Créditos iniciais ou Prefácio para quem preferir.
Uma vez ao andar em um trem turístico, não pude evitar ouvir uma conversa. Ao olhar uma casinha fincada no pé da serra, a senhora sentada no banco em frente ao meu, disse: Olha lá, João! Parece casa de pintura. Daquelas que Odete pinta.
Não sei quem é João, nem Odete. Mas o que seguiu na conversa me deixou encafifado. João, perdido em olhares profundos disse: Ali deve ter história.
Narrativas que se cruzam, histórias que não são contadas. Amores, traições, derrotas, vitórias. Coisas que acabam bem. Novelas sem casamento no final. O herói da profecia que falha, o anti-herói sem redenção. Mortes estúpidas. Vidas gloriosas. Tudo acontece ao nosso redor e nem notamos. Nem tudo tem registro ou sentido. Algumas vezes apenas passamos ao longe e vemos uma moça na janela, um menino na rua, uma manchete de jornal. Não há ligação, mas tudo está ligado. Basta olhar com atenção. Ler atentamente. E olhar cada capítulo da vida como quem olha um álbum de retratos velhos e imagina o antes e o depois do abrir e fechar do obturador. Leia o texto a seguir com esses olhos. Olhar de quem imagina e enxerga além da fotografia. Divirta-se.
Cena pós créditos
Terapia
I
Não há romantismo em minha profissão. Não conheço outra profissão que seja subtítulo de gênero literário. Acho que há uma confusão na semântica da palavra e esse foi o assunto de minha última sessão: Definição de romance.
Viver um romance não significa viver uma história de amor. Significa viver uma história apenas. Algumas vidas passam sem saber o significado de amor. Achar que romance policial é um livro onde amor pode acontecer? Eu acho ingenuidade e falta de entender ou saber o significado da palavra romance. Minha terapeuta não. Ela acha que a miséria humana pode conviver com a pureza de um amor idealizado e ingênuo como em livros feitos para iludir incautos leitores. Não! Não há possibilidade de haver amor em uma vida que seja exposta a miséria humana. O que encontro é egoísmo e busca incessante de prazer imediato. Toda idealização estereotipada dos filmes e livros é apenas engodo. Não há beleza em chegar ao local de uma cena de assassinato e encontrar um cadáver largado ali por dias. Mesmo que o personagem seja um belo exemplar masculino da raça humana vestido de policial machão dos anos oitenta. Não, não há beleza, pois o corpo ainda vai estar em decomposição. No livro não tem o cheiro de carne podre, não tem moscas, ou se quer descreve pessoas vomitando em sua primeira diligência. Sabe o pior? O cadáver é de uma moça que foi morta pelo seu grande amor; pelo homem que amava; pelo primeiro namorado, aquele que tirou sua virgindade. Casou com a idealização, com o sonho, com o primeiro amor. Mas quando contrariou o amado, ele a socou. Ela desmaiou na hora e bateu a cabeça no degrau da escada. O assassino, ao notar que a moça está morta, foge. Além disso, mesmo que o policial seja o grande personagem cinza, anti-herói, lindo como um anjo, não vai fazer o tempo voltar e salvar a moça. Ele pode até ter um amor que despreza, e você, na leitura do livro, fica torcendo para ele “baixar a guarda”; beijar alguma moça; sair em direção ao por do sol. Não. Isso não vai acontecer. “O clichê apenas serve para confortar o leitor” – eu disse para a terapeuta. Ela me olhava sem entender. Não sei se estava chocada ou se procurava uma resposta para equilibrar-me entre a depressão e o entusiasmo. E, em uma saída para minha inquietação emocional, pediu para escrever o que sentia. “Que a descarga emocional nesse ato poderia ajudar a lidar com minha visão deturpada de mundo.”- ela disse. Nesse momento até sorri sarcástico; imaginando que na próxima sessão ela me daria giz de cera e folhas de papel sulfite.
Então vamos lá.
Vou escrever como seria um romance policial sombrio e realista. Não haverá em minha escrita, descrições de quartos esfumaçados de cinema noir dos anos cinquenta. Nem será o retro futurista de um Blade Runner/ Androides sonham com ovelhas elétricas?, Meu cenário está mais para cyberpunks oitentistas como Neuromancer, mas sem tecnologia, sem fumaça, sem computadores, internet, nada. Apenas pessoas marginalizadas tanto socialmente quanto emocionalmente que buscam algo em suas vidas vazias. Apocalipse Zumbi? Já estamos nele! Apocalipse das Máquinas? Já estamos nele e não saberíamos viver sem ele. Você vive sem seu smartphone? Vive sem estar conectado? Qual seu vício, sua droga? Você é livre realmente? Sem mais delongas, vamos ao texto.
