A Literatura produzida no Ceará, sobretudo em Fortaleza, caracteriza-se pela formação e grupos, agremiações, academias, não necessariamente com manifestos ou vínculos estéticos, mas pela ideia de fortalecimento, de resistência. Na visão do historiador Batista de Lima, é uma “Literatura de mutirão”, ou seja, de “mobilização coletiva para auxílio mútuo”. Essa união que se faz à força, como diria o guru Augusto Pontes, tem mantido viva a história que começou com Os Oiteiros, nome dado aos poetas que, por volta de 1813 a 1817, participavam dos saraus na casa do então governador Manoel Inácio de Sampaio. O político, afeito à arte da palavra, fazia reuniões regadas a versos de Pacheco Espinosa, Costa Barros, Castro e Silva, entre outros. Eram textos laudatórios, sempre em louvor ao governante, que se mantinham manuscritos no Palácio e não foram publicados no período. O termo oiteiros, segundo o dicionário Aurélio, designa “festa no pátio dos conventos, em que os poetas glosavam os motes propostos pelas freiras”, o que já revela o caráter de poesia palaciana dos textos. Não evoco aqui a qualidade deles, mas tão somente registro que, nas primeiras décadas do século XIX, quando os Arcadis, textos criados e declamados nos palácios, no século XV, com o objetivo de entreter a nobreza, durante o reinado de D. Afonso V, rei de Portugal, dominava as produções artísticas, já havia o prenúncio de que a literatura floresceria no estado do Ceará. De fato, tivemos a representação do estilo romântico, inicialmente, com Juvenal Galeno e seu livro Prelúdios Poéticos (1856), que trazia versos românticos e a celebração de personagens do nosso povo, como o jangadeiro e o pescador, motivo que se afirmaria em Lendas e canções populares (1865). Embora seja José de Alencar (1829-1877) o nome de maior destaque do romantismo, em nível nacional, ele que, mesmo não vivendo no Ceará, tinha-o como estado natal e utilizou como cenário de duas obras suas: Iracema (1865) e O sertanejo (1875), tivemos, além de Galeno, o poeta Joaquim de Sousa, que já publicava, entre 1870 e 1876, poemas no Jornal da Mocidade, e Barbosa de Freitas, que tinha poemas musicados e cantados em serenatas; os dois deram uma amostra do que foi a poesia ultrarromântica no estado. Por volta de 1883, despontaram os versos de Antônio Bezerra, Antônio Martins e Justiniano de Serpa, reunidos no livro Três Liras. A obra conjunta marcou a presença do Condoreirismo na Literatura Cearense de então. De modo que os três foram denominados de “Poetas da Abolição”. Entre o segundo e o terceiro momento romântico, em 1972, surgiu uma agremiação mais filosófica do que literária, que assinalou o início da estética realista: a Academia Francesa, articulada por Rocha Lima, inspirada na Escola de Recife, onde Tobias Barreto difundia as ideias positivistas e tecia críticas ao Romantismo. Fizeram parte do grêmio: Capistrano de Abreu, Rocha Lima, João Lopes e Amaro Cavalcante; depois, juntaram-se a eles: Clóvis Bevilácqua, Tomás Pompeu e Souza Brasil. Na crítica, destacou-se Araripe Júnior (que havia escrito Literatura no Ceará. Muitos dos acadêmicos publicavam seus textos no jornal maçom Fraternidade. As reuniões do grupo ocorriam na casa de Rocha Lima, situada a frente do Passeio Público; depois, na sede localizada na Rua Conde D’Eu. Dessas reuniões saíam as atividades que desenvolviam: tribunas e conferências visando a críticas à Religião, criação da Escola Popular noturna para os pobres e os trabalhadores. Extinguiu-se em 1875, por conta de desentendimentos com o Clero, em função da luta em favor da Maçonaria. Pouco mais de uma década depois (1886), João Lopes criou o Clube Literário, e nele reuniu os poetas românticos: Juvenal Galeno, Virgílio Brígido, Francisca Clotilde, Martinho Rodrigues, José Carlos Júnior, entre outros. A revista A Quinzena (1887 – 1888), editada pelo grupo, publicava contos de Oliveira Paiva, narrativas científicas do sanitarista/romancista Rodolfo Teófilo, pregações críticas de Abel Garcia, bem como produções de Paulino Nogueira (historiador) e Farias Brito (filósofo). Em 1889 foi publicado o romance realista A Afilhada, de Oliveira Paiva, em formato de folhetins no jornal Libertador e, no ano seguinte, em volume, o romance Naturalista A Fome (1890), de Rodolfo Teófilo, seguido de outras obras dentro da mesma corrente, como Os Brilhantes (1895) e O Paroara (1899). Antônio Sales publicou, em 1890, seu primeiro livro de poemas, Versos diversos, misturando, segundo o crítico Sânzio de Azevedo, “sentimento romântico, construção algo neoclássica e leves prenúncios parnasianos”.
