Uma vez, enquanto passeava pelas ruas de Copacabana à noite, deparei-me com uma amiga de infância, a quem eu conhecia como a palma da minha mão. Ela estava sentada num dos bancos daquela área de concreto, antes da faixa de areia da praia. Subiu-me um ímpeto de abordá-la para conversarmos, mas pensei que seria muito arriscado ir assim, de supetão, no meio da noite de lua sangrenta. Mesmo sendo uma época na qual o Rio costumava ser a Paris brasileira e não tão violento quanto o inferno que se tornou hoje, ainda assim, não seria um ato muito bem-vindo na sociedade carioca de 1940.
No entanto, tomei coragem e prossegui devagar, usando minha bengala como apoio para minha perna fraturada do dia em que caí da escada que subi para pintar a área mais alta da minha sala de estar. Ao aproximar-me, percebi que ela estava um tanto quanto abatida. A luz da lua sangrenta avermelhava a palidez do seu rosto, fazendo-a se parecer com um fantasma colérico.
— Perdão, madame. — Atrevi-me a perguntar. — A senhorita está bem?
Ela, ao ouvir isso, tirou o seu olhar da lua sangrenta e o direcionou a mim. Achei deveras estranho o fato de que, ao fazê-lo, ela piscou lentamente, como se estivesse acordando de um pesadelo, e sorriu. Era um sorriso sofrido.
— Ah, olá! — Disse ela. — Boa noite, moço.
— Boa noite, minha cara senhorita. — Respondi. — Está uma belíssima noite hoje, não?
— De fato. — Respondeu. — Posso ajudá-lo com alguma coisa?
— Oh, perdoe-me, creio que não me apresentei. Meu nome é Cristovaldo, mas todos me conhecem como Valdo. É um prazer revê-la, madame.
Ao ouvir isso, ela deu o seu sorriso mais encantador. Seu semblante iluminou-se com uma áurea que contrastava completamente com o rosto fantasmagórico que eu vira antes.
— Ora. — Disse ela. — Por que diz “revê-la” e não “conhecê-la”?
— Porque creio que já nos conhecemos. — Falei eu. — Louise é o seu nome, estou certo?
Ela quase deu um salto do banco, de tão pasma que ficou.
— Mas como isto é possível? — Perguntou ela, estupefata.
— Perdoe-me assustá-la, não foi minha intenção. Mas me lembro da senhorita desde a infância.
— Já nos conhecemos há tanto tempo assim?
— Tenho todos os motivos para acreditar que sim.
— Ora, mas vejam só! — Exclamou ela, de uma forma que eu não esperava. Aquele rosto parecia nunca ter ficado abatido ou, se ficou, acontecera há muitos anos.— Estou conversando com alguém do meu passado. Pois venha, meu bom homem, sente-se ao meu lado. Não se preocupe, eu não mordo.
Atendi ao seu pedido e sentei-me ao seu lado. Ela olhou para mim como se esperasse que eu dissesse algo interessante, como se eu fosse uma espécie de entretenimento; um Phineas Taylor Barnum.
Começamos a conversar e, conforme prosseguíamos relembrando as aventuras da infância noite adentro, as pessoas iam se recolhendo para as suas casas, para os bares ou para seus turnos da noite. Descobrimos que tínhamos muito em comum e, devo admitir, cheguei a pensar em convidá-la a um encontro. Os postes de luz tornavam o ambiente mais que romanticamente propício para tal ato.
De repente, senti-me muito incomodado na nuca. Nunca antes havia tido aquela sensação de estar sendo vigiado, por isso, virei-me para ver se havia alguém com intenções ruins à espreita. Em 1940, mesmo nada sendo como é hoje, ainda era possível temer pela sua vida. Não vi ninguém.
Tomei Louise pelo braço e falei: “Venha comigo, estou com um mal pressentimento”. Como eu era manco, precisei me controlar para não correr e acabar machucando a nós dois. Já passava da meia-noite e estávamos, eu e ela, feito dois gatos vagabundos pelos cantos escuros da noite. Foi quando senti Louise me puxar para trás. O que me assustou, no entanto, foi a força descomunal com a qual fizera isso. Vi-me desabando feito uma árvore em cima dela, mas, em vez de cairmos, ela apenas segurou-me pelos ombros e pousou a minha cabeça em seus seios.
— Psshh, acalme-se, meu querido. Isto vai ser rápido. — Disse ela, com uma voz tenebrosa e, no entanto, doce. Hipnotizadora. O seu perfume se infiltrando nas minhas narinas e a maciez dos seus seios me confortando como nunca me senti antes.
— O que está fazendo, Louise? — Disse eu, tentando me desvencilhar do seu abraço apertado com o resquício de força que me sobrara.
— Tudo vai fazer sentido depois, apenas feche os olhos.
