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Fantasia Feminista: análise da personagem Éowyn, da obra “O Senhor do Anéis”

Atualizado: 26 de mai. de 2021


A mulher esteve em posição inferior ao homem desde tempos imemoriais, a ponto de uma cultura se criar em torno dos estereótipos femininos e masculinos, devido à política sexual advinda do patriarcado. No século X, por exemplo, existe a possibilidade de a estrutura da Escandinávia pré-viking ter sido baseada na Inglaterra Anglo-Saxônica e na antiga Irlanda, cujos reinos eram governados por reis, duques ou líderes similares. Dessa maneira, a crença que se tinha nos séculos XIX e XX de uma sociedade igualitária é refutada, uma vez que a sociedade era hierárquica (BRINK; PRICE, 2008: 40-47).

A composição de O Senhor dos Anéis deu-se dentro de um período de mais de 16 anos marcado por profundas mudanças econômicas e sociais, de 1936 (início da escrita da obra) até a publicação do primeiro volume em 1954. Entre essas mudanças, aquelas relativas às questões de gênero chamam a atenção por apresentar um padrão cíclico, com o desaparecimento e retorno de diferentes modelos ditados por diversas instâncias de poder hegemônico e pelos interesses delas. Para Fredrick e McBride (2001, p.161), no caso de O Senhor dos Anéis, há pouca oportunidade para as mulheres se identificarem com personagens femininas, reforçando a ideia de que apenas os homens experimentam aventuras. Portanto, se meninos e meninas são “ensinados” na vida real que aventuras são mais apropriadas aos homens do que às mulheres, então os meninos, ao lerem Tolkien, vão ter reafirmado a ideia de que eles também algum dia vão experimentar tais aventuras, enquanto que as meninas vão experimentar a aventura imaginariamente, mas concluirão que as experiências permanecerão sendo exclusivamente imaginárias para elas. Para Tolkien, porém, segundo Fredrick e McBride (2001, p.30), as mulheres deveriam, ao mesmo tempo, além de aceitar o papel de dona de casa e esposa, manter-se próximas de um ideal abstrato de pureza e perfeição. Essa concepção provavelmente teve sua origem na perda precoce de sua mãe e certamente foi intensificada pela devoção do escritor à Virgem Maria. Sua própria história de amor, pelo distanciamento e a idealização da bem-amada no período em que estiveram separados antes do casamento, também contribuiu para que a imagem que Tolkien tinha das mulheres estivesse mais próxima de uma distante e idealizada abstração do que da realidade – por mais limitado que fosse o papel da mulher nela – do mundo em que vivia.

As questões de gênero dentro da literatura já têm um histórico, através dos trabalhos de crítica feminista. No que se refere a O Senhor dos Anéis, uma das mais frequentes observações feitas a seu respeito é justamente a de que existem poucas personagens femininas nele – os heróis não encontram mulheres por onde passam – salve raras exceções – famílias sobrevivem sem uma figura matriarcal e mesmo espécies inteiras (anões, ents) não apresentam nenhuma menção de suas fêmeas na história. Não me interessa discutir a razão de esse número ser tão pouco expressivo ou mesmo ausente, mas sim como as mulheres que se fazem presentes – uma delas em especial – aparecem na obra. No livro de Tolkien existem três personagens femininas que receberam maior destaque. Duas são elfos e uma, apenas, é humana. Ela é a personagem feminina mais desenvolvida pelo autor, a que mais falas possui e que aparece em mais cenas do que qualquer outra mulher em todo o livro. Seu nome é Éowyn, a Senhora de Rohan, princesa herdeira do reino governado por seu tio. Em um livro no qual as mulheres existem, mas encontram-se à margem da ação e das aventuras e a elas não é dada uma atenção mais significativa do que algumas linhas em poucas páginas, ela literalmente pega em armas e vai para a guerra, tendo um papel fundamental e decisivo no combate contra as forças do mal que é o centro da história. Éowyn faz sua primeira aparição em O Senhor dos Anéis: As Duas Torres, tanto no livro quanto no filme.

