Capitulo Parte II ALICE
Décimo quarto dia - A morte tem cheiro?
Quando era menor, lembro-me vagamente que compareci a um velório, não sabia quem era o corpo que o altar guardava, mas lembro-me bem como era o cheiro do lugar. Naquela época cheiros eram como cores, então assimilei o cheiro de lavanda, a cor roxa, e depois disso, ela nunca mais fora a mesma para mim.
Estava andando pela calçada conjecturando sobre algumas coisas de minha vida, então fui atingida por um vento forte e um cheiro mais forte ainda. Pessoas que caminhavam ao lado tamparam os narizes fizeram caras feias e uma ou duas daquelas pessoas disseram a seguinte frase: "alguma coisa morreu por aqui".
Isso me fez pensar convictamente: será que a morte tem um cheiro e, se ela tem, será que ele varia de pessoa para pessoa? Porque aquele cheiro inconveniente que muitos julgaram provir de um cadáver, aquele cheiro que alguns especularam ser de algum animal morto, aquele cheiro que trouxe a palavra morte a boca de algumas pessoas que passavam não tinha cheiro de morte para mim.
Se eu pudesse descrever a morte eu descreveria como um lugar branco, com seda escorrendo pelas paredes, algumas pessoas em prantos e um odor conveniente de lavanda e, nessas características e nesses pequenos detalhes, posso dizer que conheci a morte aos meus 5 anos de idade.
Não acho que seja de todo conveniente recordar a história do início ao seu final premente, no entanto, acho que devo pelo menos mencionar que o enterro a qual me referi anteriormente se tratava do esposo de Ambrósia e quando disse que conheci a morte aos 5 anos de idade, quero dizer que
em um dia qualquer, os pais de uma menininha acharam que seria ótimo fazerem presença ao enterro de um velho amigo da família, então eles a vestiram toda de preto com um vestidinho e sapatinhos de boneca que machucavam seus pequeninos dedos e a levaram pelas mãos para adentrar o velório e testemunhar o enterro.
Os pais da menininha chegaram ao lugar e ficaram passando de pessoa em pessoa, deixaram a menina em um canto e pediram que ela não se movesse, mas todo pai deveria saber que nenhuma criança, quando deixada por conta, vai obedecer apenas às palavras… Então a pequenina olhou a frente e viu um altar, branco, com jarros e muitas lavandas. As flores roxas encantaram a garotinha e ela quis chegar mais perto, ela quis subir no altar e tocar aquelas pétalas que tinham a cor e o cheiro mais vívido que ela já vira.
Então se afastou do lugar prometido e foi dando pequenos passinhos em direção do objetivo, via algumas pessoas se debruçarem no altar e derramarem um punhado de lágrimas, mas a menininha não entendia porque as pessoas choravam em um lugar tão lindo, tão acolhedor, em um lugar tão iluminado e com cheiro de flor…
A única coisa que a incomodara no altar era a grande caixa branca, sobre a qual várias pessoas deixavam suas coisas, suas coisas mais preciosas, desde lágrimas até flores graciosas. Chegando cada vez mais perto, subiu os três degraus com dificuldade apoiando as pequenas mãozinhas para enfim chegar ao topo. Quando chegou, sentiu-se uma princesa em seu próprio coreto, então ela tentou alcançar as flores e rodopiou pelo pequeno salão, inspirando bem fundo para guardar na memória o cheiro daquelas flores, daquele lugar.
Em meio aos rodopios ela olhava o grande salão: alguns choravam, alguns estavam com cara de lamentação e em outros era evidente o quanto forçavam alguma emoção. Todos de preto, exceto por uma mulher, uma senhora nem tão alta e nem tão baixa. Ela usava um vestido longo e um blazer vermelho vinho, não detinha no rosto a mesma expressão que os outros, ela contemplava a menininha rodopiando e sorria de forma simples, um sorriso daqueles que só de ser visto, transborda a paz.
