Capitulo Parte I BERNARDO
Oitavo dia
Era madrugada, saí para caminhar. O vento estava quente e a minha garganta seca, minhas mãos tremiam e minha cabeça doía mais do que qualquer outra coisa. Estava ali, as árvores sibilando em companhia, um grilo e minha mente, atroz como sempre, denegrindo minha própria imagem. Poderia ser covardia da minha parte, sair em plena avenida, de madrugada, porque os carros, eles nunca dormem, nem seus motores e nem suas luzes, poderia ser covardia da minha parte pensar em como o mundo não tinha a necessidade nenhuma da minha presença. Acho que estava na crise dos 21, aquela onde você quer alcançar o mundo e descobre que tem pés pequenos demais. Queria fazer a diferença, queria que não me comparassem tanto, queria que pudessem me ver como apenas um alguém que está procurando o norte, não precisam apontar para onde é, eu vou encontrar sozinho, quando chegar a hora.
Duas horas antes:
— Bernardo?
— Oi, mãe.
— Chegou da faculdade?
Sempre a mesma pergunta, mesmo que eu estivesse impelindo minha presença pela porta principal. Suspirei.
— Sim, mãe…
— Como foi o dia de hoje?
— Normal, como todos os outros
— Seu pai está no escritório resolvendo algumas coisas.
Mas eu não tinha perguntado nada. Minha mãe, sua postura leve e firme, seu andar elegante e uma mente brilhante, mas que fora completamente ofuscada pelo temperamento imperioso de meu pai, seu jeito rude e suas falas arraigadas a um passado que não mais comporta o nosso presente, mesmo assim, mesmo ela não tendo me ensinado nada a respeito, eu sabia que a mulher não foi feita para ser um bibelô de enfeite, uma abotoadura elegante na roupa do homem, a mulher não era enfeite, nunca foi e nunca será.
Ela deu um sorriso e veio até mim, estava com um monte de papéis nas mãos e eu fiquei encarando, ela estava com olhar triunfante! Senti sua atmosfera de felicidade e o olhar que elucidava a realização da conquista, abri um sorriso:
— Seu projeto deu certo?
— Maravilhosamente bem!
Ela era professora, engajada em cuidar da alfabetização das crianças, em lutar por elas, em ser a escada que guiaria cada aluno que por ela passasse a um futuro cheio de oportunidades. Para ela, educação não tem e nunca teve uma classe social. Fui até ela e dei-lhe um abraço:
¾ Parabéns, mãe!
Estava feliz, feliz de verdade, porque ela era o meu maior exemplo de uma verdadeira humanidade!
— Escute! Como comemoração, vamos jantar e eu convidei a família.
Ela não devia ter feito isso, tinha essa vontade de espalhar sua prosperidade, como se todos fossem ficar rindo e parabenizando, ela era inocente demais para esse mundo vil e pérfido. Fiquei sério.
— Por favor, Bernardo, estou contando com você!
Coloquei os fones e assenti com a cabeça ao som de Strauss. Fui para o meu quarto, fechei a porta, deitei na cama e olhei para o teto. Era escuro e frio, o mundo não me acolhia e senti vontade de ter uma ou duas companhias, além dos fones em meus ouvidos.
Às vezes eu fecho os olhos e me imagino longe, na beira de um penhasco gigante, ao lado tem uma cachoeira. É úmido e acolhedor, respiro fundo, aquele é o meu lugar, meu único espaço no mundo, o barulho da água caindo, a altura emergindo e meu coração batendo compassado com os meus próprios pensamentos, expiro e dou um grito, então grito de novo e de novo, sinto a liberdade de poder liberar meu sufoco!
Todos deveriam ter seu lugar preferido no mundo, onde pudessem ser os mesmos, o verdadeiro eu, onde a liberdade ainda não se corrompeu! Então eu abro os olhos e estou aqui de novo, no meu quarto, mas não no meu conforto, está de noite…
“Droga, eu dormi!?”.
Minha mãe bate à porta, duas batidas clássicas, como em filmes dos anos passados. Chama meu nome e avisa que me quer na sala para receber os convidados, então ouço seu passos, os pés nos saltos altos, afastando-se lentamente enquanto faz sonora a medida que se distancia.
Tomei um banho e fiquei um tempo embaixo do chuveiro. Por que o melhor momento para se refletir sempre é no banheiro? Não o sei.
