Capitulo Parte II ALICE
Sétimo dia - Um Julgamento
Andava como se não pudesse pisar nas linhas do chão da cidade, olhei em volta e vi todos tão apressados que pensei: “poderia ser uma hora perfeita para desacelerar meu estado. Aquelas pessoas voavam rumo aos seus objetivos diários e aquilo, bom, era muito corajoso. Porque a vida passa bem rápido no mês de agosto e eu invejava, tinha inveja daqueles com o foco para manter uma vida. No meio deles era apenas eu, uma pessoa sem norte, descabida, mas completamente apaixonada pela humanidade e sua corrida”.
Ambrósia havia me pedido para não demorar, poderia andar pela cidade, mas como sempre, e como todos, eu também tinha hora para voltar. Passando por uma avenida movimentada vi uma frase em um muro, pichada: “as pessoas são tóxicas”. Mas não foi isso que chamou minha atenção. Era um muro branco e limpo, mas também não foi isso que atraiu meus olhos astutos. Embaixo, no chão, havia brotando com força e resistência uma flor branca. Era simples, não era rosa e sim branca, quase ofuscada pelo muro e pela frase pintada.
“Que ironia, dizer que as pessoas são tóxicas quando há uma pequena vida protestando em silêncio contra aquilo, uma flor bem pequena e quase imperceptível, mas ainda estava ali, existindo e sendo linda… Eu acho que a humanidade não percebeu ainda, ninguém é tóxico, apenas somos seres no meio do tumulto, como aquela flor, estamos diante de nossas pequenas qualidades que, por vezes, podem ser ofuscadas pelos ares poluídos da cidade”.
Decidi que para alguns era mais fácil encarar a obscuridade em vez de prestar atenção nas singularidades do coração humano. Nem todos são fáceis de entender e, muitas vezes, podemos ficar confusos sobre o nosso próprio ser.
Cada pessoa no mundo é um coração sozinho, buscando sua autocompreensão e, talvez, esse caminho seja difícil. Algumas vezes podem acontecer acidentes, podemos criar cicatrizes ardentes e talvez até provocar algumas, podemos deitar a cabeça no travesseiro a noite e simplesmente não conseguir dormir, porque a todo momento estamos buscando, procurando nosso lugar e o nosso próprio jeito de se aceitar.
No entanto, somos constantes, insanos que buscam acertar, em algum mero plano. E os erros são inevitáveis, corações e despedidas são apenas parte de nossa corrida. Nem por isso eu diria que tenho pessoas tóxicas em minha vida, porque elas foram corajosas o suficiente para buscarem algo no meio de tanta gente. É mais fácil temer o erro e condená-lo, do que buscar uma forma considerável de aceitá-lo, aqueles que têm medo de tentar nunca saberão até onde, de fato, poderão chegar.
Não existe essa de toxicidade, maldade. O que existem são erros, fragmentos e pessoas que a todo tempo estão procurando uma forma de se encontrarem, aceitarem que precisarão de outras pessoas e seus defeitos, precisarão cair e machucar os joelhos, cada vez mais aprender com seus próprios erros e os erros daqueles que tentaram anteriormente. Ninguém está imune a nada, estamos todos aprendendo com as coisas erradas que vivemos ou talvez fazemos.
O vento soprou forte, jogou meu cabelo no rosto e então senti que, de alguma forma, ele concordava comigo. No meio daquele emaranhado de fios, vi as costas de um rapaz parado no meio do fluxo, encarando o muro. Seu rosto, de perfil, mostrava maxilares trincados, olhos que fitavam com uma agonia evidente aquelas palavras. Estendi a mão como se quisesse alcançá-lo, como se daquela distância pudesse dar duas batidinhas em seu ombro e conferir um pouco da minha esperança. Ele demorou pouco, voltou a andar, passos retos, fortes e decididos, senti-me impelida a persegui-lo, um impulso que não pude repelir.
Ele andava com fones de ouvido e imaginei o que aquela alma, cuja as costas estavam tão rijas, teria para dizer sobre a frase no muro. Aposto, aposto mil e uma agulhas, que ele estava criticando vorazmente o artista das paredes: “suas frases mentem, não estampe sua mentira como se os outros fossem obrigados a aceitá-las”.
Ou talvez… “Você tem razão, escritor dos becos, os muros são melhores que páginas, pois assim pegam o leitor de surpresa. Eles viram a esquina e dão de cara com as palavras...”.
Confesso que me diverti tanto imaginando as reações daquele par de costas que quase o perdi de vista. Ele entrou no metrô e começou a fazer parte da multidão, talvez eu nunca o visse de novo, exceto por uma coisa e como toda boa coisa ela começa com música.
