para se proteger, deixou a lanterna na posição vertical e o jacaré acabou mordendo a lanterna. Panela se recolheu para próximo de nós, assustado, enquanto o animatrônico mastigava a lanterna e a engolia.
— Meu Deus, Panela! Você está bem? — perguntei.
— Sim, estou — respondeu. — Mas que porcaria é essa?
— O que está acontecendo? — perguntou o Chefe. — Me digam o que está acontecendo!
— Nada com o que você precise se preocupar — falei. Carreguei-o para dentro do elevador e fechei a grade de ferro. — Apenas fique aí e não saia.
Embora, pensei, seria meio difícil sair sem poder enxergar nada.
— Erres — disse Pia, cutucando o meu ombro —, é melhor você se preparar.
Olhei para trás e vi os animatrônicos começarem a se mover e avançar contra a gente. Checamos quantas balas ainda restavam em nossas armas. Tínhamos poucas, mas carregávamos munição em nossos porta-carregadores. Recarregamos e ficamos em posição. Os animatrônicos avançavam a passos largos e, nos fundos da sala, naquele breu desolado, o arco, as estrelas, as três lâmpadas do pequeno palco e os olhos dos animatrônicos começaram a brilhar. A lebre continuava com a guitarra, mas a lontra agora tocava um órgão e a marmota entoava uma canção sombria. A letra havia mudado. Agora era algo como:
“Bate pedra na cabeça
Sangra tudo, vamos lá
Roda o pé, isso é moleza
Roda, roda até sangrar”
Panela já não aguentava mais aquela baboseira. Ele mirou em uma das pernas do jacaré, atirou e esta saiu voando com o impacto das balas. A luz daquela parte da sala estava fraca, mas conseguimos ver algo que nos deixou travados feito crianças com medo do escuro — sangue caiu do toco em que antes se encontrava a perna do jacaré e ele soltou um guincho animalesco de dor, caiu, depois se levantou e continuou avançando pulando em um pé só, deixando o chão manchado de vermelho. O escarlate dos seus olhos ficou mais intenso.
Panela, após o momento de choque, acertou, embora com um pouco de hesitação, essa outra perna, então o jacaré caiu com um urro de sofrimento e começou a se arrastar. A trilha que ele passou a deixar estava mais densa, porém parecia que não importava quanto sangue ele perdia, o bicho continuava se arrastando.
— Essas coisas não morrem! — Panela reclamou. Dava para ouvir o desespero em sua voz, e ele disparou contra o crânio do jacaré. Aquela parte em específico explodiu e, por baixo dela, vimos o que havia no interior do crânio: um cérebro. Não circuitos elétricos ou qualquer coisa do tipo, mas um cérebro, com veia e tudo. Um cheiro repugnante impregnou o ar, misturando-se ao cheiro do sangue, e Beta tapou a boca com as costas da mão, mas não conseguiu conter-se e vomitou. Agora tínhamos três cheiros insuportáveis para lidar.
Panela avançou até onde o jacaré estava e deu um último tiro, no cérebro, e o jacaré parou de se movimentar completamente. Foi aí, ao ver a criatura imóvel, que todos nós tivemos certeza de que elas podiam morrer.
— Atirem na cabeça! — gritou Panela.
Começamos a gritar e a disparar que nem loucos contra cada uma.
O urso avançou na minha direção, garras preparadas para me cortar. Ele veio rugindo de maneira feroz. Eu desviava a cada investida que ele dava, sempre acertando os tiros da minha pistola na sua cabeça, até que o crânio se quebrou e revelou o cérebro por baixo. Eu atirei ali, aniquilando a ameaça; o urso caiu de uma vez no chão, como se algum espírito tivesse deixado o seu corpo.
Recarreguei minha pistola e fui ajudar os outros. Beta lutava contra um papagaio, Pia estava num embate contra uma arara azul, Malandro desviava, quase sambando, de uma onça enquanto Fumaça se esquivava com habilidade de um puma. Panela descarregava a munição de sua escopeta em um jabuti e Controle gritava feito condenado enquanto atirava em uma capivara. Decidi ajudar Controle primeiro. Visto o estado de saúde mental dele, pensei que ele vacilaria em algum momento e seria morto.
Enquanto eu corria até ele, vi um animatrônico gorila indo de encontro a ele, então dei um tiro na direção do gorila; a bala quase o acertou. Ele parou, encarou-me com aquele brilho escarlate nos olhos e veio correndo até mim. Eu atirei cinco vezes, mirando bem no meio daqueles olhos, até que o cérebro aparecesse e eu conseguisse acertá-lo. Então continuei prosseguindo até Controle e fui recarregando minha pistola no meio do caminho.
Quando cheguei à sua posição, vi que ele estava tendo dificuldade em acertar a cabeça da capivara com seu rifle de repetição, pois suas mãos tremiam e isso fazia sua mira ficar imprecisa. Descarreguei todas as balas da minha pistola na cabeça da capivara, disse ao Controle para irmos ajudar os outros e comecei a recarregar minha arma.
O mais próximo de nós era o Panela que já tinha finalizado o jabuti, mas um rinoceronte corria em fúria descontrolada até ele, que tentou acertá-lo com um tiro de escopeta, mas eles ainda estavam longe um do outro, por isso não o acertou. O rinoceronte continuou aproximando-se, cada vez mais rápido, e Panela, ao puxar novamente o gatilho e ver que suas balas tinham acabado, começou a recarregar a sua arma, mas conseguiu colocar apenas uma dentro dela, pois o rinoceronte conseguiu alcançá-lo, acertando um golpe com o antebraço em cheio no peitoral de Panela, num movimento de meia-lua, e Panela voou pela sala até bater de costas na parede do outro lado e cair. Sua escopeta caiu no chão e disparou para cima.
— Panela! — gritei esticando a minha mão. Uma ira colossal tomou conta de mim. Então falei para Controle, que estava de olhos arregalados:
— Mira direito e me cobre, mas atira na cabeça desse merda!
Eu estava tomado pelo ódio e comecei a correr na direção do rinoceronte. Eu conseguia ouvir os tiros que Controle dava enquanto eu me aproximava, um deles quebrou o crânio do rinoceronte e eu pude ver o cérebro da coisa, que acertei em cheio com um único tiro. Minha sorte foi que ela estava de lado, porque se estivesse de frente, muito provavelmente eu e Controle estaríamos com os dias contados. Eu queria checar se Panela estava morto ou apenas desacordado, mas tinha que continuar ajudando o restante da equipe, e assim o fiz.
— Todo mundo, reúnam-se em um círculo! — gritei, então todos fizeram um círculo, cada um apontando para uma direção. Vieram contra nós um hipopótamo, uma hiena, uma galinha, um cavalo, um porco, uma águia e incontáveis animais saídos do escuro dos fundos da sala, flanqueando-nos. Aniquilamos todos com precisão, até que só restou um animal — uma baleia que tentava abrir a grade do elevador no qual o Chefe estava. Então fui até lá e atirei bem na área que seria a cabeça e o cérebro apareceu depois de quebrado o crânio; atirei de novo e ela caiu de costas no chão. Pedi para que Pia e Beta carregassem o Capitão e fui até Panela para ver se ele ainda estava vivo. Sangue escorria da boca dele. Agachei-me, chequei o seu pulso e o seu pescoço e, para a minha tristeza, não senti nada. Levantei-me e caminhei desoladamente pela sala até os outros.
