Carlos Junio

6 de abr de 20214 min

901

ATENÇÃO!

Este texto não é apropriado para menores de 14 anos nem para pessoas sensíveis a violência.

Foto de Karolina Grabowska (Pexels)

“É sangue?”

“Não sei, pode ser que seja, como pode ser ketchup. Como posso saber?”

“É melhor que seja ketchup mesmo. Dá uma bicada e me diz o que acha que é.”

“Ora, não sou eu quem quero saber, pois faça você!”

“Você não disse que é ketchup?! Qual é o problema em você experimentar?”

“Não afirmei, supus. Bica você e descobre pra gente o que é!”

“Não sou galinha para ter bico, você que é um galo velho idiota!”

“Quer dizer que sou um galo velho?!”

Estenderam a noite se ofendendo mutualmente, além de apelidos e xingamentos, explodiram com lembranças, um apontando as falhas pretéritas do outro. Não se entendiam. No fundo, tudo o que queriam era adivinhar a origem do carmesim encorpado grudado no carpete marrom.

Em acordo, perceberam que não chegariam a um ponto comum e que talvez dormir fosse o melhor remédio para trazer apaziguamento. O problema é que junto com o sono vieram motivos para roubarem-lhes a tranquilidade. Ainda que lutassem, o sangue ou ketchup trazia-lhes suspeitas terríveis e os pensamentos lhes fustigavam.

Lenta, veio a madrugada, finalmente. Não segurariam mais as pesadas pálpebras, pensaram. De repente:

“Que porra é essa?!”

“Porra? Qual porra? A sua porra?” - Sem abrir os olhos, inebriada daquela madorra saudável das 3h, quando nada pode ser mais salutar que uma cama e um corpo jogado sobre uma cama, respondia e perguntava sem saber sobre o que, sobre quem ou com quem.

“Abre a merda do olho... No teto, por cima da sua cabeça”, apontou o homem, travestido de macho-alfa, com um indicador, com o outro - da outra mão - cutucava as costelas da sonâmbula.

Era um filete que percorria por quase todo o quarto, uma marcha sincronizada cujo gotejamento ecoava no esplendor do silêncio, o que despertou o frágil sono do galo velho.

Agora, menos sonolenta, ela sentou-se e ficou observando a cena: ele desfilava de samba-canção e descamisado, os braços abertos gesticulando e a cabeça encurvada apontando o nariz adunco para o chão davam-lhe, de fato, o aspecto/espectro de galo velho. Ria solitária da cena, até que o pavor a trouxe de volta. Ela percebeu que era da luminária que escorria aquele vermelho viscoso. Parecia vivo, não era como o que jazia no carpete. Ao final do trajeto, as gotas se enchiam e gordas desciam com extremo ímpeto.

O casal se olhava e juntos olhavam aos céus (que era o teto). Novamente, se olhavam, cada mente perversa às suas perversas ideias:

Esse imbecil não precisava me acordar para ver isso, bastava esperar até amanhecer. Agora, fica aí com essa cara de bobo, esperando que eu faça algo, já que que ele é um bunda mole e medroso, se esperneia por causa de barata [...]. Deve ser algum passarinho dentro da luminária, pode ter entrado durante o dia e foi torrado pelo calor da lâmpada; ou um morcego com os dentes pingando sangue de alguma vítima; quem sabe seja simplesmente tinta escorrendo do 901. Dane-se, esse infeliz que se vire”, pensava a mulher apertando os dentes, a ponto de faze-los ranger. Ainda que quisesse esquecer tudo aquilo por pirraça, no fundo, sabia que era tarde demais, nunca mais pregaria os olhos.

A resposta era telepática: “eu trabalho o dia todo, coloco comida no prato dessa ingrata [...], custava ela se oferecer para subir e ver que bicho engalfinhou no lustre? Ela é uma covarde. Agora, fica aí, com essa cara de boba, fingindo sonolência. Não vou subir, não vou subir e pronto!”, a força de uma obstinação muda.

“E aí, o que vai fazer?”

“Eu?”

“Sim, você, porra!”

“Você não é homem? Pois honre suas calças, galo velho!”

“Cadê a feminista numa hora dessas? Quer se esconder atrás do maridinho? Hein, hein...”

Simultaneamente, ambos tomaram em suas mãos o objeto mais pesado que tinham à vista. Ela, uma anilha de cinco quilos que usava em seus abdominais matutinos; ele, uma relíquia, o ferro de passar roupas a brasa que servia de peso para manter a porta aberta.

Golpes certeiros, de cima para baixo. Caíram-se!

Ela com os olhos abertos, bem abertos e voltados para o teto. Foram seus olhos que passaram a receber as gostas vermelhas.

...

O sangue empoçado logo penetrou o assoalho, rompeu o concreto fino daquela construção funcional e começou a pingar no apartamento de baixo. Havia vazamentos por todo o quarto, as gotas se formavam com astúcia.

“Amor, tem alguma coisa estranha acontecendo no meio do nosso quarto. É um líquido turvo, meio avermelhado e é viscoso. Vem rápido, por favor!”

“Você pode lidar com isso sem me incomodar, não pode, não?”, gritou do outro cômodo demonstrando impaciência.

A outra, que, até então, mantinha-se tranquila, foi contaminada pela a ira:

“Pelo menos uma vez, dá pra você largar de ser um moleque mimado e fazer sua obrigação?!” - berrou a mulher em seu último suspiro de paciência.

Enfurecidos, ela pegou a tesoura de ponta fina e afiada, enquanto ele veio da cozinha com a faca ainda pegajosa do melão recém cortado. Desafiaram-se, olho-por-olho. Epicamente, pularam um sobre o outro. A tesoura cravou-se no peito magricela dele; a faca entrou pela lateral rechonchuda dela e, prontamente, rasgou tudo que era órgão num raio de 35 centímetros.

...

José, assustado e gestualmente caricato, bateu com as duas mãos simultaneamente no rosto, em seguida, chamou pelo companheiro:

“Ricardo, vem ver isso aqui no teto!”


Sobre o Autor:

Carlos Jr. é formado em jornalismo, mestre em Estudos de Linguagens. Casado, pai de um rapazinho de 4 anos e policial militar há 17 anos. Tem dois livros de conto publicados e um

romance aguardando publicação.


Revisão: Pamela G. Augusto

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