Capitulo Parte II ALICE
Sexto dia - Coincidências
Aquelas pessoas que inevitavelmente pertencem a um grande desejo não se perdem por meios fáceis e, muito menos, por caminhos preparados. Essas pessoas, do início ao fim, buscam fazer o seu próprio lugar; elas não tateiam no escuro, mas sim buscam meios para fazerem sua própria luz. Pessoas que possuem um propósito, um desejo, um sonho que não taxam como sonho, porque nós, em maioria, temos o costume de sonhar com o impossível, mas essas pessoas não sonham, elas realizam!
Lembro-me vagamente de quando inclinei minhas aspirações para a medicina e quis, por um certo tempo, adentrar este mundo e fazer parte dele. Na época, não haviam dúvidas quanto ao meu talento para conquistar meus desejos e, tanto na escola quanto no âmbito social, todos diziam que seria plenamente possível, mesmo com as dificuldades econômicas, de custear tal nível superior. Ouvia muito que tinha talento e boas notas, que era exemplar e poderia fazer o que eu quisesse. Recebia torrentes de elogios porque havia, em parcialidade, direcionado o rumo da minha vida ainda no início do ensino médio, quando, em verdade, poucas pessoas ali foram tocadas pelo sentimento da vocação e pela decisão específica de um curso e recebendo tanta credibilidade, por um momento cheguei a acreditar que realmente poderia alcançar tudo que ousasse almejar.
Estamos tão acostumados a nos apegar às palavras e, quando percebemos, estamos vivendo pelas frases e verbos de outra boca. Todas aquelas expectativas exorbitantes sobejando sobre mim e, ao mesmo tempo, fazendo-me acreditar que era possível conquistar apenas com o desejo e vocação, talento "nato" e sem suor do esforço de um bom trabalho realizado. Pois é!
Quando desejei, vi que era possível e quando acreditei que aquele possível era fácil e alcançável, abandonei meu esforço, perdi meu propósito. Querer realizar algo porque é alcançável ou rentável, sem ter um objetivo específico por detrás disso é a forma mais vazia de conquista.
Também nesta época, havia uma menina na mesma sala que tinha guardado consigo, no peito, os mesmos anseios, só que aos olhos dos outros ela era comum, não havia nada de inato em seu talento, ela não estava rodeada de palavras que lhe garantiam o mundo, ao contrário… Um dia, um professor substituto começou no final da aula a indagar-nos sobre o futuro e quem nós seríamos, o que faríamos. Ouvi a sala ressonar sobre minha vocação para a medicina e como eu passaria com toda a certeza, porque era inteligente e tinha destreza. Então o professor voltou-se para a menina no fundo da sala, comum e que não se destacava. Ela respondeu que cursaria medicina, se especializaria em cardiologia e então eu vi, observei as pessoas em volta encarando-a com um olhar de derrota como se não fosse possível para ela, porque, por aparências, ela não tinha nada a seu favor, não tinha elogios, não tinha palavras e nem aqueles "amigos" adubadores de ego. Ela estava ali, não proferindo um sonho, mas dizendo o seu futuro e nem isso foi o suficiente para convencer todo mundo.
"Vai competir com a Alice, está perdida".
"Bem difícil, boa sorte".
"Quem sabe né, Maiara".
O nome dela era Maiara e, ao assistir aquela cena, percebi que ninguém nunca havia me desejado a tal "boa sorte", não no tom como fora direcionado a ela. Também não havia recebido olhares de pena e sem condescendência; igualmente não havia sido comparada com ninguém, porque no mundo de aparências, apenas a vaga impressão de talento e o reconhecimento em alto e bom tom é necessário para catalogar pessoas e seus futuros.
Ninguém se preocupa com o âmago da vontade. Não importa o pretexto, porque mesmo que Maiara quisesse salvar vidas e eu estivesse apenas sendo conduzida pelos argumentos positivos, tão pouco importava o nobre motivo.