Para ler uma raríssima entrevista como Professor, Poeta, Escritor e Crítico Literário Sânzio de Azevedo, acesse o Blog Cultural do Escritor, Poeta e Crítico Literário cearense Túlio Monteiro no link a seguir: https://tuliomonteiroblog.wordpress.com/2020/01/23/sanzio-de-azevedo mais-que-uma- entrevista-uma-aula-sobre-literatura/
No final do século XIX, no Café Java, situado em uma das extremidades da Praça do Ferreira, reuniam-se escritores e artistas. Foi lá que Antônio Sales e “meia dúzia de amigos” idealizaram A Padaria Espiritual, fundada em 1892. Foi ele quem elaborou o seu Programa de Instalação, com 48 tópicos, alguns jocosos e irônicos, reveladores do espírito do grupo. Os sócios do grêmio eram chamados de “Padeiros”; o presidente era o “Primeiro-forneiro”; as sessões chamavam-se “Fornadas”, que aconteciam no “Forno”. O jornal editado por eles era denominado O Pão. Todos os componentes tinham um pseudônimo, ou “nome de guerra”, como preferiam dizer. Como era uma associação “de Rapazes de Letras e Artes”, reunia, além de poetas como Antônio Sales (Moacir Jurema) e Sabino Batista (Sátiro Alegrete), ficcionistas como Adolfo Caminha (Félix Guanabarino) e Artur Teófilo (Lopo de Mendoza); músicos, como os irmãos Henrique Jorge (Sarasate Mirim) e Carlos Vítor (Alcino Bandolim), e um pintor, Luís Sá (Corrégio Del Sarto). Joaquim Vitoriano (Paulo Kandaslaskaia),que como não tinha nenhum desses talentos, figurava como guarda-costas. Durante a vigência, a agremiação passou por duas fases. A primeira, de 1892 a 1894, era cheia de espírito e pilhéria, época em que, da sacada de um prédio, um “padeiro” fazia discursos, com barbas postiças, quando foram Padeiros-mores Antônio Sales (1892 e em 1894); e Jovino Guedes (Venceslau Tupiniquim). A segunda, de 1894 a 1898, mais séria, embora as brincadeiras não tenham desaparecido completamente; foram Padeiros-Mores: José Carlos Júnior (Bruno Jacy), por dois anos, e Rodolfo Teófilo (Marcos Serrano), por igual período. O jornal O Pão teve seis números em 1892; vinte e quatro em 1895 e seis em 1896. As obras publicadas pelos padeiros seguiam diferentes tendências: havia Românticos: Sabino Batista, Antônio de Castro (Aurélio Sanhaçu), Álvaro Martins (Policarpo Estouro), Temístocles Machado (Túlio Guanabara), entre outros; e Realistas: Adolfo Caminha (A Normalista (1893), Rodolfo Teófilo e Artur Teófilo, além de X. de Castro (Bento Pesqueiro). Sem classificação quanto ao estilo, destacaram-se, ainda, na ficção, José de Carvalho (Cariri Baraúna) e Eduardo Sabóia (Brás Tubiba). Já Antônio Sales começava a escrever versos Parnasianos. O Simbolismo cearense ocorreu durante a Padaria, inspirado em obras portuguesas, especialmente no livro Só, de Antônio Nobre, e não nas brasileiras, como com propriedade afirma Sânzio de Azevedo no livro A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará (1983). São exemplos representativos: Phantos (1893), de Lopes de Filho, (Para ler sobre a vida e obra de Lopes Filho leia o livro do biógrafo cearense Túlio Monteiro: Lopes Filho, Padeiro Espiritual - Coleção Terra Bárbara, Edições Demócrito Rocha/Jornal O Povo - 2000) e Dolentes (1897), de Lívio Barreto, este último, livro póstumo.
