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Brinquedologia - Parte 4 (FINAL)

A primeira coisa que fiz quando cheguei foi preparar um miojo, pois eu estava morrendo de fome. Liguei a TV e parecia que nenhuma emissora havia noticiado nada ainda. Depois, fui descansar e dormi até a manhã do dia seguinte. Acordei cansado, devido à quantidade de horas que passei dormindo.

Joguei o uniforme fora, coloquei minhas roupas e liguei de novo a televisão. E ainda nada sendo noticiado em relação ao massacre do primeiro andar daquele inferno. Na mesma hora que eu desliguei a TV, ouvi alguém batendo na porta da base, que eu, graças a Deus, havia trancado. Pensei “Só pode ser a polícia. Mas que merda, vão me prender ou me matar aqui mesmo. Mas por que não vi notícias sobre o que aconteceu ontem?”. Fui até a sala de armas e peguei a magnum. Andei devagar até a porta, sempre atento a um possível arrombamento. Então perguntei “Quem é?” e ouvi como resposta “É o Panela!”.

Não sei como descrever o alívio que eu senti ao ouvir aquilo. Peguei a chave do meu bolso e destranquei a porta. O Panela que eu vi não estava rindo ou sorrindo ou com um meio sorriso. Ele estava com um olhar assustado e parecia exausto. Não havia mais sangue em sua boca, mas uma mancha avermelhada, pois ele havia passado a mão para limpar o sangue. Assim que abri a porta, ele caiu para a frente e eu tive que segurá-lo para que não desse de cara com o chão.

— Caramba, cara! — disse eu enquanto o levava para o dormitório. — Você está vivo! Mas como isso é possível? Eu não senti sua pulsação.

Mas Panela estava desacordado (desta vez eu tinha certeza, pois senti a pulsação), ou seja, impossibilitado de responder. Eu o deixei na sua cama e voltei para a sala que compartilhava o espaço com uma mesa de sinuca, liguei a TV e continuei navegando pelos canais e então, finalmente, achei um canal com pessoas sendo entrevistadas sobre a cerca.

Todos pareciam curiosos, querendo saber o que acontecera, mas quem dedurou toda a operação foi o maldito gerente do supermercado. “Foi a PM”, falava ele. “Eles entraram aqui e disseram que iam fazer uma vistoria porque parecia que alguns traficantes haviam entrado no Bosque das Traças”. Lembrei de que Malandro havia prometido pagar mais 200 reais para ele caso ele mantivesse a boca fechada. Que merda, esqueci desse detalhe, agora fodeu tudo, pensei. Mas ainda havia uma chance de escaparmos da prisão, visto que ninguém sabia onde era a nossa base secreta e também porque todos pensariam que foram membros da PM de fato que entraram no mato. Mesmo que encontrassem os uniformes de PM que tínhamos deixado no bosque, ainda gastariam tempo procurando a quem aqueles uniformes pertenciam, mas as chances de descobrirem seriam ínfimas. Só que havia um detalhe que me deixara com a pulga atrás da orelha: quem era Arthur Cortês Solene da Silva?

Fui até a sala do projetor, puxei um banco e me sentei em frente à nossa mesinha ancestral na qual o laptop estava. Busquei pelo nome e não achei nada. Nenhum registro, documento ou identidade. Nem certidão de nascimento ou de casamento. Não havia dados sobre ele em lugar nenhum, em site algum. As únicas informações que nós tivemos sobre ele vieram do seu concorrente, Garcia Júnior, ou seja, as duas fotos, uma de frente e a outra com Arthur no coreto da Praça do Monte Tênue.

O nome da fábrica de brinquedos do Garcia era Brincadeira de Criança e ele sempre fez sucesso no Brasil inteiro, até que a Brinquedologia apareceu e começou a fazer mais sucesso ainda, por isso Garcia pensou que se eliminássemos o dono, seria o fim da Brinquedologia, pois os filhos de Solene ainda eram crianças e sua esposa não tinha capacidade para administrar os negócios do marido, pelo menos não da forma como ele administrava e, além disso, as crianças adoravam a imagem do pai e suas roupas extravagantes, ele era a imagem da fábrica e das lojas filiais. Portanto, pesquisei o endereço da casa do Garcia na internet e achei. Fui à garagem da base e liguei o Corolla preto que nossa equipe geralmente usava nas missões que nos eram dadas, digitei o endereço no GPS e dirigi até lá. Quando cheguei, estacionei o carro e pressionei o botão do interfone.

Alô? — disse Garcia pelo interfone.