— E aí? — perguntou Beta. — Ele tá ok?
— Bom, acredito que agora ele esteja ok.
— Como assim? — perguntou Pia.
— Ele não está mais entre nós.
— Ah, entendi — falou Beta. Ele e Pia encararam o chão.
— Mas que bosta — disse Controle. Malandro e Fumaça não falaram nada em relação ao assunto, mas estavam igualmente abalados.
— Tá legal, e agora o que a gente faz pra sair daqui? — perguntou Malandro.
— É, mano — confirmou Fumaça. — Porque eu não tô vendo nenhuma porta por aqui.
Olhei ao redor e a única coisa que ainda restava de pé era o trio dos animatrônicos que ainda cantavam sua música sinistra:
“Risca o lábio,
Arranca a unha,
Coça, coça até ferir.
Fura o braço,
Faz bagunça,
Corta, corta até sair”
Aquela melodia com aquela letra estúpida me fez perder a paciência, mas um pensamento me ocorreu: antes, quando havíamos entrado naquela sala, nós ligamos a tomada e um vão apareceu na parede. Se não víamos nenhuma porta, deveria ser porque precisaríamos “desplugar” a tomada, e foi isso que fiz. Então tudo parou tão repentinamente quanto começou. Foi aí que ouvimos um barulho vindo da parede em frente à do elevador e uma parte dela se abriu. Eu estava no escuro, mas sabia que um vão tinha aparecido porque Malandro gritou isso para mim.
— Vamos lá — falei quando cheguei de novo à parte mais clara da sala. — Vamos embora daqui.
E assim nós prosseguimos. Deixei todos irem primeiro e, quando chegou minha vez de atravessar o vão, olhei para Panela e disse:
— Que Deus o tenha, parceiro. Você não nasceu para matar.
Enquanto subíamos as escadas que dariam na sala dos navios, percebemos água escorrendo pelos degraus, vinda de lá. Ao entrarmos, notamos que a água (que era muito gelada) já tinha ocupado a sala até o nível dos tornozelos e saía do quadro do Titanic, mas não das bordas dele, e sim de dentro da imagem, que mostrava o imenso cruzeiro destruído no fundo do mar.
— TV touch-screen, não é? — disse Controle, irritado, olhando para mim. Irritado, mas não surpreso. Parecia ter aceitado estar preso em uma espécie de pesadelo sem fim.
Todos os barcos, navios, cruzeiros, lanchas, barcas, galeras entre os mais diferentes tipos de embarcações não militares e militares, que antes estavam em estantes e dentro de vitrines, agora estavam boiando na água. De repente, a porta com válvula atrás de nós se fechou (na parede contrária a da imagem, se encontrava outra porta com válvula, que eu tentei abrir mas sem sucesso) e o nível da água começou a subir; os brinquedos começaram a nos atacar. Era como uma festa de bombardeios, tanto navios piratas quanto os da marinha atiravam em nós com seus canhões, enquanto os que não tinham armas ficavam apenas avançando.
Nenhum dos projéteis nos acertou de primeira, mas ao vê-los caindo na água e considerando as pequenas ondas que eles formavam, não foi difícil adivinhar que cada um deles iria nos machucar. A água continuava subindo gradativamente, porém, como ainda estava no nível dos nossos pés, avançamos contra os brinquedos náuticos pisando em cada um deles; deixamos o Capitão em um canto da sala para que não se ferisse. Controle foi o primeiro a levar um tiro, bem na canela. Ele urrou de dor e segurou a área atingida com as mãos.
— Santo Pai Eterno, como isso dói!
— Fique atento! — falei, mas logo fui atingido na mesma área. A dor que senti foi como se uma daquelas bombinhas chamadas cabeção de nego tivesse estourado na minha canela, por mais pornográfico que isso pareça. Então eu gritei para o grupo: “Pessoal, recuem! Fiquem o mais distante possível dos brinquedos! E protejam o Capitão!”
Nós não podíamos flanqueá-los porque a largura da sala não era o suficiente para isso — apenas 10 metros — mas o comprimento estava a nosso favor, pois a sala media 100 metros e tinha 20 de altura. Portanto, recuamos e, à nossa frente, uma frota inteira de barcos e navios avançava. Alguns mais rápidos e outros mais lentos. Os navios de guerra continuavam a disparar seus projéteis e nós atirávamos desesperadamente. Era difícil ter precisão, pois primeiro tivemos que nos livrar dos brinquedos que estavam mais perto de nós e só depois dar conta dos mais afastados.
Atirávamos, recarregávamos e atirávamos sem parar, e o nível da água ia subindo, nos deixando cada vez mais lentos nas pernas e, sendo assim, mais desesperados ficávamos. Bom, pelo menos essa foi a minha sensação, mas eu não cedi e continuei buscando acertar os brinquedos com o máximo de precisão possível. Quando a água estava acima das nossas canelas, ainda faltavam muitos brinquedos para eliminar e, ao alcançar o nível das nossas cinturas, já restavam menos, mas ainda assim em uma quantidade significativa. Foi só quando a água alcançou o nível do nosso pescoço que conseguimos eliminar todos (nós nem sequer paramos para nos perguntar como diabos estávamos conseguindo atirar com balas molhadas, mas naquela altura do campeonato isso não importava) com nossas armas elevadas um pouco acima das nossas cabeças; no entanto, a água continuou a subir.
— Capitão, você está bem? — perguntei.
— Estou bem — respondeu — mas onde estamos? E porque essa água não para de subir?
— Lembra da sala dos navios?
— Sim.
— Estamos nela. E se não encontrarmos um jeito de esvaziar essa água, vamos morrer afogados. Mas sem pressão — brinquei —, apenas continue com a cabeça virada para o alto, Capitão.
Por sorte ainda faltava grande parte da sala para a água preencher, mas ainda estávamos nos perguntando por que ela não parava de subir mesmo após termos eliminado todos os brinquedos daquele andar. Sem contar que se não removêssemos a água dali, morreríamos de hipotermia. Malandro estalou os dedos na frente dos meus olhos.
— Tá tudo bem aí? — perguntou.
— Tá. Tá tudo bem — respondi.
— O que vamos fazer agora? — ele estava com os dentes à mostra e vi que eles tremiam.
— Por que está perguntando pra mim?
— Foi você quem salvou a gente nas situações anteriores.
— Mas e quanto à Xila? E quanto ao Chefe?
— Não dá pra salvar todo mundo, mas se não fosse pelo seu espírito de liderança, nós com certeza estaríamos perdidos.
— É verdade — disse Controle, aproximando-se de nós. — Se não fosse por você, eu provavelmente teria enlouquecido.
— Fato — concordou Malandro. — Sem contar que o Chefe não pode mais nos liderar. Pô, o cara nem consegue mais enxergar!
— Mas ainda consigo te ouvir! — emendou o Chefe, e adicionou: — Só que eles têm razão, Erres. Eu não sou nada mais do que um peso morto agora.
— Não diga isso — falou Beta.
— É — disse Pia — você ainda tem uma família.