A Padaria Espiritual possuiu duas fases distintas, onde a primeira fase era cheia de espírito, timbrando pela pilhéria, época em que, da sacada de um prédio, um “padeiro” fazia discursos, com barbas postiças; nos piqueniques, carregava-se um pão de três metros, etc. Mas houve a publicação de um livro. Na segunda fase, as brincadeiras diminuíram, mas não desapareceram, como já se afirmou. E os outros dês livros dos “padeiros” são desse tempo. Quanto à estética da “Padaria”, misturando-se as duas fases, podemos dizer que havia românticos: Sabino Batista, Antônio de Castro (Aurélio Sanhaçu), Álvaro Martins (Policarpo Estouro), Temístocles Machado (Túlio Guanabara) e outros; realistas como os citados Adolfo Caminha (que publicaria no Rio de Janeiro A Normalista, em 1893), Rodolfo Teófilo e Artur Teófilo, além de X. de Castro (Bento Pesqueiro), este nos seus Cromos (1895). Um pouco fora de uma classificação rígida ficariam os ficcionistas José de Carvalho (Cariri Baraúna) e Eduardo Sabóia (Brás Tubiba). Alguns se encaminhavam para o parnasianismo como Antônio Sales.
A segunda fase, composta apenas por 14 membros, apresentava um caráter mais sério da agremiação, nesse período eles liam e publicavam suas próprias criações, como por exemplo, Oliveira Paiva iniciou a publicação de seu romance Dona Guidinha do Poço, em forma de folhetins nas páginas do jornal O Pão. No entanto, nem mesmo nesse período mais sério o humor não foi deixado de lado, embora com menor intensidade do que na primeira fase, mas eles mantiveram seu espírito irreverente exercendo assim, umas das funções do movimento que era provocar a sociedade burguesa da época com sua arte.
O Estatuto da Agremiação, elaborado por Antônio Sales, mostra o bom humor do grupo, o espírito crítico, sobretudo, ao academicismo, demonstra preocupação social e antecipa algumas das características do Modernismo de 1922. Seguem-se os artigos:
1) Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da “Terra da Luz”, antigo Siará Grande, atual Estado do Ceará, uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada Padaria Espiritual, cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios em particular, e aos povos, em geral.
2) A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mor (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de Padeiros.
3) Fica limitado em vinte o número de sócios, inclusive a Diretoria, podendo-se, porém, admitir sócios honorários que se denominarão Padeiros-livres. 4) Depois da instalação da Padaria, só será admitido quem exibir uma peça literária ou qualquer outro trabalho artístico que for julgado decente pela maioria.
5) Haverá um livro especial para registrar-se o nome comum e o nome de guerra da cada Padeiro, sua naturalidade, estado, filiação e profissão a fim de poupar-se à Posteridade o trabalho dessas indagações.
6) Todos os Padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão usar no exercício de suas árduas e humanitárias funções.
7) O distintivo da Padaria Espiritual será uma haste de trigo cruzada de uma pena, distintivo que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores nacionais. (Atualmente a bandeira ou o pavilhão da Padaria Espiritual encontra-se exposto no Museu do Ceará, localizado na cidade de Fortaleza à Rua São Paulo, 51, Centro, Telefone: (85) 3101.2609. Horários: Terça a sábado, das 9h às 17h. Rua São Paulo, 51, Centro.
8) As fornadas (sessões) se realizarão diariamente, à noite, à excepção das quintas-feiras, e aos domingos, ao meio-dia. (isso porquê nesses dias da semana ocorriam as missas diárias na Catedral Metropolitana da Sé de Fortaleza, num claro respeito dos Padeiros às coisas ligadas à religiosidade - nota de Túlio Monteiro).
9) Durante as fornadas, os Padeiros farão a leitura de produções originais e inéditas, de quaisquer peças literárias que encontrarem na imprensa nacional ou estrangeira e falarão sobre as obras que lerem.
10) Far-se-ão dissertações biográficas acerca de sábios, poetas, artistas e literatos, a começar pelos nacionais, para o que se organizará uma lista, na qual serão designados, com a precisa antecedência, o dissertador e a vítima. Também se farão dissertações sobre datas nacionais ou estrangeiras.
11) Essas dissertações serão feitas em palestras, sendo proibido o tom oratório, sob pena de vaia.
12) Haverá um livro em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo possível, assinando todos os Padeiros presentes.
13) As despesas necessárias serão feitas mediante finta passada pelo Gaveta, que apresentará conta do dinheiro recebido e despendido.
14) E proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes.
15) Os Padeiros serão obrigados a comparecer à fornada, de flor à lapela, qualquer que seja a flor, com exceção da de chichá.