Coloquei minha camisa branca de botões, ela que havia separado, coloquei meus jeans escuros, os únicos que eram considerados “mais apropriados” e, por fim, calcei meu ALL Star. Tudo pronto, olhei no espelho, forcei um sorriso, penteei meus cabelos…
Desci as escadas.
Lá estavam, mamãe, papai e, comigo, a família perfeita. Não sei por qual motivo instituíram que uma família é completa apenas se tiver a figura feminina e a masculina. Meu pai era apenas o título, porque minha mãe, ela sim, sempre fez, sozinha, os dois papéis… Pessoas batem à porta e então tudo começa.
Sabe quando você leva a cena ou a vida em piloto automático? Não importa muito, não importa o contato, porque você sabe que aquelas pessoas não dispõem nem da mínima sinceridade em seus atos, você apenas assente e sorri, conversa e responde, você apenas entra em modo automático e se deixa ser levado, porque explicar para eles a minha intensidade ou tentar realmente levar tudo na mais perfeita verdade, simplesmente, não daria certo, já que algumas pessoas sempre vão achar na “mentira” a melhor forma de cortesia.
Na mesa de jantar, todos balbuciando alguma coisa, meu pai, se gabando de seus feitos na empresa, meus tios rindo em conjunto, as mulheres apenas sorrindo, acompanhando a conversa, expectando algo de que deviam fazer parte, afinal, minha tia era uma pintora de sucesso e colunista de primeira no jornal da cidade, minha mãe fundou e criou vários projetos, tinha uma excelente carreira como professora e a amiga dela que também era passiva na conversa, era diretora da escola mais renomada do estado e mesmo assim, aqueles homens falavam de futebol, dinheiro e ações empresariais, mesmo que eles pudessem oferecer tudo, jamais conseguiriam ser tão especiais como aquele trio de mulheres que os acompanhava!
— Ei, garoto!
Meu tio Arnaldo chamou minha atenção, ele sempre fora o modelo perfeito de machista exotérico, meu pai era o irmão caçula, mas não deixava de estar perto do perfil de meu tio.
— Sim?
Arqueei as sobrancelhas e encarei os dois.
— Quando vai começar a trabalhar nos negócios da empresa como seu pai?
Meu exímio pai era diretor de uma empresa. Havia entrado na vida de trabalhador com dezesseis anos e, desde então, dedicou tudo de si àquela companhia. Para ele não havia muita diferença entre gostar do que se faz e fazer o que se deve, a melhor opção sempre deveria ser a mais rentável. Ele pegou o guardanapo, passou-os sobre os lábios, deu um pigarro e respondeu em meu lugar:
— Meu filho… Já está na faculdade, cursando direito e depois vai assumir um lugar na empresa.
— Soube que ele andava com uns papos estranhos sobre ser escritor!
Meu pai deu uma risada estridente e meu tio o acompanhou, todos os presentes me encaravam esperando uma resposta, novamente meu pai tomou a palavra:
— Como um hobbie, após se formar, mas antes ele vai buscar a estabilidade…
— E o que seria a estabilidade, pai? — indaguei, admito. Usei um tom insolente impelido na voz, mas sorri de forma a condescender com o momento, meu pai deu um pigarro e continuou:
— Ter um bom emprego, dinheiro, uma casa só sua, poder se sustentar sozinho. São coisas como essas, Bernardo, mas você não entende ainda, porque tem tudo de mão beijada.
— Isso, garoto! Seu pai tem razão, sonhar não garante o pão…
Aí se formou aquela cena que qualquer um pode imaginar. Ou melhor, qualquer um com identidade e sonhos pode imaginar. Todos na mesa voltaram seus olhares para mim. O silêncio era sufocante, meu coração palpitava e eu aposto que meu rosto, em resposta, ruborizou. Engoli em seco. Entrelacei os dedos de ambas as mãos e as levei ao meu queixo. Aquilo não era um mero capricho, aceitar seus sonhos e lutar por eles é a coisa mais corajosa que se pode fazer, porque sempre terão pessoas à mesa que acharão que sabem o melhor para você!
— Se tudo isso trouxesse felicidade, não seriam tão amargos… Homens exaustos que largaram os sonhos na estrada e se sentem intimidados com as conquistas de suas mulheres amadas!
Estava feito, comprei a briga. Desse jeito e naquele momento. Não foi perfeito, mas foi meu momento, no qual aceitei que apenas eu saberia o melhor para mim, mesmo que não tivesse sonhos concretos não viveria pelos ideais de uma outra pessoa, um outro ser! Segundos… Sua vida pode ser decidida em uma resposta de segundos.