— Isso mesmo — disse Fumaça. — Você não pode desistir agora.
Depois de alguns segundos de silêncio, o Chefe disse:
— Vocês têm razão. Mas como iremos sair daqui?
— Erres, sem querer ser indelicado, mas... Você já checou se a porra da porta se abriu depois que eliminamos os barquinhos? — perguntou Malandro.
— Não — respondi e nadei até a porta, tentei girar a válvula e consegui abrir. — Isso é muito estranho — falei. — Eu não ouvi nenhum barulho vindo da porta.
— Talvez seja um dos truques deste lugar — falou Malandro. — Fazer a gente pensar que está sem saída.
A água escorreu um pouco assim que eu abri apenas uma fresta, e a sala se esvaziou quando eu abri tudo, enchendo, desta forma, parte da área onde a escada em espiral para o próximo andar se encontrava.
— Venham, vamos subir — falei, e todos começamos a subir as escadas, nadando no início e caminhando no final, até que chegamos ao andar dos automóveis.
Lá estava uma bagunça. Carrinhos de corrida se chocavam uns contra os outros, veículos militares corriam sem rumo, tanques de guerra atiravam em carros retrô. Quando nos aproximamos deles, todos se voltaram contra nós. Nossa munição já estava se esgotando, portanto teríamos que economizar. Deixamos o chefe em um canto.
— Que merda a gente faz agora? — perguntou Pia.
No mesmo momento, ocorreu-me uma ideia. Quando ainda estávamos descendo para o décimo andar, abrimos a porta da sala dos automóveis apenas pressionando os botões debaixo das escotilhas de quatro tanques numerados de 1 a 4. E se, pensei, nós apenas destruíssemos os quatro?
— Pessoal — falei.
Todos olharam para mim, os brinquedos ainda estavam a certa distância de nós, sendo assim estávamos fora da sua área de alcance.
— Lembram-se dos tanquezinhos com um número escrito em cada um deles? — perguntei.
Todos assentiram.
— Pois é, acho que temos que destruí-los para que a porta se abra.
— Então pode deixar com comigo — disse Malandro, tirando algo do bolso com uma mão e sacodindo com a outra mão estendida.
— Malandro, é sério que você vai fumar agora? — perguntei, mas depois vi que ele tinha nas mãos apenas uma caixa de palitos de dente e colocou um na boca.
— É o que eu faço quando fico possesso — disse ele com veracidade. — Quer um?
— Não, muito obrigado.
— Alguém aqui quer um?
Todos negaram.
— Erres, deixa que eu cuido desses — disse Malandro. — Vocês todos apenas me dêem cobertura.
— O que você vai fazer? — perguntou Beta.
— Fica tranquilo, eu só vou abrir o caminho para a gente.
— Só vou ficar tranquilo quando estivermos longe deste lugar. Quantas balas você tem? — perguntei.
— Uma.
Como aquela não era hora pra discutir, concordei em deixá-lo cuidar da situação.
— Tome cuidado — falei.
— Beleza, meu chapa — disse Malandro, movendo o palito de dente de um lado para o outro da boca.
— Deem cobertura para ele! — falei. — Agora, Malandro! Vai!
Acompanhamos com as nossas miras enquanto Malandro corria por entre as miniaturas e tentava achar aquelas numeradas. Embora conseguíssemos atirar em um tanque de guerra ou em um jipe militar com metralhadora giratória, às vezes deixávamos um ou outro passar por conta da quantidade de brinquedos que estava diante de nós. Por sorte, estes não acertaram Malandro, pois ele era ágil e desviava de todos os projéteis, que acabavam acertando outros automóveis ou as estantes ou as paredes. Até que Malandro gritou do meio deles: “Achei um!”.
Ele, então, chutou o mais forte que conseguiu e o mini tanque de guerra chocou-se contra a parede. Depois ele disse: “Achei outro!” e pisou várias vezes o mais forte que conseguiu. Faltavam apenas dois. O de número 3, por sorte, estava mais perto de nós do que do Malandro. Então Fumaça metralhou aquela miniatura com a sua UZI e gritou “Achamos o terceiro!” para Malandro. O quarto, no entanto, estava nos fundos da sala, e Malandro correu até lá, sempre se desviando ao máximo dos projéteis, mas alguns acabaram acertando-o na sua panturrilha. Ele cambaleou um pouco, mas voltou a avançar, desta vez mancando.
Enquanto isso, nossas munições estavam quase no final. Até que vimos Malandro pegar o tanque com número quatro, levantá-lo até acima da sua cabeça, lança-lo para o alto e, enquanto o brinquedo ainda estava no ar, Malandro sacou a sua três oitão e deu um tiro certeiro nele. Os pedaços caíram para todos os lados, e depois de um segundo todos os brinquedos da sala pararam de avançar. A porta se abriu. Malandro veio mancando até nós.
— Puta merda, Malandro! — exclamou Pia. — Você está bem?
— Estou cem por cento, meu chapa!
— Mano do céu, que alívio! — falou Fumaça.
— Suponho que ninguém aqui tenha gaze ou esparadrapo — falei.
Todos balançaram a cabeça em negação.
— Tá tudo bem — disse Malandro, tirou o seu cantil do porta-cantil do seu suspensório e molhou bem no local da ferida da panturrilha. — Ai, caralho! — vociferou.
— Isso aí é água? — perguntou Beta.
— Só se for água da boa — respondeu Malandro e tomou um gole. Depois o ofereceu a Beta, que levantou uma mão num gesto de “pare” e balançou a cabeça. Então Malandro soltou “Aí, caraca, mermão!” enquanto olhava, sentado, para o machucado.
— O que foi? — perguntou Fumaça.
— É que foi exatamente aqui que eu me machuquei uma vez, durante um treinamento, quando eu era do exército. Acho que todos aqui já tiveram esse treinamento. É aquele no qual você tem que se arrastar na lama por baixo de uma cerca de arame farpado.
— Sei — disse o Capitão.
— Pois é — continuou Malandro. — Eu estava me arrastando e quando me levantei, apenas metade do meu corpo tinha passado pelo final da cerca. Então eu acabei prendendo minha panturrilha naquela ponta. Foi um descuido do qual me lembro até hoje.
— Eu também já tive um acidente, só que isso faz muito tempo — disse o Chefe. — Sabe aquela rede que você precisa subir e depois descer? Bom, eu consegui subir, a descida é que foi foda, eu acabei prendendo o meu pé e fiquei pendurado de cabeça pra baixo. Foi um vexame e todos riram de mim, mas como eu disse, isso já foi há muito tempo.
— Mas parece que você guardou rancor, se foi muito tempo atrás e ainda se lembra — falou Malandro.
— Errado você não tá.
— Mas ninguém consegue ultrapassar o meu nível de azar — disse Beta.
— Pessoal, agora não é tempo de ficar... — eu disse, mas fui interrompido por um “shhh!” de Pia. Ele disse “Cara, nós estamos praticamente mortos. O que é que tem compartilhar algumas histórias?”, e eu pensei “Só brasileiro pra bater papo numa hora dessas”.