16) Aquele que durante uma sessão não disser uma pilhéria de espírito, pelo menos, fica obrigado a pagar no sábado café para todos os colegas. Quem disser uma pilhéria superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte.
17) O Padeiro que for pegado em flagrante delito de plágio, falado ou escrito, pagará café e charutos para todos os colegas.
18) Todos os Padeiros serão obrigados a defender seus colegas da agressão de qualquer cidadão ignáro e a trabalhar, com todas as forças, pelo bem-estar mútuo.
(Para se defenderem dos inúmeros desafetos que amealharam por conta das suas ácidas pilhérias e chacotas, os Padeiros se valiam da força física de Joaquim Vitoriano, o Paulo Kandalaskaia, o guarda-costas da agremiação, que nela figurou apenas por ser um homem de compleições físicas avantajadas e que sempre estava à disposição dos Padeiros para livrá-los dos das confusões nas quais eles se envolviam. Foi assassinando na Praça do Ferreira, centro da cidade de Fortaleza, capital do Ceará em data incerta. Nota de Túlio Monteiro).
19) É proibido fazer qualquer referência à Rosa de Malherbe e escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos álbuns.
(Referência ao Poema de escritor romântico François Malherbe, numa clara alusão de que os Padeiros eram avessos às ao estilo da Corrente Romântica francesa. A seguir a transcrição e tradução do poema em questão. Nota de Túlio Monteiro):
Diz-se que alguma coisa teve “a duração da rosa de Malherbe” quando durou muito pouco. A expressão romântica tem origem na poesia do poeta francês François Malherbe (1555-1628), intitulada “Consolação ao Sr. Du Périer, gentil-homem de Aix-en-Provence, pela morte de sua filha”, na qual se lê esta estrofe:
Mais elle était du monde (Mas era ela do mundo) Où les plus belles choses (Onde as mais belas coisas) Ont le pire destin; (Têm o pior destino); Et rose elle a vécu (E rosa ela viveu) Ce que vivent les roses: (O que vivem as rosas) L’espace d’un matin. (O espaço de uma manhã.)
20) Durante as fornadas, é permitido ter o chapéu na cabeça, exceto quando se falar em Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar porque, então, todos se descobrirão.
21) Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhos à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc.
(Atentem para o fato desse artigo demonstrar a preocupação dos Padeiros com as coisas relacionadas ao patriotismo brasileiro já no ano de 1892, tendo o Movimento da Padaria Espiritual se antecipado em 30 anos aos ideais Nacionalistas do Verde-Amarelismo propagado pelos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922. Nota de Túlio Monteiro).
22) Será dada a alcunha de “medonho” a todo sujeito que atentar publicamente contra o bom senso e o bom gosto artísticos.
23) Será preferível que os poetas da “Padaria” externem suas idéias em versos.
24) Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos e ilícitos.
25) Dirigir-se-á um apelo a todos os jornais do mundo, solicitando a remessa dos mesmos à biblioteca da “Padaria”.
26) São considerados, desde já, inimigos naturais dos Padeiros - o Clero, os alfaiates e a polícia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear seu desagrado a essa gente.
27) Será registrado o fato de aparecer algum Padeiro com colarinho de nitidez e alvura contestáveis.
28) Será punido com expulsão imediata e sem apelo o Padeiro que recitar ao piano.
29) Organizar-se-á um calendário com os nomes de todos os grandes homens mortos, Haverá uma pedra para se escrever o nome do Santo do dia, nome que também será escrito na Ata, em seguida à data respectiva.
30) A “Avenida Caio Prado” é considerada a mais útil e a mais civilizada das instituições que felizmente nos regem, e, por isso, ficará sob o patrocínio da Padaria.
31) Encarregar-se-á um dos Padeiros de escrever uma monografia a respeito do incansável educador Professor Sobreira e suas obras.
32) A “Padaria” representará ao Governo do Estado contra o atual horário da Biblioteca Pública e indicará um outro mais consoante às necessidades dos famintos de idéias.
33) Nomear-se-ão comissões para apresentarem relatórios sobre os estabelecimentos de instrução pública e particular da Capital relatórios que serão publicados.
34) A Padaria Espiritual obriga-se a organizar, dentro do mais breve prazo possível, um Cancioneiro Popular, genuinamente cearense.
35) Logo que estejam montados todos os maquinismos, a Padaria publicará um jornal que, naturalmente, se chamará O Pão.
36) A Padaria tratará de angariar documentos para um livro contendo as aventuras do célebre e extraordinário Padre Verdeixa. (O Padre Canoa Doida).