O tempo passou e as palavras dos demais deixaram-me convencida sobre minha capacidade abrangente e tudo foi ficando transparente, mudando o foco e eu já não via mais sentido em fazer nada, porque eles faziam tudo parecer tão fácil para mim e, ao mesmo tempo, eu que não tinha um sonho só meu tentei abraçar os prospectos de todos e terminei perdida, sem pertencer a lugar nenhum. No entanto, em relação à Maiara, posso dizer que as palavras obtiveram o efeito contrário. Ela, que não estava sendo motivada e nem continha nas palavras dos outros suas entusiastas aliadas, ela que sempre fora catalogada como alguém destituída de personalidade para o cargo, como alguém ofuscada… Continuou firme!
Quando me perguntaram, quase no fim do ano, o que eu seria, percebi que já não detinha a mesma empolgação de antes, porque os que acharam que eu seria uma ótima candidata a medicina, agora balbuciavam meu dom para o empreendedorismo e eu ficava perdida, deixando-me guiar por esses achismos que sempre conduziam a um beco sem saída. Então ali, sem saber ao certo qual argumento seguir, a opinião de quem levar em consideração, fiquei perdida, sem resposta e sem reação. Mas uma voz irrompeu do fundo da sala, forte e altiva, diferente de tudo que eu já ouvira:
— Ainda quero medicina!
Todos olharam para trás, sentindo emanar uma aura de decisão, uma decisão pura e que não fora influenciada por nada nem ninguém e dessa vez… Dessa vez a expressão de Maiara não deixou espaço para argumentos e opiniões, porque em seus olhos era vívida a voracidade de quem cravou os pés no caminho desejado de tanto ambicionar trilhar por ele. Olhei para ela de soslaio e dei um sorriso, então aquela era a diferença, a sutil diferença, entre cultivar as próprias esperanças invés de apenas adubar as dos outros, na qual você segue o que acredita e não se deixa influenciar no que acreditam sobre você.
Cinco anos depois,
como naquelas cenas de câmera lenta, cruzei os ombros com ela, lado a lado. Estávamos em sentidos diferentes. Ela estava vindo no corredor do hospital, de jaleco branco, provavelmente estava estagiando, enquanto eu estava indo rumo à porta de saída após uma das consultas de rotina e sim… Recordei tudo aquilo em questão de segundos, todas aquelas memórias de um passado que não definiram o futuro de nossos mundos. Ela não me reconheceu, mas eu reconheci aquele olhar, porque foi a primeira vez que aprendi sobre não se deixar influenciar e sobre o oco no peito quando não se cultiva nenhum sonho próprio. Ela sempre esteve um passo à frente, mas nem por isso me deixou atrás.
Agora:
Estava na fila do supermercado. Havia pegado balinhas e ovos, pois Ambrósia havia me prometido o seu famoso bolo de mirtilo, uma das recompensas por se seguir ordens e comparecer às consultas de rotina, queria entender o que tanto os preocupava…
No mercado haviam três filas e eu estava na da ponta, aquela comumente destinada a pessoas com um volume inferior a dez produtos. Olhei em volta: sempre achei as pessoas curiosas porque o supermercado revela planos. Você carrega nos carrinhos cestas ou mesmo nas mãos coisas que, explicitamente, podem fazer com que outras pessoas te julguem. No meu caso era óbvio que estava passando no mercado para pegar um item encomendado, pois é, as balinhas me denunciavam.
Escuto uma fala baixa e que, ao mesmo tempo, atrai a atenção de algumas pessoas em volta:
— Eu só vou beber um pouquinho.
Foi o que um homem disse na terceira fila. Sua voz estava comedida e, mesmo assim, foi ouvida em claro e bom tom. Devido à disposição do lugar, era de se esperar isso, afinal estávamos todos apertados entre as prateleiras e os caixas. Ele segurava uma garrafa e, de longe, deduzi ser algo alcoólico. A mulher a quem ele se dirigiu estava com uma cara amarrada. Logo percebi que algumas pessoas em volta encaravam aquela cena. Havia mesmo um rapaz que não desgrudava os olhos. Ele estava na mesma fila que o suposto casal e, mesmo assim, não disfarçava nem um pouco para encarar aquela cena e mudar o semblante conforme os pensamentos o invadiam.