— Isso aconteceu bem antes de eu entrar para este grupo. Estava eu, Pia e uma esquadra de cinco aviões — continuou Beta. — Estávamos em um treinamento. Tudo correu bem, só que quando pousamos na base, bom, assim que a roda dos nossos aviões pouso na base, eu só lembro de acordar, sim, acordar na enfermaria da base com um bando de rostos me encarando de cima. A enfermeira disse que eu desmaiei, provavelmente pela pouca taxa de açúcar no meu sangue. Foi nesse dia que eu fui dispensado da aeronáutica, depois das 14 prisões. Eles finalmente decidiram que eu era um caso perdido e me expulsaram.
— E eu simplesmente pedi demissão — falou Pia. — Eu e Beta somos como irmãos. Onde um estiver, o outro também tem que estar.
— E foi quando achamos esta equipe, depois de tanto procurar por empregos que pagassem bem — disse Beta.
— Certo, certo. Bom, acho que a próxima sala irá trazer muitas lembranças a vocês dois — falei.
— Por quê? — perguntou Pia.
— Ué, porque lá está cheio de aeronaves. Vamos, vamos subindo. Quero sair logo deste inferno.
Assim, depois de subirmos as escadas, chegamos à sala das aeronaves que, para variar, parecia estar na segunda guerra mundial. Alguns mini aviões e mini helicópteros disparavam mini mísseis e projéteis, enquanto outros se desviavam, faziam manobras aéreas, chocavam-se com as paredes ou uns contra os outros e caíam em destroços. Da mesma forma que fizemos nos outros andares, deixamos o Capitão longe dos brinquedos, num canto em que duas paredes encontravam-se. Demorou um pouco até que eles reconhecessem a nossa presença, mas assim que o fizeram, vieram disparados para cima de nós, atirando com tudo o que tinham. Eu não tinha ideia do que fazer desta vez para passarmos por todos, já que a munição de quase todo mundo havia se esgotado. Agora, os únicos que tinham munição eram o Beta, o Pia e o Capitão. Enquanto tentávamos acertar os brinquedos com nossas armas e derrubar o maior número possível, e quando tudo parecia estar perdido, Beta teve uma ideia.
— Acho que a sua lógica se aplica aqui também, Erres — disse ele enquanto disparava com sua magnum.
— Como assim? — perguntei enquanto me desviava dos projéteis e acertava cada avião com a coronha da minha pistola.
— Lá embaixo nós só precisamos destruir os tanques com numeração. Olhe ao seu... — ele se interrompeu e atirou em um caça que vinha na sua direção. — Olhe ao seu redor! — concluiu ele. — Nenhum brinquedo aqui tem numeração!
— E daí? — questionou Pia, atirando com seu fuzil.
— E daí que tinha apenas um avião com numeração, você lembra, Erres?
Eu fiz um esforço digno de Hércules para lembrar do que ele estava falando, mas assim que lembrei, falei: “É o 99?”.
— Sim! Isso mesmo! — falou ele.
— Que merda você tá esperando, então? Ache aquele avião e destrói ele!
— É pra já!
— Erres! — chamou Pia.
— Que foi?
— Pega a arma do Capitão!
— Está bem! — falei, mas quando me virei para pegá-la, vi o Capitão caído no canto em que o deixamos, com uma linha de sangue descendo de baixo do seu queixo até o uniforme da polícia Civil e um buraco no topo da sua cabeça, manchado de sangue. Em suas mãos, a sua submetralhadora.
— Não — eu disse com pesar. — Que droga, Capitão!
— Erres, tudo bem aí? — perguntou Pia.
— O Capitão... o Capitão se matou.
— Puta que pariu! — disse Pia.
— Quando foi que ele fez isso? Eu não ouvi nada — disse Controle.
— Ele deve ter se aproveitado do barulho do fuzil e da magnum e do fato de que estávamos distraídos com os brinquedos — falou Malandro.
— Que bosta! — guinchou Fumaça.
— Agora não é tempo pra ficar se lamentando — falei, pegando a submetralhadora do Capitão e fechando seus olhos, que ainda estavam abertos.
Comecei a disparar contra os brinquedos que, além de atirar, também se desviavam de nossas balas e aquilo sinceramente estava começando a me irritar. Beta, que foi pro meio dos brinquedos, arriscando a sua vida, ainda não havia achado o número 99. Já eu, no calor do momento, tinha esquecido de pegar a munição do Capitão e, quando acabaram-se as minhas balas, eu virei para pegá-la, mas foi aí que Pia gritou de repente. Virei-me de novo e vi que o seu dedo indicador, que segurava o gatilho do seu fuzil, não estava mais lá, e no lugar havia um esguicho de sangue que ia até o chão, onde seu dedo indicador estava.
— Dane-se, máquina maldita! — disse Pia com um esgar de sofrimento, passando a usar o dedo médio para segurar o gatilho e deu um tiro certeiro no avião que havia decepado seu dedo.
Eu não parei para perguntar ou dizer nada, apenas fui até o capitão, retirei a munição do seu porta-carregador, coloquei um pouco da munição no meu porta-carregador e o restante eu usei para recarregar a submetralhadora. Voltei para o lado de Pia e comecei a atirar. Beta, já muito afastado de nós, levou a mão para o alto e pegou um avião que ia na sua direção. Era o de número 99. “Te peguei, desgraçado!”, gritou ele, colocando o cano da arma contra o avião e apertando o gatilho. O brinquedo explodiu-se em vários pedaços. Mas os outros brinquedos, em vez de pararem de atirar, continuaram seu ataque. Desta vez nós conseguimos ouvir o barulho de trancas; estávamos livres para ir.
Mas um dos aviões atirou dois mini-mísseis na direção de Beta. Ele conseguiu se esquivar de um deles, mas o outro acertou sua testa em cheio, deixando um pouco de carne viva e osso do crânio expostos. Ele soltou um grasnido, colocou uma das mãos no local onde havia sido acertado e ajoelhou-se. Em seguida, ele veio correndo até nós o mais rápido que conseguiu, mas um outro avião, desta vez uma réplica maior e feita de latão, apareceu na sua frente, desceu contra ele e, com sua hélice, acertou a mão de Beta que tapava o machucado. Ele grunhiu de dor, tirou a mão do machucado e foi nessa hora que um terceiro avião soltou mais dois mísseis. Um deles atingiu o crânio à mostra, explodindo a área e deixando o cérebro à vista; o segundo atingiu exatamente ali, provocando uma segunda explosão. Partes do seu cérebro voaram e acertaram as paredes, Beta parou de vir até nós e caiu para trás. Nesse momento, Pia entrou em frenesi, parecia ter tomado uma dose extra de endorfina. Ele gritou “Beta!” e começou a avançar no meio dos brinquedos voadores, sem se preocupar com o seu dedo decepado ou com a perda de sangue ou com as hélices que causavam cortes na nossa pele, mesmo que superficiais.
— Pia, não! A porta abriu, vamos! — gritei e coloquei uma mão em seu ombro, mas ele se desvencilhou de mim e apontou o fuzil na minha direção.
— Não tente me parar! — disse ele e começou a avançar entre os aviões e disparar para todos os lados, gritando, quase berrando. Quando enfim chegou até Beta, tentou sentir seu pulso. Eu concluí que Pia estava louco se achava que ia sentir alguma pulsação depois de um mini míssel ter explodido parte do cérebro do seu companheiro. Ele gritou, primeiro de raiva, e depois para nós: “Vocês podem ir, eu vou ficar e destruir tudo aqui até não sobrar uma única hélice!”.
