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901


ATENÇÃO!

Este texto não é apropriado para menores de 14 anos nem para pessoas sensíveis a violência.

Interrogação desenhada com sangue
Foto de Karolina Grabowska (Pexels)

“É sangue?”

“Não sei, pode ser que seja, como pode ser ketchup. Como posso saber?”

“É melhor que seja ketchup mesmo. Dá uma bicada e me diz o que acha que é.”

“Ora, não sou eu quem quero saber, pois faça você!”

“Você não disse que é ketchup?! Qual é o problema em você experimentar?”

“Não afirmei, supus. Bica você e descobre pra gente o que é!”

“Não sou galinha para ter bico, você que é um galo velho idiota!”

“Quer dizer que sou um galo velho?!”

Estenderam a noite se ofendendo mutualmente, além de apelidos e xingamentos, explodiram com lembranças, um apontando as falhas pretéritas do outro. Não se entendiam. No fundo, tudo o que queriam era adivinhar a origem do carmesim encorpado grudado no carpete marrom.

Em acordo, perceberam que não chegariam a um ponto comum e que talvez dormir fosse o melhor remédio para trazer apaziguamento. O problema é que junto com o sono vieram motivos para roubarem-lhes a tranquilidade. Ainda que lutassem, o sangue ou ketchup trazia-lhes suspeitas terríveis e os pensamentos lhes fustigavam.

Lenta, veio a madrugada, finalmente. Não segurariam mais as pesadas pálpebras, pensaram. De repente:

“Que porra é essa?!”

“Porra? Qual porra? A sua porra?” - Sem abrir os olhos, inebriada daquela madorra saudável das 3h, quando nada pode ser mais salutar que uma cama e um corpo jogado sobre uma cama, respondia e perguntava sem saber sobre o que, sobre quem ou com quem.

“Abre a merda do olho... No teto, por cima da sua cabeça”, apontou o homem, travestido de macho-alfa, com um indicador, com o outro - da outra mão - cutucava as costelas da sonâmbula.

Era um filete que percorria por quase todo o quarto, uma marcha sincronizada cujo gotejamento ecoava no esplendor do silêncio, o que despertou o frágil sono do galo velho.

Agora, menos sonolenta, ela sentou-se e ficou observando a cena: ele desfilava de samba-canção e descamisado, os braços abertos gesticulando e a cabeça encurvada apontando o nariz adunco para o chão davam-lhe, de fato, o aspecto/espectro de galo velho. Ria solitária da cena, até que o pavor a trouxe de volta. Ela percebeu que era da luminária que escorria aquele vermelho viscoso. Parecia vivo, não era como o que jazia no carpete. Ao final do trajeto, as gotas se enchiam e gordas desciam com extremo ímpeto.

O casal se olhava e juntos olhavam aos céus (que era o teto). Novamente, se olhavam, cada mente perversa às suas perversas ideias:

Esse imbecil não precisava me acordar para ver isso, bastava esperar até amanhecer. Agora, fica aí com essa cara de bobo, esperando que eu faça algo, já que que ele é um bunda mole e medroso, se esperneia por causa de barata [...]. Deve ser algum passarinho dentro da luminária, pode ter entrado durante o dia e foi torrado pelo calor da lâmpada; ou um morcego com os dentes pingando sangue de alguma vítima; quem sabe seja simplesmente tinta escorrendo do 901. Dane-se, esse infeliz que se vire”, pensava a mulher apertando os dentes, a ponto de faze-los ranger. Ainda que quisesse esquecer tudo aquilo por pirraça, no fundo, sabia que era tarde demais, nunca mais pregaria os olhos.

A resposta era telepática: “eu trabalho o dia todo, coloco comida no prato dessa ingrata [...], custava ela se oferecer para subir e ver que bicho engalfinhou no lustre? Ela é uma covarde. Agora, fica aí, com essa cara de boba, fingindo sonolência. Não vou subir, não vou subir e pronto!”, a força de uma obstinação muda.

“E aí, o que vai fazer?”

“Eu?”

“Sim, você, porra!”

“Você não é homem? Pois honre suas calças, galo velho!”

“Cadê a feminista numa hora dessas? Quer se esconder atrás do maridinho? Hein, hein...”

Simultaneamente, ambos tomaram em suas mãos o objeto mais pesado que tinham à vista. Ela, uma anilha de cinco quilos que usava em seus abdominais matutinos; ele, uma relíquia, o ferro de passar roupas a brasa que servia de peso para manter a porta aberta.

Golpes certeiros, de cima para baixo. Caíram-se!

Ela com os olhos abertos, bem abertos e voltados para o teto. Foram seus olhos que passaram a receber as gostas vermelhas.

...

O sangue empoçado logo penetrou o assoalho, rompeu o concreto fino daquela construção funcional e começou a pingar no apartamento de baixo. Havia vazamentos por todo o quarto, as gotas se formavam com astúcia.

“Amor, tem alguma coisa estranha acontecendo no meio do nosso quarto. É um líquido turvo, meio avermelhado e é viscoso. Vem rápido, por favor!”

“Você pode lidar com isso sem me incomodar, não pode, não?”, gritou do outro cômodo demonstrando impaciência.

A outra, que, até então, mantinha-se tranquila, foi contaminada pela a ira:

“Pelo menos uma vez, dá pra você largar de ser um moleque mimado e fazer sua obrigação?!” - berrou a mulher em seu último suspiro de paciência.

Enfurecidos, ela pegou a tesoura de ponta fina e afiada, enquanto ele veio da cozinha com a faca ainda pegajosa do melão recém cortado. Desafiaram-se, olho-por-olho. Epicamente, pularam um sobre o outro. A tesoura cravou-se no peito magricela dele; a faca entrou pela lateral rechonchuda dela e, prontamente, rasgou tudo que era órgão num raio de 35 centímetros.

...

José, assustado e gestualmente caricato, bateu com as duas mãos simultaneamente no rosto, em seguida, chamou pelo companheiro:

“Ricardo, vem ver isso aqui no teto!”

 

Sobre o Autor:

Carlos Jr. é formado em jornalismo, mestre em Estudos de Linguagens. Casado, pai de um rapazinho de 4 anos e policial militar há 17 anos. Tem dois livros de conto publicados e um

romance aguardando publicação.

 

Revisão: Pamela G. Augusto

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