Acordo todos os dias, com ou sem despertador, assim que a luz do Sol entra pela janela. Não há guimbas de cigarro espalhadas ou copos vazios perto de garrafas de bebida destilada. Não há clichê. Não faço a barba ou tomo banho. Geralmente, me sento e espero meu corpo dar sinais de fome ou sede. Bebo um café feito na noite anterior e saio de casa. Passo pelas pessoas na rua sem notar seus semblantes niilistas e autômatos indo para trabalhos que não querem realizar, mas realizam apenas para alimentar a ilusão de que possuem vidas dignas. Zumbis, autômatos. Na maioria das vezes somente miseráveis. Assim são os meus dias, pelo menos a maioria deles.
Eu nunca sonhei em ser investigador de polícia. Eu, e também não, o cara que passava o final de semana na academia porque não tinha grana para ir para sua cidade. Ser policial é opção? Sonho de garoto em idade escolar? Fiz pela grana, pela estabilidade. Concurso público. Mas no Manual Operacional da Polícia Civil não tem lições que te ensinam a lidar com o cotidiano. Isso eu aprendi sozinho.
Se eu fosse rico e vivesse blindado dentro de uma vidinha patética da classe alta, talvez fizesse alguma faculdade particular de qualquer coisa que desse uma grana e ganharia um carrinho importado de meu pai como prêmio por ter passado no vestibular e transaria com a menininha bonitinha da sala. Talvez eu a espancasse, quando escutasse o primeiro não de minha vida, ao ser rejeitado, e a estuprasse logo em seguida, tal como o filho do médico rico que prendi semana passada, mas que já está solto. Bom, como dizem por aqui: Coisas de cidade pequena. “Não podemos prender o filho do médico de família tradicional” – disse o Delegado. “Há ruas com o nome do pai dele. Cara, o pai dele foi vereador, foi vice-prefeito. Imagina o escândalo.” Ouvi resignado e pensei: Mais uma vez a culpa vai ser da mulher. Vão falar que ela se insinuou e que fez sexo consentido. Arrependida, tentou forjar um estupro. Pronto! As pessoas vão aceitar a explicação; vão chamar a moça de vagabunda, de sem-vergonha e vai ficar por isso mesmo. Isso a terapeuta não vai me fazer entender. Talvez faça um discurso feminista e não vai mudar nada... A moça estuprada tentando fazer a vida voltar ao normal. E o filho de médico rico? Solto. Mas como fazer a vida voltar ao normal?
Ah! A terapeuta também não se lembra da história do engenheiro que deu quinze facadas na esposa, com a mãe dela, amarrada, olhando tudo. Acho que nem ouviu falar. Se ouviu... Dane-se! É apenas mais uma estatística, apenas mais um dado para analisar e vir para cima de mim com o papinho de que psicopatas agem sem que ninguém note e quando surtam causam esses estragos. Opa! Claro que deixam sinais, que deixam rastros. Mas nem sempre são detectados. Não quero fazer juízo moral de ninguém. Não sei as emoções e sentimentos da profissional que me atende. Mas ela não sabe a dor que sinto, a revolta que me domina e a raiva que invade minha alma. Se ela soubesse não ficaria no mesmo cômodo que eu.
Eu não sei em qual realidade esses profissionais vivem. Às vezes me pergunto o que é realidade? Sabendo que sentimos o mundo ao redor graças a um sistema sensorial baseado em cinco sentidos. Eu li em algum lugar que nossa noção de realidade acontece devido à interpretação de dados recebidos pelos nossos sentidos (o tal sistema sensorial) Tudo se resume a eletricidade, impulsos elétricos traduzido em sensações no cérebro. A textura de um tecido, o gosto de uma maçã, a cor dos olhos de alguém, o cheiro de uma comida ou bebida, o som da voz de alguém.
Como se explica o gosto de uma maçã?
Como se explica o cheiro de um corpo em decomposição?
Como posso explicar a dor que sinto todas as vezes que encontro alguém morto em sua própria casa, em seu quarto, na cozinha ou em qualquer lugar, que em uma vida normal, seria seu porto seguro?