Referência a Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, mais conhecido à época como Padre Canoa Doida. Ardiloso, furtivo e malvado, o Padre Canoa Doida, ouvia primeiro a confissão das nubentes moças casadoiras Munido das preciosas informações que lhe eram dadas nas sacristias das igrejas que ele rezava missas e percuciente da vida pregressa das indigitadas, ameaçava logo as infelizes de revelar aos futuros esposos e até mesmo a todas as famílias quiçá à cidade inteira, as minudências daquelas confissões. De posse daquelas valiosíssimas informações, angariava com imensa facilidade os favores sexuais das noivas sob o prenúncio de dar com a língua nos dentes. A noivas poderiam conceder seus favores ali mesmo, in situ (dentro do confessionário) ou preferencialmente no interior da sacristia, dispositivo que oferecia maior espaço e conforto, prestando-se com maior eficiência à volúpia e demais caprichos sexuais. (Nota de Túlio Monteiro).
37) Publicar-se-á, no começo de cada ano, um almanaque ilustrado do Ceará contendo indicações uteis e inúteis, primores literários e anúncios de bacalhau. 38) A Padaria terá correspondentes em todas as capitais dos países civilizados, escolhendo-se para isso literatos de primeira água.
39) As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio excetuadas: as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes.
40) A Padaria desejaria muito criar aulas noturnas para a infância desvalida; mas, como não tem tempo para isso, trabalhará por tornar obrigatório a instrução pública primada.
41) A Padaria declara desde já guerra de morte ao bendegó do “Cassino”.
Alusão ao meteorito do Bendegó, que foi encontrado em 1784 pelo menino Domingos da Motta Botelho, que pastoreava o gado em uma fazenda próxima à atual cidade de Monte Santo, no sertão da Bahia. É o maior meteorito já encontrado em solo brasileiro. No momento do seu achado, tratava-se do segundo maior meteorito do Mundo. Atualmente ocupa o 16.º lugar em tamanho. A julgar pela camada de 435 centímetros de oxidação sobre a qual ele repousava, e a parte perdida de sua porção inferior, calcula-se que estava no local há milhares de anos. A respeito do ano da descoberta há ainda uma certa discrepância quanto à data de sua descoberta, sendo que a maioria das fontes, incluindo historiadores baianos como José Aras e José Calasans, que citam os anos de 1774 ou 1784 como outras prováveis datas de sua descoberta). A notícia do achado correu o Mundo, chegando aos ouvidos do Governador Rodrigues Menezes, que em 1785 ordenou o seu transporte até Salvador pelo Capitão-Mor da Vila de Itapicuru, Bernardo Carvalho da Cunha. Devido ao peso de mais de cinco toneladas, mesmo com doze juntas de bois não foi possível transportá-lo, e a pedra acabou despencando ladeira abaixo e caindo no leito seco do riacho Bendegó, a 180 metros do local original. Ali ficou por mais de 100 anos. Hoje ele se encontra exposto no Museu Nacional, que se localiza no interior do Parque da Quinta da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro, instalado no Palácio de São Cristóvão. Notas de Túlio Monteiro).
42) É expressamente proibido aos Padeiros receberem cartões de troco dos que atualmente se emitem nesta Capital.
43) No aniversário natalício dos Padeiros, ser-lhes-á oferecida uma refeição pelos colegas.
44) A Padaria declara embirrar solenemente com a secção “Para matar o tempo” do jornal “A República”, e, assim, se dirigirá à redação desse jornal, pedindo para acabar com a mesma secção.
45) Empregar-se-ão todos os meios de compelir Mané Coco a terminar o serviço da “Avenida Ferreira”.
Referência ao Mané Coco, proprietário do Café Java, onde a mocidade elegante e intelectual que marcou época na Fortaleza Belle-Époque, pelas alturas do ano de 1892, tinha seu ponto obrigatório. Era um quiosque modesto, armado no canto da Praça do Ferreira, em frente ao edifício de uma Rotisserie, edifício esse que depois abrigou a sede da Polícia Civil de Fortaleza, funcionando lá hoje uma agência da Caixa Econômica Federal. Era no Café Java, bem como nos outros três na estabelecidos na Praça do Ferreira, que reinava a boêmia literária que caiu no gosto do público, e de que nasceu a controvertida Padaria Espiritual, assinalando uma das épocas mais curiosas da história de Fortaleza. O Java data da década de 1880 do Século XIX, e foi demolido durante a reforma da praça em 1925. O Café Java tinha na figura do seu proprietário, que se chamava Manoel Pereira dos Santos, e atendia pela alcunha de Mané Coco, um dos tipos mais bizarros daqueles tempos.