Eu fui correndo até ele e quando o alcancei, falei:
— Você não vai ficar porra nenhuma! Deixa de ser burro! Vai, pega a magnum e a munição dele para a gente poder usar e vamos embora daqui.
Ele olhou para mim, então para trás de mim e disse “Cuidado!”, empurrou-me para o lado e atirou em um avião que descia em uma linha diagonal ao nosso encontro. As balas perfuraram o avião, que caiu aos pedaços.
— Viu só? Você quer mesmo ficar aqui e morrer? — reprimi-o.
— Eu... eu acho que não — disse ele, parecendo mais calmo, mas de certa forma em choque.
— Então pega logo o que a gente precisa e vamos sair daqui! Ou você quer ficar e fazer um ritual de despedida pra ele?
— Tudo bem — falou ele. Agora eu via, pelo seu olhar, que alguma racionalidade havia retornado à sua mente. Ele pegou o que tinha que pegar e nós fomos embora.
Pia entregou a magnum para o Malandro. Abrimos a porta e subimos o próximo lance de escadas, que nos levou ao andar dos bonecos de ventríloquo. Pela primeira vez eu me senti como um animal enjaulado, desejando escapar, fugir para o meu habitat e vagar por aí como um lobo solitário. Mas eu sabia que eu estava longe de sair daquele lugar, pois, embora estivéssemos perto do primeiro andar, havíamos perdido quatro dos nossos companheiros e isso só tendia para o pior.
Assim que entramos na sala (que era bem menor que as outras), ouvimos uma risada familiar. Mas estava tudo escuro lá, então não conseguíamos ver quem estava dando aquela risada. Depois de um momento de silêncio, as luzes se acenderam e vimos que, no meio da sala, havia uma mesa curva (sendo que não havia nada lá quando passamos pela primeira vez), igual àquelas de cassinos e, em pé numa cadeira de frente pra ela, estava um boneco de ventríloquo. Ele ria e falava “Vem pra cá! Vem pra cá!”.
Chegamos mais perto e vimos que o boneco tinha uma face que se assemelhava muito ao Silvio Santos. Foi só então que eu reconheci a risada. Bom, pelo menos aqui não tem bonecos com facas nas mãos, pensei. O boneco continuava dando aquela risada, “ma-hi-hi-hi-hi”. Parecia uma imitação barata, mas se eu fechasse os olhos naquele momento, com certeza pensaria que se tratava do Silvio Santos em pessoa.
Fomos nos aproximando e, quando chegamos à frente da mesa, percebemos que até mesmo a roupa do boneco era igual: o terno de risca de giz, uma gravata azul e o microfonezinho colado no peitoral. Embora não houvesse ninguém o controlando, ele se movimentava com a maior facilidade do mundo. Ele apontou para nós com suas mãos de dedos grudados e começou a falar, movimentando apenas a parte de baixo da sua boca, abrindo-a e fechando-a:
— Mas olha só, olha só o que temos aqui. Vejam bem, não são nove, são só cincomm! Ma-hi-hi-hi-hi, no duro!
Pia não estava aguentando mais aquela palhaçada e apontou o fuzil para o rosto do boneco.
— Dê-me uma razão para não explodir sua cabeça agora mesmo!
— Calma lá! Mas calma lámmmmm! Quem aqui quer sair desta masmorrammmm? Ninguém vai ganhar nada me matandommmm! Ma-hi-hi-hi-hi!
— Só nos diga o que devemos fazer, sua réplica maldita!
— Muita calma nessa hora, muita calma, ma-hi-hi, vejam bemmm, três pessoas vão entrar por aquela porta — disse ele apontando para a porta que ficava do lado das três câmaras que tínhamos visto quando passamos por lá. — E cada uma vai entrar em uma câmarammm. Pois bem, pois bem, então eu lhes farei perguntas e vocês terão que adivinhar a respostammmm. Eu disse, mas eu disse perguntas. Ficou claro?
Nós nos olhamos e concordamos.
— Agora vocês têm que escolher quais de vocês vão entrar — falou o boneco.
— Eu vou — disse Fumaça.
— Eu também — falou Malandro. Ele pegou o palito de dente com uma mão e o quebrou ao meio; depois tacou no chão e pisou em cima dele.
— Vamos logo com isso — disse Pia. — Minhas aves precisam comer, por isso eu não posso me demorar.
— Muito bem, eu disse, mas eu disse muito bem! Prossigam até suas câmaras!
Pia foi primeiro, abriu a porta e entrou. Os outros o seguiram. Eu olhei para as três câmaras, a porta da câmara da esquerda se abriu e eu vi Pia. A segunda também se abriu e eu vi Malandro entrando. Já na da direita quem entrou foi Fumaça. Então se ouviu um barulho de portas sendo trancadas. Em cada câmara havia um microfone preso ao vidro.
De repente, abriram-se dois buracos na borda, do nosso lado da mesa, e dos dois saíram microfones; outro microfone apareceu para o boneco, também saído de um buraco que se formou na parte dele da mesa.
— Agora vamos para as regras — disse ele para o microfone. — Eu irei fazer uma perguntammm, os dois cavalheiros à minha frente podem combinar a resposta entre eles, mas os que estão dentro das câmaras têm que adivinhar a respostammm. Durante a combinação da resposta, as câmaras ficarão seladas com um filme preto para que os que estiverem dentro delas não possam ler os lábios dos que estão de forammmm. Se a resposta for a mesma para todos, então os três saem ilesos, mas se qualquer um que estiver na câmara responder errado, sofrerá as consequências. Os cavalheiros entenderam as regras?
— Entendi — falamos eu e Controle.
Um filme preto de repente cobriu os vidros das câmaras.
— Muito bem, eu disse muito bem. Todas as portas estão trancadas e seladas. Agora vamos às perguntas valendo um milhão de agulhas: qual é o correto, biscoito ou bolacha?
— Tomá no cu! — falei. — Isso só pode ser algum tipo de piada.
— Não, não, não, não, eu não vou jogar esse jogo — disse Controle, se ajoelhando e começando a rezar. Foi a primeira vez que eu vi um ateu se converter.
— Nós precisamos fazer isso, Controle. Vamos, levante-se.
— Mas como vamos saber qual é a resposta certa? — perguntou, apavorado. — Essa é uma guerra travada há anos e ninguém ainda concorda com nada! — Controle estava descontrolado.
— Precisamos escolher. Eu tenho um plano.
O boneco apenas nos observava com aqueles olhos medonhos.
— Estamos em Minas Gerais, não é? — perguntei ao Controle.
— Sim, sim.
— E aqui as pessoas falam bolacha, não importa o que esteja escrito na embalagem, não é?
— É, é, é, é, isso mesmo, isso mesmo. Mas e daí, o que a gente faz?
— Vamos combinar que a resposta é bolacha, ok?
— Ok, eu acho.
— Ô, boneco maldito! — chamei.
— Digammm.
— Nós chegamos a uma resposta — falei. — O certo é bolacha.
— Muito bemmmm! Agora vamos ver que respostas darão os condenados.
