Um dia após a prisão do jovem entregador, Elisa ainda pensava na última frase que ouvira do rapaz, quando seu devaneio foi interrompido pelo estagiário trazendo um advogado.
— Doutora, o doutor Saulo quer falar com a senhora.
— Obrigada, Tavares.
O advogado entrou e cumprimentou com um aperto de mãos a delegada.
— Elisa, eu vou direto ao ponto com você.
— Primeiro, deixa eu te lembrar que aqui eu sou delegada, não sua colega de escola.
— É disso que eu estou querendo falar, Elisa. Você está chegando aqui querendo que todos te vejam como uma autoridade que...
— Que eu sou. Saulo, não ache que estou sendo arrogante, mas eu não estou aqui só como uma menina da cidade e por mais que seja difícil me verem assim, eu sou uma autoridade aqui. Se eu ficar deixando vocês me tratarem de qualquer jeito, não vai dar certo.
— Se você for você mesma, vai ser melhor. Não tem que tentar se impor pelo distintivo.
— Tá. Mas não foi disso que você veio falar.
— Não exatamente, mas tem a ver. Eu vim como advogado do Vander, o rapaz em quem você atirou ontem e prendeu sem motivos.
— Ele entregou uma caixa com um absorvente manchado pra mim, fugiu da polícia e não obedeceu a ordem de parada.
— Ah, então só por causa de uma brincadeira dessas você atira no rapaz?
—Foi de raspão na perna, só pra ele parar. E isso não é brincadeira, Saulo. Isso foi um aviso. Algum bandido desses cantos está querendo me desafiar.
— Você tem alguma prova ou um indício que seja do que está falando?
Elisa suspirou, tentando fugir da resposta inevitável.
— Ainda não. — Respondeu, por fim.
— Então. Vai com calma, no primeiro dia atirando na perna de um rapaz, e negro ainda por cima, não vai te ajudar em nada.
— Quem te contratou?
— O que? — Titubeou o advogado.
— Esse rapaz não tem cara de ter condições de pagar advogado, além do mais, ele vai ser solto daqui a pouco.
— A família dele me procurou e eu fiz um preço acessível pra ajudar.
— Por causa de uma noite na cadeia?
— Elisa, você atirou num rapaz negro, no meio da rua, que não estava fazendo nada de mais, a questão é muito mais que uma noite na cela. Eles querem te processar.
— Como assim?
— Você sabe que o que fez pode ser encaixado como racismo.
— Sabe o que ele me disse quando fiz umas perguntas a ele? Que eu não sabia o tamanho do esquema.
— Isso é papo pra se fazer de machão.
— Você sabe que ele já é fichado, né?
— Elisa, eu só vim avisar. A gente se conhece desde a escola e eu torço mesmo pra que você dê certo aqui. Deixa esse rapaz de lado. Tanta coisa pra resolver aqui na cidade…
— Tem. Tem mesmo, Saulo. Eu, mais do que ninguém, sei o que precisa ser resolvido nessa cidade. E vou começar querendo saber por que você está protegendo esse cara. Está em algum esquema com ele?
— Está achando o que? Não estou aqui pra interrogatório não, e posso entrar em contato com a corregedoria se você começar a falar desse jeito comigo. Elisa, presta atenção, deixa de paranoia que aqui não é Serra e aqueles lados que você trabalhava não. Aqui é interior, noroeste, cidade pacata. Crime aqui é roubo de galinha, muro comendo terreno vizinho, briga de esquina.
— Até parece que você não é advogado aqui. Você sabe que aqui acontece tudo quanto é tipo de crime, igual em qualquer lugar. E eu não estou aqui pra focar só numa parte.
— Só vim conversar, espero que pense no que eu disse. Tenha um bom dia, qualquer coisa sabe onde é meu escritório.
Saulo saiu, enquanto Danilo entrava trazendo um café.
— E aí, o que ele veio fazer?
— Não acha que está muito curioso pra um estagiário não?
— Desculpe, doutora.
Elisa pegou a xícara e deu uma golada no café, já frio pela falta de conservação da garrafa e a demora de Danilo ao tentar ouvir a conversa parado na porta.
— Esse aí só me deixou mais desconfiada.
— Como assim?
— Tavares, você acha que o Saulo ia fazer desconto pra ajudar alguém?
— Ele está numa fase boa, reforma de escritório e da casa, carro novo...
— Ali eu conheço, nunca foi flor que se cheire.
— A senhora não está dizendo isso por que ele te enganou não, né?
— Está me achando com cara de que, Tavares? Acha que eu não sei separar as coisas não? Problema dessa cidade é que todo mundo sabe da vida dos outros.
— Desculpa, é que os boatos...
— É boato velho. Mania de todo mundo achar que mulher largada é mal amada. Tanta coisa pra fazer da minha vida pra eu ficar dando tempo pra homem.
— Eita, que a doutora não está boa hoje.
— Não estou boa com esse café frio e ralo. Trata de fazer um café decente.
— Pode deixar, delegada. — Disse, deixando escapar uma rasa ironia ao fundo.
— O que é? Achou que delegada ia ser mais mansa?
— Não... É que... Eu vou lá... — Gaguejou.
— Não disfarça que aparece mais. Desculpa falar desse jeito, é que a cabeça está longe. Essa visitinha do Saulo só levantou minha suspeita.
Nesse momento, Pereira e Freitas entraram na sala da delegada, que se encontrava com a porta aberta.
— Delegada, recebemos uma ligação anônima dizendo que viram uma movimentação estranha numa casa do Vale Encantado. Parece que dois homens puxavam uma mulher que parecia estar fardada.
— Prepare a viatura. Vocês vão na frente. Eu, o Gomes e o Saldanha vamos atrás.
Obedecendo ao comando de Elisa, Pereira e Freitas chegaram primeiro à rua próxima à indicada na ligação e foram recebidos por estampidos ao curvar a esquina com a viatura.

Capixaba natural de Ecoporanga, atualmente residindo em Feira de Santana-BA; estudante de Pedagogia, escreve desde criança. Apaixonado por café, criança, história, arte e cultura brasileira. A Arte de Viver foi sua primeira novela publicada, além da coletânea Contos Oh! Ríveis, de humor, estando presente em coletâneas de contos e poemas do Projeto Apparere e contos disponibilizados na Amazon.
O gênero policial vem sendo seu novo foco na escrita, explorando a temática familiar, um prato cheio para discutir as relações da sociedade e refletir sobre as atitudes passionais.
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