— Vim tratar de negócios com você em relação ao Arthur Cortês Solene da Silva. — (Porra!, pensei, falar esse nome inteiro já está se tornando vergonhoso).

Ah, sim, claro — disse ele. Eu ouvi um barulho de botão sendo pressionado e do portão automático sendo destrancado. Entrei na casa e ele me recebeu na porta da sala. — Por favor, entre — disse. Era um homem branco de cabelo preto que ia até as orelhas, tinha o bigode e a barba por fazer e seus olhos eram castanhos. Ele vestia uma camiseta azul e uma bermuda de algodão bege. Andamos pela casa até o seu escritório, cuja luz ele ligou, depois se sentou na sua cadeira reclinável e esticou a mão para a cadeira que estava do outro lado da mesa dele e pediu para eu sentar-me. Eu disse que não queria.

— Só vim avisar-lhe que Cortês está morto. Você não precisa se preocupar mais com ele.

— E como vou saber se você não está mentindo?

— Logo, logo será noticiado na mídia. Agora é a vez de você fazer a sua parte e me... nos pagar.

— Entendo. Bom, neste caso, aqui está — disse ele, tirando debaixo da mesa uma maleta cinza e virando-a para mim. Eu a abri e lá estavam os trinta milhões que ele havia prometido. Antes de ir embora, perguntei a ele como que ele tinha conseguido a foto do rosto do Solene.

— Eu fui a todas as lojas de fotos desta cidade, pedindo pela foto do rosto dele e oferecendo mil reais por ela. Quase nenhuma loja a tinha, até que sobrou uma única loja de fotos e pedi ao dono o arquivo dela para que eu passasse para o meu pen drive, para que, desta forma, eu pudesse enviar a vocês. É óbvio que ele se recusou a fazer isso de primeira, assim como todos os donos das outras lojas. Então eu coloquei mil reais na mesa dele, disse que era pegar ou largar. Ele na mesma hora disse que não sabia se tinha a foto, me pediu para esperar e procurou pelo arquivo. Tomou certo tempo, mas ele o achou e passou para o meu pen drive. Eu o agradeci e foi isso.

— Entendi. E você não tem mais nenhuma informação sobre ele?

— Não tenho. Se eu tivesse, teria enviado para vocês. Mas e quanto ao Netinho? — perguntou. — Deu conta dele?

— Faça o seu trabalho sujo você mesmo — respondi, pegando a mala e indo embora.

Ele pressionou o botão do interfone que estava em cima da mesa e o portão automático se abriu; eu entrei no carro e nunca mais me encontrei com ele.

Mas ainda faltava uma coisa a ser feita: perguntar ao Netinho sobre Arthur. Decidi fazê-lo uma visitinha. Peguei uma pistola com silenciador da sala de armas da base. Deixei Panela descansando no dormitório e fui até o bar que estava na foto das nossas instruções, o Paz e Harmonia. Sentei em um dos bancos do balcão e fiquei esperando ele aparecer.

Eram seis e meia da noite quando cheguei, e eram sete horas quando ele apareceu. Ele cumprimentou dois amigos que estavam sentados a uma mesa e sentou-se com eles. Conversaram, beberam, a mesma rotina de qualquer bar. Passou-se mais algum tempo e os amigos se despediram, cada um foi para um canto, e eu segui Netinho.

Mantive uma distância de 10 metros entre eu e ele, para não levantar suspeitas. Assim que ele chegou ao portão da sua casa (que por sorte estava numa rua deserta e não havia câmeras nem na casa dele e nem por perto), eu me aproximei por trás dele e encostei o cano da pistola nas suas costas. Falei: “Não tente gritar nem revidar, ou então você vai morrer aqui mesmo”. Ele falou “Tudo bem, por favor, pode pegar tudo o que quiser. Eu tenho dinheiro no meu bolso, pode pegar”.

— Eu não quero a droga do seu dinheiro.

— Então o que você quer?

— Quero informações sobre Arthur Cortês Solene da Silva.

— Eu te conto tudo o que você quiser saber. Só por favor, não me machuque.

— Abre o portão pra gente entrar. Conversar dentro da sua casa vai ser melhor.

Nós entramos e nos sentamos no sofá da sala de estar, minha arma apontada desta vez para a cabeça dele.

— Quem é ele? — perguntei.

— O Arthur?

— Não, o Papai Noel! Porra! Claro que é o Arthur.

— Ele é dono da fábrica de brinquedos, a Brinquedologia.

— E o que mais?