O filme se desintegrou, então as câmaras do Malandro e do Fumaça ficaram escuras e somente a do Pia ficou acesa. O boneco fez a mesma pergunta a ele.
— Bolacha — disse.
— Muito bemmmm, agora o outro, vamos lá!
Então a luz do Pia se apagou e a do Malandro se acendeu.
— Biscoito — disse ele.
— Não! — gritamos eu e Controle. Começamos a gesticular a palavra “não”, indicando para ele dizer outra coisa, mas o vidro da câmara dele ficou escuro de novo.
— Na-na-ni-na-naummmm, não vale dar dicas!
— Ele não tem direito a mudar de resposta? — perguntei.
— Somente no final da rodadammm.
— Está certo. Vamos continuar com essa porcaria.
— Excelentemmm! Agora o terceiro condenado.
A luz da câmara do Malandro apagou-se e a luz da câmara do Fumaça acendeu-se.
— Eu diria bolacha — falou ele. — Mas como isto é definitivamente uma armadilha, vou dizer biscoito. Não vou participar dessa guerra infantil entre Rio e São Paulo. Nós temos que ser irmãos e ceder às vezes.
— Eu ouvi, mas eu ouvi biscoito. Algum dos condenados quer mudar a sua respostammmm? — perguntou o boneco, desta vez falando no microfone a sua frente. Os nossos companheiros escutavam a pergunta com atenção e tensos.
— Não desejo mudar minha resposta — disse Fumaça.
— Eu não — disse Malandro.
— Não quero mudar minha resposta — disse Pia.
— Muito bemmmmm. E a resposta bolacha está....
Naquele momento eu pude jurar que ouvi tambores rufando em algum lugar, talvez fosse coisa da minha cabeça.
— Errada! — disse o boneco. — 1 milhão de agulhas para o candidato à esquerdammm!
Das paredes dos lados, de trás e do teto da câmara do Pia surgiram agulhas de 30 centímetros que o acertaram mais rápido do que uma vespa ou um marimbondo. Ele ficou espetado por todos os lados, exceto pela frente, igual a um porco espinho. Ele não conseguiu nem gritar, pois as agulhas perfuraram o seu crânio e o seu cérebro. Sangue escorreu do seu nariz, da sua boca e dos seus ouvidos, e ele caiu para a frente, dando de cara com o vidro; ele deslizou pelo vidro, deixando um rastro de sangue.
— Seu merdinha! — gritei e apontei a submetralhadora para o boneco. — Você está sendo arbitrário, é esse o seu grande truque? Por que o matou?
— Acalmem os ânimos! Eu nunca falei que a resposta que vocês dois deram era a resposta certa. Apenas disse para escolherem uma respostammm. Ma-hi-hi-hi-hi!
— Cacete! — falei e abaixei a arma.
— Pia... — disse Controle. — O que fizemos?
— Não fizemos nada — eu disse. — São as armadilhas deste lugar.
Malandro e Fumaça pareceram entender nossas expressões de angústia, embora não pudessem ver o que havia acontecido com Pia.
— Mas que bosta! — falou Controle. — O que podemos fazer?
— No máximo, esperar por sorte — respondi.
— Muito bemmmm — disse o boneco. — Agora para a próxima perguntammmm, valendo um milhão de graus Celsius!
— Espera, quantas perguntas serão? — questionei.
— Apenas três, e estamos na segundammmm.
Aquela merda de “ammmm” estava começando a me dar nos nervos.
— Então vai logo, termina essa porra — falei.
— Qual é o correto: arroz por cima do feijão ou feijão por cima do arroz?
— Aí não dá — resmunguei. — Quer me foder, me beija!
— Espera — disse Controle. — Que tal irmos de feijão por cima do arroz?
— Como assim?
— Pensa, qual que soa melhor aos ouvidos, arroz com feijão ou feijão com arroz?
— Definitivamente a segunda opção.
— A resposta certa é feijão por cima do arroz!
— Muito bemmm! — disse, e então fez a mesma pergunta para Malandro e Fumaça.
Foi a vez de Malandro responder:
— A resposta é feijão por cima do arroz — disse.
— A resposta é nenhuma das duas, ambos arroz e feijão devem ser colocados lado a lado, sem misturá-los — disse Fumaça.
— Muito bem, senhoras e senhores da plateiammm — disse ele para nós e talvez para todos os bonecos sinistros daquela sala —, os condenados fizeram suas escolhas. Têm certeza de que não querem mudar sua resposta?
— Não — disse Malandro.
— Com certeza não — disse Fumaça.
— Certo então, a resposta feijão por cima do arroz está eeeeeeeeeeerrada!
Olhamos com desilusão para o Malandro, e ele percebeu nossos rostos tristes. Ele fez um aceno para nós, tocando com o dedo indicador e o médio no quepe, e nos deu um sorriso pouco antes de ser queimado vivo. Nuvens e mais nuvens de fogo preencheram toda a câmara. Nós só podíamos ver a silhueta dele correndo de um lado ao outro da câmara, cheio de agonia, depois ele colocou suas mãos no vidro e ficou batendo nele, até que suas forças se esvaíram, assim como sua vida, e ele desfaleceu, escorregando as mãos no vidro. Não conseguimos ouvir seus gritos, mas tínhamos certeza de que ele gritara com todas as suas forças.
— Ma-hi-hi-hi-hi! Essa foi boa ou não foi? — perguntou o boneco para uma plateia que não estava viva. — Agora, respeitável público, nós temos um sortudo conosco. É ele, o Fumaçammmmmm! Era exatamente essa a respostammm.
Eu e Controle já estávamos no ápice da nossa resiliência. Para as duas últimas perguntas nós demos respostas erradas. Mas parecia que Fumaça tinha feito jus ao nome e escapara de uma morte agonizante.
— É hora da terceira perguntammmm, valendo um milhão de partículas de gás tóxico: quando se conhece alguém, dá-se um ou dois beijos no rosto da pessoammmm?
— Eu já nem sei mais — falei, fazendo um sinal de tanto faz. — Eu sou do Rio, e lá damos dois beijos.
— E eu sou de São Paulo, onde se dá apenas um beijo — disse Controle. — O Fumaça é de São Paulo também. Mas nada vai depender da nossa resposta. Vai depender da resposta que ele vai dar. Sendo assim, a resposta é dois beijos. Fala aí, Erres.
— Sim, concordo com ele.
— Senhoras e senhores façam suas apostas! Pois agora é a hora da verdade. Fumaça, qual é o corretoammmm, um ou dois beijos?
— Nenhum dos dois — respondeu ele. — Você não é íntimo da pessoa se acabou de conhecê-la, portanto apenas um aperto de mão basta.
— Não quer mudar a sua respostammm?
— Nem fodendo.
— Pois bem, essa resposta está eeeeeeeeeeeeeeeeexata!
Eu e Controle ficamos aliviados. Finalmente, tudo ia acabar. Mas foi então que o maldito boneco franziu as sobrancelhas, adquirindo uma expressão medonha, e deu uma risada, mas esta não era a do Silvio Santos. Era uma risada que parecia vir do âmago das trevas, uma risada que eu jamais vou esquecer. E quando Fumaça tentou abrir a porta da sua câmara, a maçaneta saiu na sua mão. Ele começou a tossir e nós vimos ele se asfixiar até a morte com um gás verde que saía das paredes e do teto. O boneco continuou dando sua risada maligna, e eu já não aguentava mais aquilo. Fiquei louco. Encostei o cano da submetralhadora na testa daquele boneco assassino.
