Nesta data em que se é comemorado o Dia do Indígena, precisamos voltar no tempo e iniciar esse texto falando sobre a colonização, processo, com características de massacre, pelo qual o conquistador ocupou e dominou novas terras brasileiras e seus habitantes originários. Não podemos deixar de reconhecer a violência desse processo colonial em que se deu a aculturação indígena. Desde então, o povo indígena tem sido alvo de apagamento. O aniquilamento não é recente e exibe raízes profundas, o prejuízo permanece de modo sistêmico. Trazidos pela colonização e comprovados por mais de quatro séculos de exclusão, o preconceito está arraigado na sociedade branca, na qual ainda permanece.
Em meio a tantos preconceitos, exclusões e explorações, eis que surge a voz de Eliane Potiguara, de nome pessoal Eliane Lima dos Santos, grande defensora dos direitos indígenas. Potiguara é fundadora da Rede Grumin de Mulheres Indígenas (Grupo Mulher-Educação Indígena), formada em Letras e Educação, pela UFRJ, e fez extensão em Educação e Meio Ambiente, pela UFOP. Atua como professora, escritora, poetisa, contadora de histórias e leva a voz dos povos indígenas para diversos cantos do país e do mundo, através de fóruns governamentais e não governamentais. Participou, inclusive, da elaboração da Declaração Universal dos Direitos Indígenas (2007). Ativista pela identidade de seu povo, luta especialmente pela sobrevivência das línguas nativas, como o tupi, toda essa luta é apresentada em seu livro Metade Cara, Metade Máscara, publicado em 2004, pela Editora Global. A autora descreve, poeticamente, que “Literatura Indígena e nativa vem das entranhas da Terra, é o grito sufocado dos que precisaram emudecer, explodindo no ar seu verbo colorido como se fora uma grande bolha de água cristal celeste” (POTIGUARA, 2004, p. 33). Ao avançar na leitura, pode-se notar que Metade Cara, Metade Máscara (2004) é uma criação literária que traz cura, transformação e uma carga terapêutica que pretende lançar longe as agonias que a autora carrega dentro de si.
A literatura indígena brasileira contemporânea surge na década de 1990. Desde então, a autoria, linha de força central do movimento, distribui-se entre os sujeitos e povos autodeclarados e reconhecidos pelo Estado como indígenas. De acordo com o levantamento realizado pelo site responsável por difundir os escritores indígenas do país, Bibliografia das Publicações Indígenas no Brasil, nos dias de hoje, existem cinquenta autores atuando em caráter individual, ou seja, que publicam com seus nomes próprios via editora privada, sendo trinta e três homens e dezessete mulheres. Gradativamente, as mulheres indígenas vão se tornando representantes de sua literatura, que é constituída como um ato político, em que seus povos e sujeitos se fazem presentes na luta pelo reconhecimento e reexistência das culturas indígenas para a sociedade nacional e não indígena. Sendo assim, é preciso conhecer o espaço de onde se fala e para quem se destina, ao analisar a obra de cada autora, já que elas pertencem a etnias distintas, para não reduzir cada expressão, que é ao mesmo tempo pessoal e coletiva, à mulher universal. A mulher indígena possui antepassados, ancestralidade e identidade étnica. O que significa dizer que em cada mulher escritora indígena há especificidades que dizem respeito à sua origem. Saber reconhecer essas especificidades é o primeiro passo para o reconhecimento da diversidade feminina na literatura indígena.
Eliane Potiguara, como o sobrenome indica, é da etnia Potiguara, ela carrega esse nome em alusão à origem de seus avós nordestinos e faz questão de trazer, com efeito, em sua obra, as referências a partir dessa pertença somada a memória e as histórias pessoais. O núcleo familiar da autora, que ficou órfã na primeira infância, é composto apenas de mulheres: a avó, que, segundo Eliane Potiguara, foi “vítima da violação sexual praticada por colonos que trabalhavam para a família inglesa” (POTIGUARA, 2004, p. 27); uma tia e uma irmã. Uma história real, sobre mulheres reais, discriminadas em razão da etnia, classe social e gênero, que sofrem todo tipo de desprezo da sociedade, mas resistem, cuidando sozinhas de sua prole, porque seus homens desaparecem ou morrem, como ocorreu com o avô da autora, brutalmente assassinado por combater a invasão nas terras tradicionais nordestinas. São essas especificidades que Potiguara traz em sua obra Metade Cara, Metade Máscara (2004), um livro que fora dedicado e descreve sua avó, Maria de Lourdes, que, mesmo vivendo fora de sua aldeia e longe de seu povo, transmitiu à neta “os laços com os ancestrais, a cosmologia e a herança espiritual.” (POTIGUARA, 2004, p. 26).