A partir de sua descrição como sendo uma mulher possuidora de um belo rosto, longos cabelos cor de rio de ouro, alta, esbelta e “forte como aço, uma filha de reis” (TOLKIEN 2000a: 115), o leitor descobre que ela é sobrinha do rei de Rohan e tinha como maior desejo se tornar guerreira, como se faz notável no trecho “quando ouviu sobre a batalha no Abismo de Helm, sobre a grande matança dos inimigos, e sobre o ataque de Théoden e todos os seus cavaleiros, os olhos dela brilharam” (TOLKIEN 2000b: 43). A ideia de o destino de Éowyn já estar pré-determinado por alguém que não ela mesma, subordinado a um homem do mesmo modo que as mulheres nórdicas, fica clara ao analisar a descrição feita da personagem com ênfase em sua beleza, força e pertencimento à nobreza. O fato de ser mulher e filha de reis afastava Éowyn cada vez mais de seu desejo em favor de cuidar do reino e do povo, e por mais que também fosse descrita como sendo tão forte quanto aço há a ideia de submissão, pois Éowyn não conseguia se desprender das imposições que lhe eram feitas por conta de seu sexo e classe social e, consequentemente, se sentia presa.

Independentemente das opressões sofridas, Éowyn também encontrou sua maneira de resistir ao que lhe era imposto quando se disfarçou de guerreiro, sob o pseudônimo de Dernhelm, e partiu para o campo de batalha. O interessante do disfarce de Éowyn, é que, na narrativa de Tolkien, o leitor só descobre que ela é o cavaleiro disfarçado quando ela se vê de frente com o Senhor dos Nazgûl, que matou Théoden, e não poderia ser morto por nenhum homem e, então, luta com ele, o matando no final. A atitude de Éowyn ao se disfarçar de Dernhelm para lutar foi essencial na restauração da paz na Terra-Média, posto que ela matou o Senhor dos Nazgûl justamente por ser mulher, pois ele não poderia ser morto por nenhum homem mortal. Dessa maneira, por mais que tenha saído ferida, a personagem provou ser mais necessária em campo de batalha do que qualquer outro, além de provar resistência e força para enfrentar as imposições que lhe eram feitas, mesmo que após se recuperar do ferimento desta batalha tenha decidido abandonar o sonho de ser uma guerreira para ajudar a Terra-Média sendo cuidadora e espalhando amor àqueles que necessitavam, além de se apaixonar por Faramir durante sua estadia nas Casas de Cura e acabar se casando com ele.

Assim, para finalizar, mesmo que o autor tenha dado voz às mulheres através de Éowyn, seus valores e não os da personagem venceram ao final: a heroína vai para a guerra – disfarçada de homem – e tem um papel fundamental e decisivo na derrota das forças do mal, mas acaba por casar-se, com outro príncipe, Faramir, assumindo assim o papel que se esperava da mulher. Venceu a imagem idealizada criada por Tolkien, venceu o mundo masculino onde ele vivia, venceu uma reação de valores que transcendeu a personagem e que foi, em última instância, do autor. Os mitos, disfarçados, atravessaram o campo da batalha de Pelennor e sobreviveram, caminhando e vivendo entre nós até os dias de hoje. Apesar de acreditar que Éowyn representa o potencial de rebelião contra o sistema de valores masculinos que caracteriza tanto o mundo e a época em que Tolkien viveu quanto o que ele criou, e, ciente de que este breve texto não esgota as possibilidades de interpretação para o discurso que foi analisado, espero que ele possibilite uma leitura crítica de O Senhor dos Anéis no que se refere à desmistificação do feminino e das relações de poder entre os sexos e possa, pelo menos potencialmente, levar a uma mudança social que é, afinal, o fim maior dos estudos do discurso.


Referências Bibliográficas:

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2.ed. Tradução de Sergio Millet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1949.


BRINK, Stefan.; PRICE, Neil. The Viking World. Nova York: Routledge, 2008.


FREDRICK, Candice; McBRIDE, Sam. Women among the Inklings: Gender, C.S. Lewis, J.R.R. Tolkien, and Charles Williams. Westport: Greenwood Press, 2001.


TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis: As Duas Torres. Tradução Lenita M. R. Esteves, Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 2000a.


TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei. Tradução Lenita M. R. Esteves, Almiro Pisetta. São Paulo: Martins Fontes, 2000b.

 

Sobre a Autora:

Aline Amorim é Recifense, aquariana, mãe e feminista. Graduada em Gastronomia, Pós-graduanda em História Social e Contemporânea, Pesquisadora da temática Relações de Gênero e o Mundo do Trabalho; Alimentação e Feminismo. Amante das Letras, é colunista da Literatura Errante trazendo a temática Mulheres e Literatura sob uma perspectiva Feminista.


 

Revisão: Carol Vieira



 

#DiaDoOrgulhoNerd (25 de maio)

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