Fui pega de surpresa por uma melodia que ecoava pelo metrô abarrotado. Senti como se, naquele momento, meus pensamentos fossem carregados pelas notas tão doces e, ao mesmo tempo, tão alegres. Quem diz que a música não contagia um coração é porque nunca experimentou essa emoção. Senti-me como naquelas animações infantis que o cheiro de uma comida carrega o personagem. Confesso que meus ouvidos estavam hipnotizados e, inconscientemente, fui levada por aquela composição até, por fim, encontrar seu artista.
Congelei onde estava. Meu coração bateu em pura e única disparada, ali estava! O objeto de minhas buscas, as indagações da minha mente, aquele par de costas que também encarou a mesma obra: o muro.
Vi seu rosto de perfil novamente, ele estava abaixado, rente ao músico e seu suporte de violão, ele olhava com um olhar de quem julga, aqueles olhares de pessoas que acham que conhecem a história toda por lerem apenas um único capítulo. Seus lábios se apertaram e ele estava pensativo quando levou a mão dentro da mochila que carregava, retirou meio pacote de bolacha e depositou naquele suporte de violão, que também continha algumas moedas e uma rosa. No fundo, quis dar risada daquela cena, porque o garoto tinha uma feição de quem estava dando tudo que podia para uma pobre alma perdida. Ele continuou ali, parado, por meio segundo, sorriu para o artista e então seguiu seu caminho.
Pessoa são histórias. Seus rostos podem até ser uma capa, talvez suas falas sejam o prólogo, suas feições e gestos compõem um capítulo, mas ninguém, absolutamente ninguém, mostra-se completo como um livro. Se você não tiver a paciência para perder um bom tempo tentando compreender as essências e, ainda assim, sair conhecendo menos que a metade, porque algumas pessoas são como histórias que duram pela eternidade de uma vida inteira. Ou seja, meu caro, você pode até achar que sabe quem alguém é, mas vá por mim… Há histórias que nem mesmo o autor consegue entender.
Por este motivo, vendo o gesto do garoto, aquele que tomou minhas especulações e fez-me ter muitas indagações, esse mesmo garoto, com o gesto absorto e a oferenda de meio pacote de bolacha, o olhar triste e cabisbaixo, fez-me parar e escutar toda a música que ecoava no metrô. Fiquei, pois queria saber como findaria a melodia que o garoto deixou para trás; fiquei porque interessei-me em ler o músico, nem que fosse por um capítulo e meio, talvez.
O dono da melodia era um rapaz simpático, de uns trinta ou trinta e quatro, estava vestindo uma calça jeans e uma camisa de flanela. Ele sorria com calorosa atenção para cada alma que resolvia parar e escutar, nem que fosse por um momento. Pensei que tocar no metrô era um lugar incomum, pois aquele era o ápice das rotinas robóticas da sociedade. Ele fez uma pausa, pegou uma garrafa de água e eu me aproximei. “Essa é minha deixa”, pensei.
— Linda música…
— Obrigada pelo elogio, é um deleite!
— Toca sempre aqui?
— Nem sempre…
— Porque escolheu tocar em um metrê?
Ele lançou um olhar confuso para minha pergunta imediata e eu continuei esperando uma resposta.
— Acho que as pessoas correm demais, o tempo todo, seria bom saber que ainda tem alguns que param para ouvir uma boa música…
— Então isso é um teste, senhor artista?
— Teste? Como assim…? Ah, pode me chamar de Wallace.
— Prazer, sou Alice. Então, Wallace, disse um teste, pois as pessoas que param podem ser consideradas aquelas que ainda estão abertas para contemplar as maravilhas da vida… Acredite, não me espantaria se algumas dessas pessoas nem percebessem sua presença.
— Você é uma moça bem sagaz, Alice.
— Agradeço.
Então ele colocou a mão no queixo, encarou-me com seriedade e disse:
— Sabe… Às vezes gosto de plantar pequenas fagulhas no coração da humanidade e cada um faz do jeito que pode. Eu acho que a minha forma de alcançar as pessoas seria com a música!
— Olhando por este lado, você alcançou muitas pessoas… —
¾ disse enquanto lançava um olhar para o porta instrumento repleto de moedas, uma rosa, um bilhete e o pacote de bolachas do garoto.