Ainda que poeta e escritora desde os anos de 1970, Metade cara, Metade Máscara (2004) é o primeiro livro da autora. Os discursos da escritora indígena são mais que enunciados formulados: têm força criadora que denuncia e não se cala. Através dessa voz que ecoa, a autora delata que, após a chegada do branco, ela, mulher indígena, tem sofrido abuso sexual. Nas suas palavras: “Com a chegada dos estrangeiros, a mulher passou à retaguarda e permanece até hoje servindo de mão de obra escrava, ou submetendo-se à neocolonização como objeto sexual e descartável.” (POTIGUARA, 2004, p. 56). O ativismo de Eliane Potiguara, através de seu discurso e de sua denúncia, busca ao mesmo tempo proteger os direitos para os indígenas, como também firmar seu lugar, seu espaço. Como resultado desse efeito de sentido entre os interlocutores que a transformam em presa a ser caçada, ela grita: “Não à morte das famílias, não à perda da terra, não ao fim da identidade.” (POTIGUARA, 2004, p. 64).
Grandes filósofos já diziam que o discurso possui uma imensa força que pode ser usada contra o poder dominante, mas se ele representa perigo ao dominador, passa a ser visto como algo que precisa ser calado, ignorado ou reprimido. A autora de Metade Cara, Metade Máscara (2004) por se pronunciar contra o discurso dos poderosos, acaba sendo perseguida e desprezada, mas até hoje se mantém ativista pelas causas dos direitos indígenas. A partir de sua posição de mulher indígena, ela estabelece um diálogo com outros lugares de fala, produz linguagem e se reproduz nela. Potiguara toma posse do discurso polêmico, didático, poético, jornalístico, autobiográfico, enche-se do pensamento crítico necessário a esse processo e utiliza-se dele para sua prática. Ela recupera aspectos históricos e procura sua significação no mundo. Seu discurso é a sua arma e Metade Cara, Metade Máscara (2004) fala de amor, de relações humanas, paz, identidade, histórias de vida, mulher, ancestralidade e famílias. É uma mensagem para o mundo, uma vez que descreve valores contidos pelo poder dominante e, quando resgatados, submergem o eu selvagem, a força espiritual e a intuição. Uma leitura extremamente necessária.
Referências
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
POTIGUARA, E. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004.
SILVA, N. M. C.; GIACOMOLLI, D. H. S. S. Discurso e resistência na obra poética de Eliane Potiguara em Metade Cara, Metade Máscara. Revista Contrapontos Eletrônica. Vol. 19, Nº 1, Itajaí, Jan-Dez 2019. Disponível em: <www.univali.br/periodicos>. Acesso em 18 Mar 2021.
SINDJUFSE. Ser mulher inspira ir à luta! Março, 2019. Disponível em: <https://sindjufse.org.br/conteudo/1362/ser-mulher-inspira-ir-a-luta>. Acesso em 18 Mar 2021.
WIKILIVROS. Lista de autores indígenas. Disponível em: <Bibliografia das publicações indígenas do Brasil/Lista de autores (por origem) - Wikilivros (wikibooks.org)>. Acesso em 18 Mar 2021.
Sobre a Autora:
Aline Amorim é Recifense, aquariana, mãe e feminista. Graduada em Gastronomia, Pós-graduanda em História Social e Contemporânea, Pesquisadora da temática Relações de Gênero e o Mundo do Trabalho; Alimentação e Feminismo. Amante das Letras, é colunista da Literatura Errante trazendo a temática Mulheres e Literatura sob uma perspectiva Feminista.
Revisão: Pamela Giovana Augusto
Muito bom texto. Parabéns minha cara.
Excelente texto, parabéns! ❤️❤️
Parabéns Aline! Excelente texto!