Eu estava sendo esmagado, quando ela afastou o rosto do meu e abriu a boca. O que eu vi me deixou apavorado. Seus dentes estavam afiados como navalhas e pontudos como agulhas. Fiquei branco de pavor, mas lutei, com cada gota do meu instinto de sobrevivência, para me soltar dela. Duas presas emergiram da gengiva superior de sua boca, o que me deixou ainda mais horrorizado. Quando me dei por mim, estava socando a boca do seu estômago com a minha bengala, até que finalmente acertei em algum ponto que a fez perder o ar por um momento, que suficiente para que eu escapasse. Comecei a mancar mais rápido e já não ligava para a dor que sentia. Disparei em direção a minha casa que, para o meu azar, ficava a dois quarteirões e um túnel dali. Ao longe, consegui escutar as blasfêmias que minha amiga de infância, agora um vampiro, soltava. Uma delas me fez torcer o nariz de tanta repugnância.
Pensando nisto agora, ainda me questiono porque não cogitei gritar por ajuda. Talvez, no meu subconsciente, eu julgasse que aquilo tudo era uma alucinação e que me dariam por louco, esquizofrênico.
Havia um beco antes do túnel; escondi-me lá dentro. Eu me senti enojado com o cheiro, embora não tivesse o olfato sensível. Acho que meus instintos mais aguçados foram despertos pela adrenalina e pelo medo. Esbarrei em várias latas de lixo, derrubando algumas pelo caminho. Ouvi gatos e ratos fazerem barulhos e correndo por conta do susto. Peguei um dos itens que eu sempre carregava comigo, um isqueiro dourado com a insígnia da minha família entalhada na frente e atrás dele. Acendi-o e dei de cara com o final do beco. Em um canto, vi algumas caixas de papelão estendidas sobre um volume. Pareciam estar cobrindo uma carcaça fedida. Tapei o nariz e ia dar meia-volta, quando alguma coisa se mexeu. Imediatamente, coloquei-me em posição de combate e esperei qualquer coisa sair lá debaixo. Fui surpreendido por um mendigo, que se levantou e me olhou através da luz das flâmulas do meu isqueiro. Seus olhos estavam semicerrados, sonolentos. Pensei em avisá-lo sobre o monstro que quase cravou seus dentes no meu pescoço, mas calei-me. Decidi deixá-lo dormir e sair dali sem fazer qualquer barulho. Arrastá-lo comigo seria, no mínimo, esquisito, e minha perna começara a doer de novo. Coloquei o dedo em riste na frente da boca e fiz um “shh!”. Balbuciei algumas palavras como se fosse um ladrão dizendo para a vítima não fazer barulho.
Esperei até ele voltar a dormir e então me virei, mas um rosnado vindo de cima fez meu coração gelar. Olhei para o alto e vi, no breu do beco, olhos amarelos brilhantes. Mas não era apenas um par, eram quatro.
Vampiros.
Eram eles que estava me vigiando enquanto eu conversava com Louise. Isso significava que ela era uma espécie de chefe para eles.
Os olhos começaram a descer, meio que deslizando rente às paredes do beco, como vagalumes. Essa foi a minha deixa para ir. Comecei a correr e não olhei para trás quando ouvi o mendigo gritar de dor e terror.
Finalmente alcancei o túnel e retirei do meu paletó a outra coisa que eu carregava comigo sempre, minha pistola. Eu sabia que deveria parar para mirar melhor nos meus perseguidores, mas minhas balas não eram de prata, o que significava que eu poderia apenas atrasá-los. No escuro do túnel, as únicas luzes que iluminaram o ambiente foram as dos disparos da minha pistola e as dos olhos de um amarelo febril dos vampiros. Eu não fiquei para ver onde os acertei, nem mesmo se Louise estava junto com eles, embora, pelo pouco que pude ver dentre os disparos, que pareciam flashes de uma câmera, mostrando-os em diferentes posições como num ensaio fotográfico, havia um par de olhos vermelhos entre os azuis.
Graças ao meu senso de urgência, consegui ignorar a dor lancinante que se espalhava por praticamente todo o meu lado esquerdo agora. Ao chegar em casa, tranquei todas as janelas e portas e fiquei esperando por qualquer movimento. Acendi todas as luzes, obviamente. Desde aquele dia, tenho olhado com frequência as horas no meu relógio de bolso, pois não suporto mais ficar até mais que seis da tarde nas ruas. Ao olhar para a lua, fico um pouco ansioso, pois tenho medo de que ela se torne vermelha e traga consigo as criaturas das trevas.
Pablo Vieira Neves nasceu Rio de Janeiro, onde viveu até os 14 anos. Vive em Varginha-MG, desde então. Inspirado em um jogo de videogame chamado Alan Wake, passou a escrever. Escreve desde então por diversão. Publicou em no Wattpad (conta deletada, atualmente), no Recanto das Letras e também publicou em uma feira literária, em Varginha.
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kkkk, muito obrigado, Karla! De fato, esses reencontros podem ser uma benção ou, literalmente, uma maldição.
Parabéns pelo conto, Pablo! Adorei e, a partir de agora, tomarei o cuidado de olhar a lua sempre que, por ventura, reencontrar algum amigo de infância,kkk
Sucesso a você!!