O telefone toca. Ela atende:
— Alô.
— Então, você deixou minha filha voltar bêbada pra casa sozinha, garota?!
Ela olha o relógio na parte inferior do televisor, acima da atendente.
— Não são nem onze horas da manhã e a senhora já quer desestabilizar meus chacras, dona Cláudia?!
— Ô garota!!! Minha filha chegou manguaçada cantando “poeeiraa, poeiraaa, levantô poeiirraa” pra fechadura aqui de casa. E ainda desafinada, destruindo a música da Ivete. Por que é que cê deixou ela voltar sozinha, criatura!?
— Porque, pelo que eu saiba, a vassoura dela tava funcionando muito bem. A bruxa da sua filha teve a pachorra de bater o carro do meu irmão com todo mundo dentro, incluindo eu!
— Eu não tô crendo!! Vocês podiam ter morrido, Marlene!!
— E foi isso o que eu disse, dona Cláudia. A gente despencou barranco abaixo, sorte que o barranco era pequeno, né!? Ela inventou de desviar de um bebum que vinha andando torto no meio da estrada. Mas, bêbada, mamada, batizada na cana, virou o volante demais, derrapamos numa areia lá. Sorte que era cedo da noite, a gente ficou perdido só duas horas dentro do mato. E a desgraçada teve a cara de pau de beber meus dois litros de conhaque. Uma beleza! Um conhaque importado, dona Cláudia, que eu roubei do meu irmão. Mas ela bebeu antes da batida, eu é que só descobri depois.
Uma senhorinha de óculos pontudo, na frente dela, a encarava horrorizada. Um rapazote, duas pessoas atrás, tirou o fone do ouvido direito. Na camiseta azul turquesa lia-se “Adidas”.
— Olha aqui, dona Cláudia, eu não quero ver sua filha nem na próxima encarnação. Porque ela era a única que tava com o celular funcionando depois da queda e ao invés de usar os últimos créditos pra ligar e pedir o guincho pra ir buscar o carro ribanceira abaixo, em Pirituba, ligou pra pizzaria.
— Meu deus do céu!!! EU NÃO TÔ ACREDITANDO, MARLENE!! Cês não iam pra casa de Tatiane? Tavam fazendo o quê dentro dum carro, voltando de Pirituba?
— Pois então. A gente foi numa rave lá. Ali, depois da “cova quente”.
— Eu não tô acreditando! Você levou minha filha na “cova quente”. Aquilo é um desmanche!!!
— Eu sei, mas a ideia não foi minha, não.
— Mas, vocês não disseram que iam na casa da Tatiane? Cadê a Tatiane?
— Tava com a gente também, foi até o namorado dela que ajudou a gente.
— Então, vocês não foram pra casa dela. Vocês mentiram pra mim!
Dona Cláudia grita do outro lado. Marlene afasta o celular da orelha. As pessoas na fila acompanham metade do diálogo, concentradas. A moça de vestido amarelo, atrás dela, parou de mascar o chiclete para ouvir melhor a conversa.
— Não. Mentir, mentir, a gente não mentiu, não. Foi assim, uma mentira meio pela metade, né!? Porque a gente realmente ia na casa da Tati. É que a gente pegou um atalho.
Um caminhão da construção civil entrava na rua do banco. O barulho ensurdecedor do motor aumentava rapidamente. E dona Cláudia, continuava aos berros:
— PIRITUBA FICA FORA DA CAPITAL, MARLENE!!! Que atalho foi esse?!
— Olhe, dona Cláudia. Eu não tô podendo falar mais com a senhora não, viu!? Vou me ocupar agora.
Marlene tirou o sapato do pé esquerdo, deixou o sapato no seu lugar na fila e saiu apressada.
— Não pense que eu vou esquecer essa história, não… vocês vão...
Marlene saiu do banco e jogou o celular na máquina que girava o cimento em cima do caminhão. O aparelho tinha a tela rachada.
— Fim de conversa.
E voltou para a fila.
Sobre a Autora:
J. Brandão (ou Josiene Brandão Campos) é alagoana, atualmente radicada em São Paulo. Escreve por hábito, terapia e gosto. É amante da leitura desde a adolescência e louca por animais desde sempre.
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