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A Palavra

Atualizado: 2 de set. de 2020

“O senhor tem um minuto para ouvir a palavra?”

Assim de supetão lhe chegou a rogatória aos ouvidos. Sentiu até uma sensação interessante. Uma certa familiaridade, e até alguma satisfação. Parado à espera do coletivo, resolveu se virar pra ver melhor quem falava consigo, e, de repente, se foi todo seu ânimo. É que a familiaridade se esvaiu por completo, quando ele virou e observou seu interlocutor.

Diante dele, um ostensivo topete, mantido por uma forte argamassa de gel fulgurante. Não se lembrava de ter visto tão vultoso topete desde as fases mais áureas de Elvis Presley. Óculos escuros gigantes, armação branca cravejada com estrelas trabalhadas no poder do glitter colorido, que mais pareciam nunca ter pertencido ao fulano em questão.

A camiseta mais colorida do que o arco-íris, presa dentro de uma calça apertada que não permitia a passagem nem do menor fluxo de ar. Parecia ter sido, mesmo, colocada a vácuo no sujeito. Poderia uma pessoa se vestir de forma tão pouco discreta e não ser preso por desrespeito à visão alheia? Ou não ser simplesmente interditado pela prefeitura, por produzir poluição visual nas ruas da cidade? Como trilha sonora desse quadro pitoresco, uma voz arrastada, melosa. Um timbre manhoso, pertencente apenas aos filhos declarados de Sodoma e Gomorra!

Parado, em pé, apoiando o peso em uma das pernas, meio que pendido pro lado, cabeça viradinha e um sorriso desconfortável, segurando um livro pequeno e brilhoso, me repetiu a pergunta: “O senhor aceita ouvir a palavra?”

Que diabo de palavra era essa que aquela criatura, exatamente aquela teria para lhe apresentar? Indagou a si mesmo. Qual não foi seu espanto quando foi informado que tal figura pertencia a Igreja Mundial do Divino Amor Colorido e que, segundo sua crença, estava impelido a sair pelo mundo pregando e divulgando a Palavra para salvar da danação eterna os ignorantes do Grande. Estendeu a mão e entregou um santinho com mensagens e uma foto de um arco-íris.

Naquela altura dos acontecimentos, começou a se perguntar se havia sido levado para uma realidade alternativa. Olhou pro sujeito, pro santinho, pra mensagem e sentiu aos poucos a boca abrindo como se fosse balbuciar algo. Nada saiu dela. Não sabia ao certo o quanto de incredulidade seu olhar havia passado naquele momento, mas percebeu que sua inércia acabou incentivando a figura, que continuou em seu discurso: “O senhor sabe que, está escrito no Livro Sagrado que o amor é maior que tudo? Que para o Grande, a manifestação desse amor é o que há?”

Não podia ser! Pensou. Ele estava usando o nome do Grande para justificar as safadezas dele e de sua turminha de perdidos? Onde já se viu isso? Um absurdo! No entanto, mesmo indignado, não conseguia proferir uma única palavra, o camarada não dava espaço, e sem crer no que ouvia, começou a sentir uma transformação no seu semblante. Da estupefação passou rapidamente a contrariedade. Tentou se afastar, não dar atenção, mas ele continuava sua pregação agitando a mão como se fosse um abanador, sem se importar com o tamanho do incomodo. “O Grande nos diz que devemos nos redimir antes do fim. Segundo o Livro Sagrado, aquele que não se redimir, terá contas a acertar. Portanto, amem. Amem muito e sem amarras. U-hu!!!”

Agora sua raiva e desprezo estavam mais que claros. Quem ele pensava que era pra se auto-afirmar dono da verdade? Ele sabia das intenções do Grande? Justamente esse grupinho colorido se considerava escolhido? Muita palhaçada desse pavão. Uma ousadia! Era só raciocinar direito pra concluir. As pessoas de bem jamais se rebaixariam a acreditar numa baboseira dessas. Um ignorante! Um completo ignorante.

Saiu andando na esperança de se afastar, mas ele continuou cuspindo sua estupidez nos seus ouvidos: “Não é intenção nossa condenar ninguém. Mas cada um sabe o que faz, né? O Grande ta vendo e vai separar os que amam dos demais. Diz a Palavra que todos devem respeitá-Lo e a Sua verdade. Nós amamos a todos, mas quem não seguir as palavras do Grande vai se arrepender.”

A essa altura do campeonato a vontade de bater naquela criatura se tornou tão forte, que achou por bem, voltar pra casa. Rodou nos calcanhares e saiu sem proferir uma única palavra ao fiel membro da Igreja Mundial do Amor Divino Colorido. Caminhou contrariado, como se houvesse perdido o dia. Se algum amigo o acompanhasse naquela hora, seria o depositário de toda sua indignação. Não acreditava ser possível uma pessoa defender tamanho absurdo. Só os libertinos se salvariam. Quem não aceitasse esse absurdo estava condenado. Um livro que ninguém sabe de onde saiu ditando regras. Onde já se viu? E aquela aparência? Já imaginou todos com aquele cabelinho e aquela roupinha? Aquela falinha irritante? Não! Tudo estava perdido, mesmo.

Abriu a porta de casa, entrou. Toda a família já tinha seguido pros afazeres do dia. Samuel e Davi, os filhos mais novos, tinham aula no Americano Batista. Sara, a esposa, participava de um grupo de oração numa comunidade perto de casa. Moisés, filho mais velho, devia ter ido pro curso de Teologia. Resolveu sentar na poltrona e esperar mais uma meia hora pra sair novamente. Repousou o paletó no sofá. Apanhou a Bíblia e começou a ler o livro dos Levíticos. Precisava abrir a igreja às 10 horas para o culto de descarrego e tinha que reler a pregação. Afinal, Deus é mais.


Juliene Brasileiro e Pablo Gomes

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