— Ele apareceu meio que do nada, abriu uma fábrica em São Paulo, depois em Belo Horizonte e desde então foi abrindo filiais por todo o país e tem tido sucesso entre as crianças. Ele comprou minha propriedade e construiu um escritório no lugar. Disse que seria o seu refúgio. Ele também me falou que o nome inteiro dele era inventado. — Nessa hora, eu pensei Já dava para imaginar. — Moço, eu juro que não sei de mais nada.

— Você não tem nada que ele tenha te dado, algum objeto, qualquer coisa?

— Só tenho o dinheiro que ele me pagou pelas terras, pode pegar se quiser.

— Já falei que não quero o seu dinheiro.

Merda, pensei, não tenho mais nenhuma fonte de informação.

— Se você contar para alguém ou chamar a polícia, eu te acho e te mato. Você entendeu?

— Entendi. Eu não vou falar nada pra ninguém, moço, eu juro.

— Agora destranca o portão, vem, anda.

Fomos até o portão e na hora que ele pegou o molho de chaves, teve dificuldade para achar a chave certa, suas mãos tremiam de nervosismo. Então ele a achou, destrancou o portão para mim e eu saí dali o mais rápido que pude, frustrado por não ter descoberto nada de relevante sobre Cortês Solene.

Quando cheguei na base, abri a porta e dei de cara com Panela comendo um pacote de salgadinho no sofá enquanto assistia à televisão. Ele estava usando sua camiseta sem manga e sua bermuda tactel. Ele fez menção de pegar a pistola que estava ao lado dele, mas depois que viu que era eu, recolheu a mão.

Mermão, que susto você me deu! — disse ele. — Pensei que fosse a polícia.

— Se eu fosse da polícia, teria arrombado a porta e não aberto.

— Verdade.

— Tô vendo que você já está melhor.

— Estou novinho em folha.

— Mas me conta cara, como que você está vivo?

— Acho que quando levei aquela porrada, posso ter perdido meus sinais vitais por algumas horas. Tudo de que me lembro foi de acordar na sala dos animatrônicos, mas eu tive sorte porque já estavam todos destruídos. Então eu subi as escadas, mancando, bem devagar, mas subi; abri a porta com válvula e assim por diante. Inclusive fui encharcado de água quando a abri, achei estranho aquilo. E quanto mais eu subia, mais ansioso eu ficava porque quando cheguei à sala das miniaturas de avião, vi que o Capitão e o Beta estavam mortos; depois, na hora que entrei na sala dos bonecos de ventríloquo, havia três cadáveres, um em cada câmara, um deles cheio de agulhas, outro queimado e o outro normal, mas como estavam caídos de bruços, não consegui identificá-los e ao alcançar o andar das peças de xadrez, dei de cara com o cadáver do Controle, assim como vi que todas as peças estavam reduzidas a pedaços. Quando cheguei lá fora já estava escuro e eu vi aquelas marionetes todas em lascas, junto com os corpos dos seguranças que matamos. Mas a única coisa que eu pensava era chegar aqui na base, descansar, tomar um banho... e comer, comer muito. Eu estava morto de fome! Mas, me diz, quem eram os três cadáveres que vi na sala dos bonecos de ventríloquo?

— Eram o Pia, o Malandro e o Fumaça.

— Meu Deus! — disse ele, cabisbaixo.

— Pois é. — Sentei-me ao lado dele e peguei um pouco do salgadinho.

— O que você acha que fez os brinquedos começarem a atacar? Quer dizer, eram brinquedos, não tinham vida e, de repente, criaram consciência. Acha que foi Deus nos punindo pelo que fizemos?

— Não, não acho que Deus tenha algo a ver com isso.

— Então o que você acha que foi?

— Acredito que... — Eu ia dizer, mas então falei “Não ri”, e Panela fez um movimento de zíper fechando a sua boca.

— Acredito que era o amor dele, do Cortês, pelas suas criações. O amor por elas era tão intenso que fez elas ganharem vida, e quando nós o matamos, ódio surgiu de dentro delas. É o que eu acho que aconteceu.

— Pode ter sido isso. Mas e quanto a todos aqueles enigmas? Será que Arthur previu que iríamos invadir o local?

— Acho que ele tinha considerado a possibilidade de alguém tentar invadir, por qualquer razão que fosse, caso os guardas não fossem o suficiente. E pode ser que até mesmo todo o edifício, do primeiro ao décimo andar, tenha criado vida, assim como os brinquedos. Não é a melhor das teorias, mas é o que eu penso. Agora, quanto ao Cortês ter previsto nossa invasão, aí eu já não sei. Mas depois de tudo o que aconteceu, eu não duvido mais de nada. Ah, e outra coisa.

— O quê?

— O nome inteiro dele é inventado.

— Já dava para imaginar — disse Panela.