Minha terapeuta quer problematizar situações que eu não quero reviver. Ela está protegida em uma redoma de aço, e só conhece o problema através de livros ou relatos. Ela não viu o corpo da menina morta, estuprada pelo padrasto. Largada seminua, com sangue seco na testa, com o crânio rachado. Não me interessa saber o que aconteceu, os peritos vão descobrir. Eu só queria matar o maldito.
Nos filmes as cenas são subentendidas, na hora da morte o plano da filmagem muda. A luz apaga. Não há sons reais, cheiros reais, dores reais. Ela acha que escrevendo um diário vou descarregar minhas neuroses? Eu queria descarregar minha arma nesses desgraçados. Não quero escapismo, fantasia. Há uma inegável glamourização nesses livros e filmes.
Fazer terapia e ficar de licença não vai mudar o que vi. Para ela é fácil falar para alguém liberar suas frustrações, dores e tudo mais em uma dinâmica. É fácil fazer um quadro com as lembranças ruins e mandar queimar o quadro e assim se desfazer dos momentos ruins. Xamanismo ou magia negra? Ela acha que só falar sobre o assunto e fazer esses teatrinhos vai trazer quem vi morto de volta? Vai apagar a lembrança? Vai diminuir a dor? Ela me disse que com o tempo tudo melhor.
Maldito tempo que não cura nada. Quem disse essa asneira?
O tempo a tudo supera.
Não... Não supera. Só piora.
O tempo não faz secar o oceano. O passar do tempo não diminui a força do vento. Algumas coisas no coração das pessoas tem a força de elementos da natureza. Um verdadeiro amor perdido não diminui com o tempo. Apenas aumenta a hipótese de como seria se fosse correspondido. Desse exemplo ela não teve resposta.
Qual o amor verdadeiramente eterno?
Sabe a resposta? O amor não correspondido. Porque para sempre você vai imaginar como seria se fosse. Talvez se ele fosse correspondido, o tempo o destruísse. Como destrói o ferro que fica ao relento, Corrói a pedra que a água desgasta, em milhares de anos carinhosamente tocando sua superfície. Essas frases de motivação e suposto alívio para problemas cotidianos apenas funcionam na teoria. Como o amor eterno.
No meu dia a dia há variáveis ou constantes eventos que minam sua resiliência e destroem seus sonhos. Como cotidianamente ocorrem comigo. Eu pensei, em momento de inocência e ingenuidade, que seria um investigador como são os da ficção.
Olhando o que já escrevi, notei que as digressões são constantes. Não sei se elas afastam do objetivo do texto, nem sei qual o objetivo. Se for só para desabafar acho que valem. Mas relembrar certas coisas não vai me fazer bem. Talvez devesse apenas escrever sobre meu dia, ou sobre o que houve de bom nele. Mas não houve nada de bom... Por que estou fazendo isso? Outro dia comentei com ela que, se não fosse investigador, seria bem provável que fosse professor de literatura. Quando pirralho gostava de ler. Gosto ainda, apesar do pouco tempo dedicado a leitura. Em certa altura de minha adolescência namorei uma garota que lia vorazmente. Possuidora de um vocabulário invejável e dona de uma linguagem erudita, extremamente culta e com artifícios incríveis em suas construções de orações. Era uma menina admirável. Ela me apresentou muitos livros incríveis. Foi a única que não só nutria um desejo ardente de transar a toda hora. Eu a queria perto de mim, ouvir sua voz, entrelaçar meus dedos em seus cabelos.
Ela foi embora fazer faculdade em outra cidade. Eu também... Fazer academia de polícia. Nesse ponto da minha vida os poucos sonhos se desfizeram. A academia me endureceu.
Foda-se meu passado. Vou fazer a porra do diário. Justo hoje... Hoje foi um lixo de dia.
Dia 1.
Hoje, não havia luzes transpassando vidros de janelas entreabertas. Não havia roupas espalhadas pelo quarto que, diga-se de passagem, era um pouco organizado. Notava-se um notebook, um aparelho de TV, alguns livros espalhados. Cenário definido, vamos para a ação.
Pronto! Depois continuo. Vou dormir...