— Por que você fez isso? — perguntei, os meus dentes rangendo.
— Ora, orammm, eu posso lhes perguntar a mesma coisammm. Por que fizeram o que fizerammmmm?
— Não mude de assunto! — disse Controle, enraivecido. — Nós jogamos limpo, era para o Fumaça estar vivo, mas você desrespeitou as regras do jogo e o matou.
— E o que vocês farão quanto a isso? — perguntou o boneco.
— Controle, se eu matar esse demônio, talvez nunca sairemos daqui, mas minha mão tá coçando pra metralhar esse desgraçado.
— Por mim, tudo bem — falou Controle.
— Mas vejam só, mas vejam só, os nossos participantes de repente criaram coragemmm!
— Erres, mata logo esse filho da puta. Que se dane se ficarmos presos aqui.
Mas, na hora que eu ia pressionar o gatilho, Controle disse “espera!” e eu disse “o quê?”.
Controle olhou para o boneco.
— Você nunca disse o que aconteceria se te matássemos, não é?
— Corretommmm, eu apenas disse que vocês não ganhariam nadammm. Mas por que a perguntammmm?
— Porque a sua resposta está eeeeeeeeeeeeeeeeeexatammmmmmmmm!!!! — gritou Controle, tomou a submetralhadora das minhas mãos e descarregou o cartucho na cara e no corpo do boneco, partindo-o ao meio e quebrando o encosto da cadeira em lascas. Logo após isso, ouvimos barulhos de trancas e engrenagens e uma parte da estante que estava atrás de nós se abriu. Mas antes de subirmos para o segundo andar, falei para o Controle pegar o fuzil do Pia. Ele, então, foi até a câmara, pegou a arma e a munição e voltou; entregou-os para mim e nós subimos.
Enquanto subíamos, falei para Controle prosseguir com cautela, pois sairíamos exatamente no meio das peças, e que, por isso, qualquer descuido poderia ser fatal.
— Nós não sabemos o que nos aguarda lá em cima. Pode ser que aquelas peças criem vida ou qualquer coisa do tipo. Eu vou primeiro, irei abrir o alçapão para checar se há algum perigo. Espere pelo meu sinal.
— Tá certo.
Assim, quando chegamos ao alçapão, eu o abri só um pouco e olhei pela fresta. Não parecia haver sinal de perigo. Até onde eu conseguia ver, a base das peças permanecia imóvel. Portanto eu dei o sinal para o Controle, abri o alçapão e esperei por ele. Nós começamos andar até o pequeno lance de escadas que nos levaria ao primeiro andar e então escaparíamos daquele pesadelo. As peças continuavam imóveis, mas eu e Controle ficamos atentos, sempre olhando para trás vez ou outra. Quando chegamos à porta, tentei abri-la, mas estava trancada. E ainda nenhum sinal de perigo vindo das peças.
— Essa porta não estava trancada quanto nós entramos! Mas que merda! — exclamei.
— O que é que a gente faz agora? — perguntou Controle.
— Calma, deixa eu pensar.
Passaram-se alguns segundos e eu continuava sem ideias, mas então eu olhei para a porta e vi que, diferente das outras, esta tinha uma fechadura, que também não estava lá quanto entramos. Então eu falei para o Controle: “Talvez tenhamos que encontrar a chave em uma das peças”.
— Nesse caso, vamos logo. São de porcelana, não são? Deve ser fácil quebrá-las.
— Sim, vamos lá. Pode ser que a chave esteja dentro do rei.
Nós descemos as escadas e, na mesma hora em que pisamos no chão quadriculado, ouvimos um relincho e, ao olharmos na direção das peças, vimos que as elas haviam começado a se movimentar. Os peões posicionaram seus escudos e espadas, os cavalos bateram os cascos no chão e os cavaleiros montados neles prepararam suas lanças. Os bispos fizeram o sinal da cruz, as torres criaram pernas aracnídeas de porcelana e no topo delas pequenos arqueiros apareceram. Rei e rainha saíram dos seus tronos e bateram a base dos seus cetros no chão. Eu e Controle nos olhamos.
— Tu ainda tem energia pra acabar com esses putos? — perguntei. Controle, em resposta, recarregou a submetralhadora. Aquilo foi o suficiente para mim.
Primeiro vieram os peões, todos juntos e de uma vez. Nós precisamos atirar para quebrar os escudos deles primeiro para depois acertarmos o corpo, o que nos deu certo trabalho, pois eles avançavam rápido e havia apenas dois de nós. Quando conseguimos quebrar seus escudos, eles se dividiram em grupos de quatro, um grupo para mim e um para Controle. As espadas que eles brandiam e atacavam em diagonal, de cima para baixo, de baixo para cima e pelos lados, eram longas, e foi muito difícil desviar de todas as investidas. Eu consegui quebrar 3 do meu grupo, mas o último me acertou com um golpe em diagonal, causando um pequeno rasgo no meu colete da polícia civil, mas não o suficiente para fazer cair o meu porta-carregador no chão.
Logo após isso, ele veio com um ataque de baixo para cima, o qual acertou o meu fuzil, que saiu voando, caindo perto de onde o Controle estava. Então o peão aproveitou a oportunidade para vir com um ataque reto; eu desviei para o lado e rolei no chão. Controle disse “Erres!” e chutou o fuzil para a minha direção. No momento em que o peão ia cravar sua espada no meu peitoral, eu desviei e atirei nela, que se quebrou, e então nele, que caiu em pedaços.
Controle estava lutando com dois peões, pois tinha finalizado os dois primeiros. Eu fui até lá e o ajudei a acabar com os restantes. Fuzilei um deles. Controle foi se afastar do único que sobrou e tropeçou para trás. Mesmo sentado, ele tentou atirar no peão, mas suas balas haviam acabado. Ao ver que ele estava pegando a munição para recarregar, percebi que não ia dar tempo e o peão iria acertá-lo com um golpe de cima para baixo. Então chamei “Ô, otário!” O peão olhou para mim, eu disse “Ad Summus!” e atirei, reduzindo-o a cacos de porcelana.
— Eu nem sei como te agradecer! — disse Controle, levantando-se.
— Não me agradeça ainda — falei, apontando para o resto das peças.
Os cavalos vieram trotando para cima de nós com seus cavaleiros apontando suas lanças. Controle conseguiu se desviar da lança do lado dele, mas eu não tive a mesma sorte e acabei sendo acertado no braço, de raspão. Franzi o rosto de dor, mas continuei em pé e, ao virar para trás, vi que ambos — o cavalo e o cavaleiro — estavam dando meia volta.