O que mais falta na humanidade é compreensão, aceitar um estado e situações sem questionar incessantemente o que você faria se estivesse no lugar da pessoa, porque nós nunca sabemos quais decisões tomaremos. Assim como o nosso amanhã é tão incerto quanto o minuto seguinte de nossas próprias emoções.
Somos fadados a julgar o que não compreendemos e buscamos, sem sucesso, entender mundos em que não vivemos. Quisera eu dizer que nunca fui vítima de meus próprios argumentos e que não tomei decisões afobadas que acarretaram em feridas para os demais; quisera nunca ter errado com os outros e apenas comigo. No entanto, não é bem assim que o mundo funciona, vivemos tanto e sabemos menos ainda, bem como, no fundo, somos escravos de emoções, alforriados, mas ainda assim completos escravos. Simplesmente contemos no peito um coração indomável e sujeito a tomar escolhas que, aos olhos dos demais, podem ser as mais reprováveis, como aquele garoto que encara o casal. Aposto que, em sua mente, ele taxou o homem com a garrafa como um dependente e a mulher que consente com o ato como alguém amarrada a um amor destinado ao fracasso, porém o que garante que eles não são apenas amantes e que a cara amarrada dela é somente revestida de preocupação para com a saúde dele? Nada. E sabem porque temos esse costume de ver situações com essa perspectiva deturpada e arraigada aos ditames da vida? A resposta é que normalmente, e infelizmente, vemos no outro aquilo que contemos dentro da gente e, por isso, talvez, você veja o casal como pobres coitados, como um homem bêbado e uma mulher que insiste em mantê-lo, porque a vida prega certos atos e condena certos tipos de amor e você pode não concordar no início, entretanto quanto mais se vive dentro de tudo isso mais acaba se deixando levar, como a premissa de um filme e seu contexto, você vai aos poucos deixando-se conduzir pelo que esperam que vá interpretar, acho que esta é a forma mais lenta de se perder a identidade, você vai seguindo os trilhos estabelecidos, vai vendo aquilo que os demais esperam que seja visto e se esquece que a essência do mundo está no inesperado, está naquela forma de interpretação revestida de compreensão e esperança, está na falta de julgamentos, está na perseguição incessante de um sonho e da crença nele, está em enxergar com os próprios olhos e sentir com as emoções mais vívidas, sem querer que todos sejam, vejam e sintam o mesmo.
O casal pagou sua compra e foi embora, alguns comentários surgiram depois disso. Fiquei ali pensando: “as palavras e os achismos sobre uma vida têm um impacto. Aposto que a mulher sentiu os olhares de soslaio e aposto que ninguém ali, nenhuma das pessoas que reprovou com veemência a situação, saberiam agir caso se encontrassem nela. Entretanto sei que nenhuma daquelas pessoas gostaria de ouvir ou de ser alvo de olhares, ninguém gostaria da reprovação explícita de estranhos e de suas convicções, porque as pessoas... Elas gostam de censurar o desconhecido, mas odeiam ser alvo dessa mesma censura, porque no fim todos acham que podem ser o júri, mas poucos detém a coragem para assumir a posição do julgado”.
Sobre a Autora:
Uma autora independente que gosta de escrever tanto quanto de respirar, participou de varias antologias e foi uma das dez finalistas no concurso "cuenta me un cuento" de 2020. Também participou da antologia anjos caidos da dar books, onde o livro esta na amazon com o conto intitulado: "o testemunho de Delphin". Foi selecionada para o a antologia Teleportados com o conto: " Por de trás da pálpebras", no entanto não participou na formação do livro. Uma escritora inovadora, aspirante a poeta e muito concentrada em sempre dar o seu melhor, buscando uma oportunidade de provar o valor de suas palavras.
Revisão: Tatiana Iegoroff
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