Acordei assustado com o celular tocando e vibrando sobre o criado-mudo. Olho a tela, reconheço o número, era o delegado. Alguma coisa errada aconteceu. Quando ele ligava, a merda geralmente era grande. Hoje não era um dia bom para começar com ele no meu pé. Ontem a sessão com a terapeuta foi um saco, tanto que logo após, parei no primeiro bar e enchi a cara. Não satisfeito, ao chegar a meu apartamento, bebi o resto de uma garrafa de vodca que estava sobre a geladeira e dormi chapado.
O Delegado ligando só podem ser duas coisas: Assassinato ou algum flagrante. Ele que não gosta muito de trabalhar, quando aparece algo assim, chama todo mundo. “Vou ao inferno, mas quero companhia.” - Era a frase adotada nesses momentos.
“Te acordei?” – Ele falou. Juro que nesse momento ouvi um foda-se baixinho enquanto falava que já estava acordado.
“Sei que você ainda não está em condições de atender esse tipo de ocorrência, mas encontraram mais uma garota morta.”
Levantei no modo robótico que já usava faz tempo. Lavei o rosto, troquei de roupa e fui para a delegacia. No caminho, o Delegado me liga novamente. “Te espero no local.” Disse ele, passando o endereço logo em seguida.
Senti um arrepio percorrer o meu corpo. Flashes de lembranças torpes rondaram minha cabeça por alguns segundos.
“Caralho, tava lá ontem? Será que foi ela?”
Dirigi meu carro sem notar nada ao redor. Era por isso que ele estava no local, ele vai querer assumir essa investigação, feminicídio, vai dar holofotes. Ele gosta disso, Foda-se a mulher, o feminismo, ele quer a mídia ao redor. Só pensava assim. Hard News, Fake News, os abutres de jornaleco adoram. Mais carniças para os urubus. Deslocam um pouco o foco da política, da corrupção e dobram o coração da população diante do sofrimento de mais uma vítima.
Será que vai ser só mais um crime de ódio? Mais uma vítima de um marido bêbado, namorado? Porra, que será dessa vez?
Envolto nessa nuvem de pensamentos ruins, chego ao local. Desço do carro. Antes de eu perceber. O Delegado aproxima-se. Nem fala nada, apenas aponta a porta do consultório da terapeuta. Ando em direção ao lugar que já era meu conhecido de idos tempos. Há meses estava fazendo terapia. Entro na sala do consultório. Ainda tento acreditar que não há nada com a moça. Mas minha fé no impossível se desfaz ao ver o corpo, caído de tal forma que parecia de uma boneca, sangue escorrendo e um olhar nublado nos olhos que horas atrás me olhavam com vida.
Ajoelhei perto do corpo, passei a mão nos cabelos, notei que estava gelada. O perito a cobriu. Chorei em silêncio. Mesmo não concordando com a visão que ela possuía, de uma vida quase utópica, em uma sociedade falida e corrupta, nunca, em nenhum momento, acreditei que ela poderia ser mais uma vítima. Não acreditei que a blindagem dela fosse falhar. Mas a guarda dela baixou em algum momento. Pode ter sido um namorado, um paciente, qualquer um. Mas não com ela.
Virei-me para o Delegado. Fuzilei o olhar dele por um minuto e perguntei quem seriam os suspeitos ou o suspeito. Agora tomado por uma imensa raiva, vasculhei o cômodo e vi que não havia arrombamento ou sinal de qualquer tipo de invasão. Alguém entrou pela porta. Muito calmo e sabendo que havia em mim uma questão pessoal, a fala dele foi apenas para tentar me acalmar. Ela foi encontrada morta – disse o Delegado. O assassino se enforcou, estava com um exame de gravidez. Caso encerrado.
Minha vontade era sair dali, ir ao local onde estava o corpo do desgraçado e arrastá-lo pela cidade, amarrado ao para-choque do meu carro. O pior, para mim, era que em alguns dias esqueceriam isso. Um duplo assassinato. Mas somente mais um episódio nos casos de polícia nas páginas dos jornais.
Sentia uma angústia que nunca senti. Imagens em minha mente me confundiam, Parecia um sonho, um pesadelo. Era como se o tempo tivesse parado ou se minha existência houvesse pausado. Não aceitava a morte dela. Era como me ver morto. Ver meu pior sonho se esfarelar. Não entendia, nem era atraído por ela. Ela era minha terapeuta, mas sentia como se fosse mais que isso.