O Mané Coco – segundo a descrição de Antônio Sales – era uma excelente pessoa, muito inteligente, embora destituído de cultura. Andava sempre vestido de um terno de fraque de cor cinza, sempre com uma grande rosa à lapela, e com a originalidade de nunca usar gravata. A exclusão da gravata o excluía de todas as festas e solenidades. (notas de Túlio Monteiro).
Na Praça do Ferreira, antes de 1920, existiam quatro quiosques, um em cada canto, abrigando cafés e restaurantes. O Café Elegante ficava na esquina sudeste (Rua Pedro Borges com Rua Floriano Peixoto), o Café Iracema na esquina sudoeste (Rua Pedro Borges com Rua Major Facundo), o Café do Comércio, na esquina noroeste (Rua Major Facundo com Rua Guilherme Rocha) e o Café Java, na esquina nordeste (Rua Guilherme Rocha com Rua Floriano Peixoto). Notas de Túlio Monteiro.
46) O Padeiro que, por infelicidade, tiver um vizinho que aprenda clarineta, pistom ou qualquer outro instrumento irritante, dará parte à Padaria que trabalhará para pôr termo a semelhante suplício.
47) Pugnar-se-á pelo aformoseamento do Parque da Liberdade, e pela boa conservação da cidade, em geral.
48) Independente das disposições contidas nos artigos precedentes, a Padaria tomará a iniciativa de qualquer questão emergente que entenda com a Arte, com o bom Gosto, com o Progresso e com a Dignidade Humana. Amassado e assado na “Padaria Espiritual”, aos 30 de maio de 1892.
Estatuto transcrito do livro Literatura Cearense, de Sânzio de Azevedo (1976).
A agremiação Padaria Espiritual, deixou de existir no ano de 1898. Porém, a repercussão do movimento ecoa até os nossos dias. Além de várias dissertações e teses defendidas sobre ela, foi publicada, em 2005, a primeira edição do livro É pra Ler ou pra Comer ?, da escritora cearense Socorro Acioli, publicado pela Edições Demócrito Rocha, contando a história do grupo. Há também um documentário – A Padaria Espiritual3 – realizado pelo escritor e cineasta Felipe Barroso, em 2009, com a participação de Sânzio Azevedo, Gilmar de Carvalho, Batista de Lima e Regina Pamplona Fiúza, e disponível no YouTube.
Sobre o Autor:
Túlio Monteiro – Escritor, biógrafo, historiador e crítico literário. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Grau de Especialização em Literatura e Investigação Literária, também pela Universidade Federal do Ceará – UFC, com a monografia: Intertextualidade e Fluxo da Consciência na Obra de Graciliano Ramos.
Membro efetivo da Academia Internacional de Literatura Brasileira - AILB - Cadeira de número 246 - Com sede em Nova York - Estados Unidos da América.
Autor dos livros
Agosto em Plenilúnio – Poesias – 1995 – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará.
Lopes Filho e a Padaria Espiritual – 2000 – Biografia – Coleção Terra Bárbara – Edições Demócrito Rocha – Jornal O Povo.
Sinhá D'Amora, Primeira-Dama das Artes Plásticas do Brasil – Biografia – 2002 – Coleção Terra Bárbara – Edições Demócrito Rocha – Jornal O Povo.
Antologia de Contos Cearenses – 2004 – Organizador – Coleção Terra da Luz – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará – UFC, em parceria com a Fundação de Esportes, Cultura e Turismo de Fortaleza – FUNCET – Prefeitura Municipal de Fortaleza – Ceará.
Dois dedos de prosa com Graciliano Ramos – Contos – 2006 – Coleção Literatura Hoje – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará – UFC.
Sonhos e Vitórias - A História de João Gonçalves Primo – Biografia – 2007 – Em parceria com o Poeta, Escritor, Historiador e Biógrafo Juarez Leitão – Premius Editora.
Cajueiro Botador – Infanto-Juvenil – 2008 – Coleção Paic – Secretaria de Educação do do Estado do Ceará – SEDUC – Governo do Estado do Ceará.
Assessoria Técnica do Texto Original
24º Cine Ceará – Prêmio de Melhor Produção Cearense para o curta-metragem "Joaquim Bralhador", adaptação do conto do livro "Joaquinho Gato", do escritor Juarez Barroso – Dirigido pelo cineasta Márcio Câmara – 2014.
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