—Então, Alice, engraçado é que eu não venho aqui para tocar por dinheiro, apenas coloco meu instrumento fico inspirado e toco, mas as pessoas deduziram que eu precisava de dinheiro e o mais engraçado é que algumas… Deduziram que eu precisava de afeto, como a rosa, ou de comida, como o meio pacote de bolachas e também talvez neste bilhete, que foi deixado pelo mesmo rapaz da bolacha, haja alguma coisa que ele pensou que eu precisava…
— Não toca por dinheiro? Achei que tinha conciliado seu meio de sustento com sua arte…
Estava confusa, atenta ao bilhete que ele mencionou, pois só havia captado a parte das bolachas e do olhar do garoto, minha curiosidade pelo conteúdo do bilhete era latente. Então ele deu risada e disse:
— Acho que deve parecer que eu preciso de dinheiro, mas, na verdade, eu tenho um trabalho, sabe… Vim para a cidade grande, mesmo sendo do interior, com intuito de fazer minha carreira na música, viver de algo que gosto. Não deu muito certo para mim, mas também não me limitou, porque eu consegui um emprego para o meu sustento e não deixei de fazer o que amo. Toda tarde estou aqui, tocando, espalhando a única coisa que eu sei fazer bem e que me deixa feliz, porque eu acho que é possível fazer o que se ama e também viver conforme as regras desse mundo…
Voltei meu olhar para ele e fiquei pensando que é muito fácil se deixar levar pelo que vemos, apenas pelo que está diante de nossos olhos e aí vamos embarcando em um efeito dominó. Talvez a primeira pessoa olhou para aquele músico e pensou que ele queria dinheiro, porque a sociedade acorda todo dia de manhã para o dinheiro e os políticos e presidentes estão preocupados com o capital e a mídia sempre está propagandeando algo vital para a existência humana. Então essa primeira pessoa depositou a moeda e as demais seguiram na mesma conduta. Talvez para o músico um elogio seria o suficiente, mas ninguém pensou nisso… Ainda estava meio pensativa, quando disse:
— As pessoas estão sempre pensando em dinheiro, pensando rápido sem buscar entender o alheio…
Ele balançou a cabeça em reprovação e apontou para as três coisas que ali continha e que não eram de cunho financeiro, dizendo:
— Não é bem assim, Alice. Gosto de pensar que cada um depositou aqui o tinha para dar, o que podia oferecer. Cada pessoa deixou aqui o achava que eu precisava ou mesmo o que elas precisariam no meu lugar. Um pacote de bolachas para quem acha que tenho fome e um bilhete, pois essa mesma pessoa, penso eu, também tem fome de palavras. E sobre a rosa… Foi deixada por uma garotinha. Ela tinha uma mãe que ficava o tempo todo no celular. Às vezes você deposita a sensibilidade e a emoção com a esperança dela voltar.
Aquelas palavras me fizeram pensar. Meus olhos se encheram e eu apenas encarei o músico. Ele entendeu e voltou a tocar, olhando-me de canto àás vezes. Fiquei parada ali, por um tempo, olhando o fluxo de pessoas, pensando que aquele garoto julgou a situação, eu também julguei a situação e o garoto. Pensei em livros e fiz analogia destes com pessoas, pensei no muro e na frase, pensei no equívoco do garoto por nem ao menos ter trocado uma palavra com o artista Wallace, pensei na dedicação dele em tocar para todas aquelas pessoas e nem ao menos ter a certeza se é ouvido. Tudo começou a passar rápido na minha frente. Sentia como se estivesse em câmera lenta enquanto o mundo corria a mil por hora.
Pensei novamente nas palavras e cheguei à conclusão de que: "algumas pessoas deixam o que podem oferecer e oferecem aquilo que pretendem receber, mas também há pessoas que não ofertam nada, há pessoas que trocam palavras com o músico, dão atenção, há pessoas que não têm o que ofertar. Eu estava ali, parada, sem moedas, sem bolachas e sem bilhetes… Estava buscando algo e não sabia nem ao mesmo o que procurar, porque algumas pessoas vão andar pelas ruas abarrotadas, entrar no metrô, ficar entediadas, seguir uma melodia, mas serão tão vazias, porque no fundo não pertencem a nada, estão em busca de seu lugar no mundo".
Saí andando, sem olhar para trás, apenas sentindo a melodia ficar mais distante conforme me afastava. Tive inveja dele, inveja do músico, porque mesmo que fosse daquele jeito confuso, ele havia encontrado seu lugar, ou pelo menos estava lutando por ele.
Sobre a Autora:
Uma autora independente que gosta de escrever tanto quanto de respirar, participou de varias antologias e foi uma das dez finalistas no concurso "cuenta me un cuento" de 2020. Também participou da antologia anjos caidos da dar books, onde o livro esta na amazon com o conto intitulado: "o testemunho de Delphin". Foi selecionada para o a antologia Teleportados com o conto: " Por de trás da pálpebras", no entanto não participou na formação do livro. Uma escritora inovadora, aspirante a poeta e muito concentrada em sempre dar o seu melhor, buscando uma oportunidade de provar o valor de suas palavras.
Revisão: Tatiana Iegoroff
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