Não vou conseguir dormir. Sentia meu coração bater acelerado, mas não entendia o passar do tempo, estava torporizado, dormente. Era tomado por um desespero, mas não era parte de meu corpo. Tinha a sensação de que estava sonhando, em um extremo desespero, mas calmo ao mesmo tempo. Como se meu corpo me obedecesse, mas não fosse meu.
De uma hora para outra o Delegado liga novamente. “Tome seu remédio.” Falou e desligou. Exatamente o que me faltava! O remédio, já sabia que era possível que isso acontecesse. Sai do quarto e tomei a pílula. Por um momento me lembrei de O Vingador do Futuro. ‘Philip K. Dick, grande escritor.”. Falei para mim mesmo. Quase consegue capturar a verdade de um trabalho policial. Mas não sou como seu Rick Deckard, (o policial de Blade Runner). Os tremores e a sensação de estar fora do corpo passam. Melhoro muito rápido. Vou para a Delegacia.
Qual a linha que separa a realidade da ficção, do sonho? Essa sensação de estar em um corpo que não é o que estou ou o que eu sou. As pílulas melhoram na hora, mas a confusão é possível de ser lembrada. Se forem impulsos elétricos interpretados pelo cérebro e o sistema sensorial for feito de cinco sentidos. Será que a vida é uma simulação?
A reincidência desse pensamento devia ser parte de minha doença neurológica. “As pílulas darão um jeito.” – disse o Médico e o Delegado não me deixava esquecer.
Chego à Delegacia. Ainda sinto o coração bater acelerado, mas verifico meu batimento pressionando minha jugular e não noto variação na pressão sanguínea. Não noto nada na verdade.
“Que esta acontecendo comigo?” Penso tentando parecer bem.
Entro na sala do Delegado.
– Sente-se, vou pedir uma água. – A voz dele parecia sair de um alto-falante, minha cabeça começava a estourar com uma dor que apareceu do nada. Mas mantenho a tentativa de parecer bem.
– Preciso dar continuidade ao protocolo. Sei que você não está bem. Claro que o que aconteceu ontem deve ter desencadeado muitas dúvidas em relação a continuar aqui como investigador. Não vou tentar bancar o sensível. Você domina bem a realidade. Sabe como é por trás do véu. Não que te convencer de nada. Diga o que está sentindo e consigo uma licença para você.
Não consegui dizer nada, ainda não havia pensado em o que fazer. Era tudo surreal. Ainda pensava no diário que levaria para a terapeuta. Em tentar convencê-la de que os livros estavam errados; que os filmes estavam errados. Mas quando eu a vi morta era como se fosse eu. Não tenho mais me percebido como eu mesmo. A pílula proporcionou um efeito onde pude reconectar comigo mesmo, mas agora está ficando tudo angustiante e tenso. Não sei o que é, parece que vou sair de mim mesmo. Mas a dor de vê-la e a sensação de impotência diante da morte são tão reais. Não entendo... Parece que vou desmaiar...
II
– Tirem os óculos dela. Vamos ver como ela vai reagir.
A voz era do Delegado, mas ele estava vestido de branco. Estou em um hospital? Que lugar é esse? Meus olhos não se acostumam com a luz.
– Como vai, Doutora? Esse incômodo vai passar.
A terapeuta olha ao seu redor e começa a tentar entender onde estava.
– A máquina de empatia é uma montanha russa, não é?
A pessoa com a voz do Delegado, mas que possuía um rosto diferente deixa formar um sorriso singelo e de certa forma acolhedor. Claramente queria me confortar. Para ele não devia ser a primeira vez. Eu ainda não sabia exato se o que vivi era um sonho ou realidade, minhas memórias da vida do Investigador eram infinitamente reais, vívidas, quase capazes de serem tocadas de tão concretas. Mas aos poucos tudo parecia solidificar.
Em minha experiência na máquina havia uma espécie de pensamento recorrente para que eu me lembrasse de que ali era uma realidade criada artificialmente. Em dado momento me lembrei disso. A sensação de Déjà Vu constante. A dúvida de que ali não era real era meu cérebro me lembrando da simulação. A amnésia que estou tendo agora é passageira. Em breve me lembrarei... Mas e se as lembranças forem implantadas? Sonho dentro de um sonho? Não. Não pode ser!
O Médico com a voz do Delegado entrou, sentou ao meu lado e após um breve silêncio começou a explicar o procedimento.