Aproveitei a oportunidade e mandei bala neles, primeiro no cavalo, que se quebrou, e depois no cavaleiro que, ao cair do cavalo, veio correndo na minha direção com a lança. Olhei para Controle e vi que ele tinha terminado com os seus, mas as torres começaram a se movimentar com suas pernas aterrorizantes e os pequeninos arqueiros começaram a atirar flechas de porcelana em nós. Conseguimos desviar da primeira alvejada de flechas, mas na segunda uma flecha acertou o meu pé direito e a outra o meu braço esquerdo. Eu me curvei no chão, arranquei-as, sentindo muita dor, e continuei atirando sem parar na torre até destruí-la por completo. Controle não teve o mesmo problema do lado dele, ele conseguiu se desviar de todas as alvejadas e acabar com a última torre.
Depois vieram os bispos. A cada sinal da cruz que eles faziam, nós éramos jogados muito para trás pelo ar por alguns metros, era como se um campo de força emanasse dos bispos a cada vez que eles faziam o sinal da cruz. Levantamo-nos e os vimos fazendo o sinal da cruz de novo, na mesma hora que atiramos. As balas voltaram para nossa direção na mesma velocidade. Por alguma força do destino, as balas não me acertaram, mas Controle tomou um tiro na barriga, outro na coxa e outro no braço. Ele caiu no chão e grasnou de dor. Nesse momento os bispos pararam de fazer o sinal e eu aproveitei para atirar em um deles, derrotando-o. Quando fui atirar no outro, ele começou a fazer o sinal da cruz, e o cano da minha arma ainda estava apontado para a parede atrás do bispo que eu finalizei. Não daria tempo, de novo eu seria lançado longe. Mas de repente sua mão explodiu, então o resto do seu corpo quebrou-se. Olhei para o meu lado e vi que Controle estava deitado em uma poça de sangue, segurando a submetralhadora com apenas uma mão e apontada para a frente, fumaça saía do cano dela. Ele então olhou para mim, fez o sinal de joia com a outra mão e caiu morto.
Agora só restava eu, o rei e a rainha, ela saiu do trono e veio correndo na minha direção e gritando, como se fosse feita de ferro em vez de porcelana. Fuzilei aquela desgraçada e então apontei a arma para o rei, que continuava sentado majestoso em seu trono.
— Suas últimas palavras? — perguntei, e ele nada respondeu. Eu então recarreguei o fuzil e fiz uma linha de saraivada de balas de cima para baixo, da cabeça do rei até a base do seu trono. Ver ele se quebrando foi satisfatório e relaxante. Então comecei a procurar pelos detritos se havia alguma chave e a achei. Era uma chave dourada, com o cabo na forma de uma coroa. Enquanto eu ia para a porta, dei uma última olhada para Controle. Ele com certeza daria um ótimo soldado, mas as circunstâncias eram outras.
Destranquei a porta e a primeira coisa que eu fiz ao passar por ela foi apontar para a pequena estante de ursinhos e macaquinhos de pelúcia. Eu esperava que a qualquer momento eles pulassem para cima de mim com facas, igual ao boneco Chucky. Mas ainda bem que nada disso aconteceu. Então passei pela próxima porta já que estava aberta, já esgotado e no meu limite. Estava claro lá fora. Olhei no meu relógio que indicava que era meio-dia. Eu estava mancando devido ao machucado no meu pé, mas mantinha meu fuzil apontado para frente caso alguma outra aberração aparecesse.
Os corpos dos seguranças que matamos já estavam pútridos, um forte odor emanava deles e havia moscas, assim como urubus rodeando-os e comendo sua carne. O sangue havia secado. De repente, foi como se minha mente tivesse disparado um alarme que me fez lembrar das marionetes penduradas no teto do galpão e imediatamente apontei para lá, mas não havia nenhuma marionete, apenas fios pendendo dos ganchos e, é claro, o Maverick V8. Foi então que eu ouvi uma risadinha, depois outra, seguida de outra e muitas outras vindas da minha direita. Eu me virei com a arma preparada e o que vi me arrepiou até a alma: detrás dos grossos pinheiros acima e por toda a colina do Bosque das Traças, as marionetes me espiavam com seus olhos e sorrisos assustadores. Elas estavam não só sorrindo, mas rindo; era como se pudessem ver o meu desespero, o meu medo e o meu desejo por liberdade. Se pelo menos o bosque se chamasse Bosque dos Cupins, pensei com desolação. Elas então saíram detrás dos pinheiros e vieram correndo até mim, e vi que cada uma segurava uma faca.
— VEM! PODE VIR PORRA!
Umas vieram pelo portão automático que estava aberto e outras subiram pelos muros com cerca elétrica. Eu fuzilei todas, o que assustou os urubus, que voaram em debandada. Eu recarregava a arma o mais rápido que podia. Atirava, recarregava e repetia o ciclo como um louco. Algumas marionetes chegaram a se aproximar até cinco metros de mim, mas eu não deixava se aproximarem mais que isso.
— VEM, VEM, VEM, VEM! AAAHHHHHHHH! — eu gritava e disparava contra as malditas marionetes.
A minha munição acabou quando restavam duas delas. Eu larguei a arma no chão e fiquei em posição de combate. Fiz um sinal com as mãos de “pode vir!” para elas, então a da esquerda veio primeiro, com sua faca apontada para mim, ela tentou acertar o meu pescoço em um ataque reto, mas eu desviei e agarrei o seu braço, desarmei-a e, embora elas tivessem um metro e sessenta, eram feitas de madeira leve, sendo assim eu a usei para bater na outra, que caiu no chão, mas ainda segurava a sua faca. Então eu bati e bati e bati uma na outra até não aguentar mais, depois larguei a que eu segurava e fui até a outra que estava no chão. Pisei no pulso dela e tirei a faca da sua mão.
— Você quer dar risada? ENTÃO RI AGORA, SUA FILHA DA PUTA! — gritei, cravando a faca no meio da cabeça dela. Quando me virei, aquela marionete que eu tinha segurado havia pegado a sua faca de novo e veio agitando-a para lá e para cá que nem louca. Eu novamente me desviei, agarrei o seu braço e o quebrei; depois tirei a faca da mão dela e enfiei no meio do abdômen dela. Então quebrei todos os membros do seu corpo e, assim que ela caiu, ainda se estrebuchando, eu comecei a pisar na cabeça dela até eu pedir para parar.
Quando finalmente fiquei esvaído de minhas forças, caí sentado. Olhei para as minhas mãos, tapei os meus olhos e comecei a chorar feito uma criança. Eu havia sobrevivido. Eu sobrevivi!, pensei. Eu mal podia acreditar, mas era verdade. Eu tinha escapado do pesadelo! Gritei o mais alto que pude até que meus dois pulmões se esvaziassem. Então eu parei de chorar, levantei-me, bati a poeira das minhas calças e subi a colina do Bosque das Traças, mancando. Passei pelo estacionamento do supermercado, fui até o quarteirão onde a viatura falsa da PM estava estacionada e dirigi para a nossa base secreta.
Pablo Vieira Neves nasceu Rio de Janeiro, onde viveu até os 14 anos. Vive em Varginha-MG, desde então. Inspirado em um jogo de videogame chamado Alan Wake, passou a escrever. Escreve desde então por diversão. Publicou em no Wattpad (conta deletada, atualmente), no Recanto das Letras e também publicou em uma feira literária, em Varginha.
Redes Sociais:
No Twitter: @neves_vieira
No Facebook: @paulo.alef.75
Comments