Meu pai lançou um olhar de reprovação à minha mãe, não me encarou nos olhos, passou o peso da reprimenda para ela e só então, depois, encarou-me e deu um sorriso sarcástico, quando disse:
— Você diz isso, porque é jovem, tem pais que o sustentem, é fácil querer sonhar assim…
— No nosso tempo, tínhamos que correr atrás do pão, do sustento, não tivemos a escolha e nem por isso somos infelizes! — Meu tio emendava as falas de meu pai como se fosse um discurso em atos ensaiados, como se aquela história tivesse sido repetida tantas vezes que agora as falas, estavam incrustadas em suas mentes.
Decidi que aquelas seriam as últimas palavras que diria, então, cuidadosamente escolhia cada palavra a medida que falava:
— Sonhar não é fácil. Sabem por quê? Porque a todo momento sempre vai ter alguém pesando os sonhos e o sustento. Em cada esquina, na busca por mim mesmo, vou encontrar um alguém tentando apontar a direção certa, a direção que eles acham certa! Não existe essa “não tive escolha”, porque do mesmo jeito que escolhe abandonar um sonho, você também pode escolher sonhar…
Meus dedos apertavam a borda da mesa e quando percebi já estava de pé, olhando todos sentados. Enquanto finalizava aquele meu monólogo, ao contrário deles, o meu era fruto de minhas emoções, nada daquilo era ensaiado. Continuei:
— Sonhos não são produtos, não expiram com data de validade. Posso não sonhar agora, mas também posso sonhar com oitenta anos de idade. Meus desejos podem mudar, posso quebrar a cara, posso descobrir que fiz escolhas erradas…
Meu pai levantou a voz e me interrompeu:
— CHEGA, BERNARDO!
Em resposta automática, elevei o tom da fala e disse, por fim, minhas últimas palavras:
— Posso descobrir que fiz escolhas erradas, MAS AINDA ASSIM VAI SER MELHOR DO QUE VIVER UMA VIDA DE ESCOLHAS RESOLVIDAS POR ALGUÉM COMO VOCÊ!
Virei as costas, empurrei a cadeira e saí andando, para longe de tudo aquilo. Escutei sob os ombros minha mãe gritar meu nome:
— BERNARDO!
Bati a porta e já estava do lado de fora, caminhando sem rumo definido, mas com as minhas próprias escolhas para servirem-me de abrigo.
Agora:
Ainda andando sem rumo definido, garganta seca e sem nenhum dinheiro para comprar uma bebida, enquanto olhava os galhos das árvores balançarem lentamente, sentia aquele ar morno e quente, minha cabeça ainda doía, mas minha mente estava anestesiada, conformada e talvez orgulhosa. Posso estar na crise dos 21 anos, posso não saber quais serão meus futuros planos, contudo hoje descobri uma coisa, que acho, guardarei para o resto da minha existência:
“Se escolher também dói, se escolher é um ato de coragem, somente aqueles que já provaram, sabem como é brigar com o mundo, transpor a barreira, escolher a si mesmo e não esperar nenhuma vantagem: porque tudo que basta somente pertence a você e a quem você quer ser”.
Tudo bem não ter uma resposta imediata, eu sei, às vezes assusta não ter a vida exata, caminhar em meio às dúvidas, na estrada, em plena madrugada. Tudo bem, o que importa é que cada um tem seu tempo. Somente você sabe o caminho da sua própria jornada.
Quando se tratar do seu querer, de você mesmo, não haverá escolhas erradas, apenas pequenos aprendizados, que às vezes, são necessários.
Parei no meio da rua e olhei para trás, já tinha caminhado tanto que não enxergava mais o meu passado, os passos que já foram dados. Dei um sorriso, pensei:
“Talvez viver de verdade seja isso”.
Sobre a Autora:
Uma autora independente que gosta de escrever tanto quanto de respirar, participou de varias antologias e foi uma das dez finalistas no concurso "cuenta me un cuento" de 2020. Também participou da antologia anjos caidos da dar books, onde o livro esta na amazon com o conto intitulado: "o testemunho de Delphin". Foi selecionada para o a antologia Teleportados com o conto: " Por de trás da pálpebras", no entanto não participou na formação do livro. Uma escritora inovadora, aspirante a poeta e muito concentrada em sempre dar o seu melhor, buscando uma oportunidade de provar o valor de suas palavras.
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