– Você foi submetida a um estresse muito grande. Seu cérebro ainda não se livrou das drogas que usamos para bloquear as memórias antigas. Por isso ainda está confusa. Agora vamos depurar todo seu organismo e reavaliar se está pronta para o trabalho. Não posso te dizer nada além do que está escrito em seu prontuário. Seu nível de segurança dentro da Agência não permite muitas informações. Só falarei sobre sua saúde.
Gelei por dentro. Que Agência? Que nível? Do que ele estava falando. Como assim memórias bloqueadas?
– Volto mais tarde para ver como você vai estar.
– Espera. Mas o que estou fazendo? Que máquina é essa. Qual meu nome? Onde estou?
– A única coisa que posso dizer é sobre sua saúde. Em relação ao seu estado clínico e neurológico a situação está conforme o esperado. Você está bem. Sua missão não será revelada até estar pronta. Seu nome você lembrará logo. Sempre se lembra.
Quando recobrei um pouco a atenção perdida diante dessas assombrosas informações o médico já estava quase deixando o quarto.
– Doutor... Missão? Já estive em outras?
– Você se lembrará.
Passaram-se dias. Minha memória voltando aos poucos. O futuro já havia chegado, mas não era aquele de carros voadores e viagens interplanetárias. Estávamos ainda resolvendo problemas orgânicos, humanos, doenças físicas eram curadas com facilidade, entretanto, as espirituais ou psicológicas eram mais difíceis de curar. As máquinas de empatia eram usadas para amenizar a dor de alguns ou para treinar pessoas selecionadas para trabalhar em situações de tratamento onde aqueles que não conseguiam ter sucesso no tratamento convencional eram cuidados. Geralmente, quem não se adaptava a máquina, eram pessoas que passaram por estresse pós-traumático. Alguns se adaptavam a máquina e se curavam, outros tinham que fazer terapia como nos velhos tempos.
A química cerebral havia sido decifrada. Memórias eram implantadas. Avanços maravilhosos e tão perigosos quanto. Havia a possibilidade de implantar memórias falsas, verdadeiras ou simplesmente resgatar lembranças antigas. Os filmes antigos de ficção-científica eram realidade. Ainda não havia me dado conta de que meu sistema de alarme era lembrar os filmes antigos que tratavam desse assunto. Filmes, livros, tudo. Mas agora que volto e mesmo acordada aqui na cama do hospital militar, fico com os flashes, com as memórias vívidas de vidas que não sei se são minhas. Missão? Nível de segurança? Que merda estou fazendo aqui? Será que sou a assassina de luxo deles? Será que faço parte das operações de blecaute? Quando acordar de novo, estarei aonde?
A minha identidade é definida por qual causa ou motivo? Nem sei meu nome. Se ao menos pudesse voltar a ser o Investigador. Até uma lembrança de infância dele eu tinha. Lembro-me do rosto da namorada da adolescência, do nome de meus pais ou os pais dele. Meu Deus quem eu sou? O que eu sou? Lembro-me que li sobre um amputado que sentia a perna removida cirurgicamente, mas essa lembrança é do Investigador. Ele havia lido em um artigo de revista que o cérebro manda impulsos para avaliar se está tudo bem com o corpo e quando manda o impulso para a perna amputada há um problema. Ele não a acha. Uma coisa chamada de membro fantasma. Se mesmo assim o cérebro se engana e sem meu controle realiza esses comandos. Como poderei saber se essas memórias são minhas? São memórias fantasmas? Flashes implantados?
Impulsos elétricos, impulsos, elétricos. Será que a alma é energia?
O Doutor entra e me amedronta, a voz do Delegado me conforta. Essa dualidade me confunde. Não sei quem sou. Não seu o que faço ou o que fiz. Nem ao menos sei meu nome se tiver um. Talvez seja um número. Ele se aproxima com uma injeção. Estica meu braço. Não faço menção de reagir ou escapar de seu gesto. Ajo naturalmente. Esperando que volte para o lugar que lembro. Esperando que a droga não apague da minha memória a vida que vivi na pele de um investigador. Queria ter novamente a sensação de saber quem eu sou; o que sou; o que faço. Ser dona de minha vida. Espero que a droga falhe. Mas sei no íntimo de minha alma elétrica que não vai falhar. Agarro-me a única coisa que me lembro de uma vida que vivi sem ser minha e sinto que jamais saberei quem eu sou de verdade.
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