A garotinha parou e ficou olhando aquela mulher que vinha ao seu encontro, sorrindo, tornando aquele momento lindo aos olhos dela. Observava a mulher como se fosse a mais linda rosa no meio de todas aquelas lavandas. Com certeza era a flor mais bela dali. A mulher abaixou-se, apoiando as mãos nos joelhos para ficar da altura da garotinha e disse:
— Como você é linda.
A garotinha ficou encantada com aquele sorriso, aquelas roupas em vermelho vivo e a forma doce com a qual o elogio fora a ela dirigido, então ela piscou os olhinhos com força, procurando verificar se aquela forma calorosa de contato, a qual nunca havia presenciado devido à distância para com os próprios pais, piscou com força, buscando ver se tais gestos eram mesmo reais. Após o abrir e fechar de pálpebras a senhora ainda ali continuava, então a garotinha sorriu de volta. Estava contente por conversar com uma verdadeira rosa e então disse:
— Me chamo Alice, tenho cinco anos e você?
Novamente a rosa sorriu, provavelmente sentindo a forma cordial e madura que a resposta da menininha a conferiu, então sorrindo de novo ela disse:
— Me chamo Ambrósia
A garotinha deu um sorriso e inclinou os braços para que a senhora a pegasse no colo, assim ela o fez e então a pequena Alice, fazendo uma conchinha com as mãos, sussurrou no ouvido da senhora:
— Ambrósia é quase como rosa!
Hoje, indo ao encontro de Ambrósia que estava a uns metros à frente, carregando as sacolas da feira, olhando-a assim de forma distante como quando era criança, sinto que por mais que o objetivo daquele velório fosse lamentar uma perda, obtive nele o meu mais belo ganho e algo me faz pensar que ela também pensa assim, afinal naquele lugar haviam duas pessoas que precisavam ser preenchidas,
a garotinha que precisava de uma linda rosa para preencher o lugar deixado pelas lavandas e a mulher que perdera o marido para todas aquelas flores e precisava de alguém que lhe mostrasse novos odores".
Por isso digo e gosto de imaginar, que a morte tem um cheiro diferente para mim e um significado também, porque somente com a morte temos a oportunidade de valorizar o presente, amar os momentos e vivê-los com toda intensidade. Nem sempre perdas são o sinônimo de solidão, por vezes elas são um grande motivo para recomeçar e assim, aos meus cinco anos de idade, a morte teve cheiro de lavandas. Mesmo com todas aquelas roupas pretas, fui capaz de contemplar uma linda rosa vermelha.
Ambrósia viu-me de longe e apressei-me para tomar as sacolas. Ela deu aquele sorriso como sempre, dizendo:
— Menina Alice, pode deixar que eu levo! Não deveria estar andando a esmo por aí…
— Vim te encontrar!
— Deveria pois ter me avisado, porque assim sairíamos juntas…
— Surpresas, Ambrósia querida, surpresas são a mais bela essência da vida!
— Toma jeito, menina, para de andar no mundo da lua a rua é perigosa para uma mocinha!
Tomei seu braço esquerdo e entrelacei no meu, deitei em seu ombro, sentindo que ela ficara mais baixa desde quando a conheci ou talvez eu que tenha crescido e então fiz a outra mão em concha e disse em seu ouvido:
— Então seremos duas mocinhas em perigo!
Ela deu risada. Agradeço todos os dias por isso.
Sobre a Autora:
Uma autora independente que gosta de escrever tanto quanto de respirar, participou de varias antologias e foi uma das dez finalistas no concurso "cuenta me un cuento" de 2020. Também participou da antologia anjos caidos da dar books, onde o livro esta na amazon com o conto intitulado: "o testemunho de Delphin". Foi selecionada para o a antologia Teleportados com o conto: " Por de trás da pálpebras", no entanto não participou na formação do livro. Uma escritora inovadora, aspirante a poeta e muito concentrada em sempre dar o seu melhor, buscando uma oportunidade de provar o valor de suas palavras.
Revisão: Tatiana Iegoroff
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