— Sabe que eu pensei a mesma coisa quando descobri isso?

— É porque faz sentido. Mas e agora, o que fazemos?

— Eu não faço a menor ideia.

— Sabe o que eu acho?

— O quê?

— Você tem jeito com as palavras, agora mesmo soltou duas teorias que eu nunca tinha pensado. Por que não tenta fazer faculdade de filosofia?

— Tu tá zoando com a minha cara?

— Claro que não! — disse ele, pegando mais um bocado de salgadinho. — Tô falando sério, cara. Você poderia fazer faculdade de filosofia e ganhar a vida como professor.

— Mas de que jeito? E se por acaso descobrirem o que fizemos?

— Bom, aí, meu amigo, nós teremos que nos resignar com o destino. Fizemos nossa escolha, não foi? Agora teremos que arcar com as consequências.

— É, mas isso se descobrirem.

— Aham, exatamente.

— E você, o que vai fazer daqui pra frente?

— Eu estava pensando em fazer letras.

— Letras, hein... — falei e peguei mais um pouco de salgadinho. — Quer virar escritor?

— Talvez. Quem sabe? — ele deu uma pausa. — Agora que nós já não temos equipe e nem pretendemos continuar com esse trabalho, poderia me dizer o seu nome?

— Everick. Everick Erres.

Panela estalou os dedos e apontou pra mim:

— Pode crer! É daí que você tirou o apelido Erres.

— Sim, isso mesmo. E o seu nome?

— Daniel. Daniel Nascimento.

— Bem, muito prazer, Daniel — falei e estendi a mão. Ele a apertou e disse:

— O prazer é todo meu.

— Mas por que escolheu o apelido de Panela?

— É porque quando eu era criança as pessoas sempre me acharam meio maluco e começaram a me chamar de Menino Maluquinho, igual aos gibis. Talvez por eu rir demais, não sei. — Nesse momento eu pensei “não diga!”. — E já que ele usava uma panela na cabeça, bum! Surgiu o apelido.

— Faz sentido.

Também fui à fábrica Brinquedologia local, no dia seguinte, perguntar aos funcionários sobre o Solene, mas mesmo eu oferecendo grande quantia do dinheiro da recompensa, eles disseram que não faziam ideia de onde ele viera.

Bom, acabou que descobriram sobre nós por causa das digitais nas nossas bolsas que deixamos atrás das árvores, assim como nos uniformes e nas armas que deixamos para trás. Sem contar da destruição de propriedade que fizemos ao atirar em todos aqueles brinquedos.

A polícia civil (a verdadeira polícia civil) investigou o caso e nós fomos sentenciados a, adivinha, 4 anos de prisão, mas não porque o sistema carcerário brasileiro é foda, e sim porque puxaram nossos registros e descobriram que éramos ex-militares. Nós passamos quatro anos na mesma cela.

Quando finalmente saímos e conseguimos ver o sol nascer redondo e não quadrado, me dirigi à delegacia da polícia civil da cidade e perguntei aos responsáveis pela investigação o que eles encontraram no andar dos animatrônicos. Eles apenas disseram “Animatrônicos quebrados”, nem mais nem menos. Não falaram nada sobre cérebros ou membros decepados que sangravam. E sabem de uma coisa? Aquilo foi suficiente para mim e eu não perguntei mais nada.

Eu e Daniel seguimos os nossos caminhos. Ele fez faculdade de letras, na UFMG, e hoje dá aulas para alunos lá em Belo Horizonte. Já eu, fiz faculdade de filosofia, na UFRGS, e dou aulas aqui mesmo, em Porto Alegre. Às vezes eu converso com ele por vídeo chamada, no Skype, e já chegamos a fazer um churrasco junto às nossas famílias, mas fora isso não nos encontramos com muita frequência.

Quanto ao Arthur Cortês Solene da Silva... acho que nunca saberei quem ele era de verdade.

Há dias que eu sonho com os acontecimentos daquela noite e acordo suando frio, mesmo tomando os remédios que o meu psiquiatra me indicou. Hoje eu escrevo este testemunho no sofá da minha sala de estar, e sempre que alguém bate na porta da frente, eu me pergunto se não é uma daquelas marionetes assassinas.

 

Pablo Vieira Neves nasceu Rio de Janeiro, onde viveu até os 14 anos. Vive em Varginha-MG, desde então. ​Inspirado em um jogo de videogame chamado Alan Wake, passou a escrever. Escreve desde então por diversão. Publicou em no Wattpad (conta deletada, atualmente), no Recanto das Letras e também publicou em uma feira literária, em Varginha.

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No Twitter: @neves_vieira

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