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Cena 2 – Medo (Cenas de um Crime)

Atualizado: 7 de dez. de 2020


Créditos iniciais ou Prefácio para quem preferir.

Uma vez ao andar em um trem turístico, não pude evitar ouvir uma conversa. Ao olhar uma casinha fincada no pé da serra, a senhora sentada no banco em frente ao meu, disse: Olha lá, João! Parece casa de pintura. Daquelas que Odete pinta.

Não sei quem é João, nem Odete. Mas o que seguiu na conversa me deixou encafifado. João, perdido em olhares profundos disse: Ali deve ter história.

Narrativas que se cruzam, histórias que não são contadas. Amores, traições, derrotas, vitórias. Coisas que acabam bem. Novelas sem casamento no final. O herói da profecia que falha, o anti-herói sem redenção. Mortes estúpidas. Vidas gloriosas. Tudo acontece ao nosso redor e nem notamos. Nem tudo tem registro ou sentido. Algumas vezes apenas passamos ao longe e vemos uma moça na janela, um menino na rua, uma manchete de jornal. Não há ligação, mas tudo está ligado. Basta olhar com atenção. Ler atentamente. E olhar cada capítulo da vida como quem olha um álbum de retratos velhos e imagina o antes e o depois do abrir e fechar do obturador. Leia o texto a seguir com esses olhos. Olhar de quem imagina e enxerga além da fotografia. Divirta-se.


CENA 2


Como fazer um conto original? Acho que esse papo de metalinguagem não ganha mais concurso. Será que a quebra da quarta parede ainda é uma novidade? Se o júri ou qualquer leitor chegou aqui pode se surpreender com algo novo? Então lá vai: Não vou tentar nada disso, nem começar com digressões ou qualquer ferramenta literária na tentativa de criar um suspense e fazer você ler mais um pouco, até mesmo porque tenho pouco tempo ou linhas e caracteres.

Vamos ao que interessa.

Sempre gostei de andar a pé pelas ruas do bairro antigo da cidade onde moro. Não vou descrever cada casa e prédio. Era aquele misto arquitetônico de cidades centenárias do interior. Nem vem ao caso. O que vem ao caso é o medo que ainda sinto afligir e angustiar cada pensamento e lembrança dessa última caminhada. Não sei se foi coisa da minha cabeça, ou se realmente eu vi o que vi. Essa coisa de tentar ser racional desmorona quando sinto minha nuca arrepiar e a vontade de gritar ficar descontrolada. Gritar para quê? Chamar mais a atenção do que vi?

Ainda não depurei a situação, mas ler contos de Lovecraft, não tem me ajudado muito. Parece que estou dentro de um. Essa sensação de não estabelecer onde começa a realidade e onde começa a loucura. Ainda não consegui contar o que vi. Está bem... Vamos tentar de novo... Eu estou aqui escrevendo para deixar uma pista do que houve. Já tenho uma certeza: Não vou viver muito.

Queria que esse relato fosse como a epígrafe de um trabalho, mas, infelizmente, se assemelha mais a um epílogo. Já me foi metade do tempo ou dos caracteres possíveis. Serei breve.

Foi exatamente assim. Uma caminhada noturna, um evento imprevisto e a maior desgraça de minha vida. Que evento? Um brilho em uma poça no meio da rua. Passei perto, olhei mais atentamente e notei que a superfície tinha pontos opacos. Abaixei-me, cutuquei a parte opaca com a ponta da chave de casa. A superfície se dobrou, afastando da chave. Procurei um graveto, pensando que o metal da chave pudesse estar magnetizado e talvez a superfície fosse ou sei lá. Aquilo era uma ação explicada facilmente pela ciência. O graveto também provocou a mesma reação. Não sei o porquê, juro! Mas impulsivamente toquei a poça opaca. Parecia óleo de carro. Não sei por que fiz isso. Fui tomado daquela curiosidade infantil. Não sei! Só sei que ela grudou no meu indicador da mão direita. Viscosa como uma graxa opaca e lisa. Senti um calor estranho na mão. Parecia vir diretamente do dedo que a tocou. Limpei o dedo no asfalto. Corri para casa e estou aqui escrevendo apenas com a mão esquerda. Não sinto a outra. Está dormente e sinto repuxar toda parte direta do meu corpo, uma espécie de cãibra.

Vou tentar enviar isso por e-mail. Como seria bom poder ter chance de descobrir o que era aquilo. Queria que agora minha porta fosse derrubada por caras do exército com aquelas roupas de plástico. Nunca vou saber se agora vai acontecer o apocalipse zumbi ou se aquilo era sangue alienígena... Vou morrer sem saber...

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