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A Aldeia dos Magos Escondidos - Livro II - Capítulo I

Atualizado: 8 de mar. de 2021

Interlúdio

Adiante, o Guerreiro viu o sol nascer; sentiu nas pernas o leve bater dos grãos da areia levada pelo vento que cobria o passado de quem ali andou, e não permitia ver o caminho de seu futuro. Amaldiçoou sua sorte.

Não podia prever quanto tempo levaria para alcançar o grupo de mercenários e não poderia rastreá-los se atrasasse mais. Era impossível no deserto, onde, aos poucos, a areia a tudo encobria, encontrar um rastro, caso demorasse além do necessário. Apenas teria que sentir o caminho proposto por sua intuição e continuar em direção ao Templo. Ainda não compreendia o que havia acontecido e aquelas criaturas com os mercenários eram uma novidade nos ataques ocorridos na última semana: Animais em estado de putrefação. Os animais usados eram como cavalos, mas a pele morta caindo de seus corpos dava-lhes aspectos demoníacos.

Todos sabiam que a Lua Nova era perigosa para o acampamento e que as estacas eram fracas, não aguentariam um ataque agressivo como aquele, mas ninguém teve tempo de preparar as defesas necessárias. Agora a única coisa que interessava era encontrar os mercenários e resgatar a Mulher.

 

Livro II

A Batalha de Khaza-an Lori

Capítulo I – Em volta da fogueira


Como era comum em noites claras de Lua Cheia e tempo bom, crianças e jovens se reuniam em torno de fogueiras para ouvir histórias dos mais velhos. Algumas eram contadas por velhos guerreiros, outras por um ancião qualquer que teria testemunhado algum fato importante. Mas todas essas histórias tratavam do mesmo assunto: a história do povoado ou do reino.

Em pequenas aldeias como essa, onde um homem estrangeiro acabara de chegar, não havia templo ou biblioteca, que no fundo eram quase a mesma coisa. Os Sacerdotes controlavam as bibliotecas. Conhecimento era perigoso. Possuí-lo poderia criar um levante. Então, a função do Culto era apaziguar os ânimos. Criar um ambiente letárgico onde as pessoas apenas cumprissem suas funções sem questionar muito.

Mas, como sempre, o universo trás soluções inesperadas para tudo. Bons ventos trouxeram um homem diferente. Possuidor de um olhar distinto que poderia ser de um exilado, um fugitivo ou um andarilho com boas intenções ou más intenções, quem poderia adivinhar?

Esse homem viajava sozinho e sem muita bagagem. Apenas sentou-se, pediu água, comida e foi servido. E, após saciar sua fome e sede, perguntou se poderia contar uma história em troca do favor que lhe fizeram.

Como a resposta foi positiva, começou a falar. Não sem antes demonstrar um grande sentimento de agradecimento pela acolhida positiva. Agradeceu a todos, olhando nos olhos de cada um. Disse seu nome: Faldang Tir. E começou:

─ Boa noite, amigos. ─ falou e, sentando-se em um lugar próximo ao fogo, sorrindo de maneira amistosa e cativante, continuou:

─ Sempre comecei minhas conversas assim, mesmo se não fosse íntimo de todos. Minha função era transmitir nossa cultura, no mais amplo sentido da palavra. Já fui chamado de contador de histórias, de mentiroso, de criador de fábulas, mas apenas me considerava um bardo de nossa era. Talvez no passado usasse um alaúde, ou uma flauta. Entretanto, em nosso tempo isso não é mais provável... Sinceramente, é impossível. Nessa Era em que vivemos usar a música para entreter, não seria bem visto pelos sacerdotes de nosso Culto. Assim muito da definição e função de um bardo se perdia. E a partir disso, me torno apenas um repetidor de casos reais. Cantar poemas, mitos e lendas não são permitidos. Devo me ater ao fato e ao real. E dedicar-me inteiramente ao real me incomoda. Primeiro por não saber se o que é permitido falar ao redor da fogueira é verdade e principalmente por ser bisneto do maior arqueiro de todos os tempos.

Nesse ponto da fala do bardo, alguns se olharam e em suas feições estava estampada a questão: “Será?”.

Indiferente à dúvida de alguns, continuou.

─ Descrever apenas os fatos de nossa história não motiva mais os mais jovens. Viver apenas cumprindo suas funções e sendo orientados pelos sacerdotes pode garantir uma vida comum. Mas uma vida sem ambições pode rapidamente perder a cor. Para que lutar se a Fé me dá tudo e completa minha alma?

Fez uma pausa para atentar os olhares ressabiados e continuou:

─ Sempre temi que esse estado de torpor fizesse mal ao nosso povo. Mas nunca em nenhuma de minhas divagações mais loucas poderia prever ou imaginar o que estava por vir. – abriu um meio sorriso e se retratou:

─ Perdoem a divagação... Mas devanear é prazeroso para mim.

─ Vou agora contar - como bardo que sou - a história que passa de geração em geração por milhares de anos até nós. E como meu bisavô fez parte sem querer de tudo isso. Os porquês e os ensejos de todas as guerras e tréguas e tempos de paz e alianças. Falarei de todo o tempo em que Homens juraram e quebraram seus juramentos. Tempos de traições, de amores perdidos, de poemas frios e pessimistas onde as músicas cantavam as derrotas e não as vitórias.

─ Porém, me permitam uma explicação: Declamarei, antes de tudo, um trecho da carta que o rei Vingzar, o último rei da Quarta Era, recebeu antes de morrer envenenado por Tulshar Dorun:


[...] As histórias de Deuses que criaram os Homens já não são mais necessárias. As perguntas serão respondidas pelo sacerdote-feiticeiro do Culto a Lutrien Hal. A comunicação com os mortos e a invocação de demônios por dissidentes do Culto já está demonstrando aos habitantes do Império que há vida além da matéria. Apenas poucos escolhidos serão iniciados nas artes negras do Culto.

Muito antes de o Culto envenenar e iludir o Império havia um Credo. O Credo Diras Mgir. Essa Doutrina religiosa regia os Homens do Império. No princípio dos tempos só havia o Credo. Ele era baseado nos Livros de Marek Lar. Um antigo profeta e mestre religioso que pregava sua fé em tempos onde registros não existiam. Não existiam até que um Rei o chamou e adotou sua doutrina. Esse Rei uniu os clãs e criou o que todos chamam de Primeira Era do Império. Nesse tempo os livros foram escritos e espalhados pelo reino. A adoção dessa doutrina fortaleceu o povo e o fez acalmar o espírito. A partir disso as angústias acabaram e a vida passou a ter sentido. Muitos diziam que Marek Lar era um enviado, um anjo, um ser celestial. Mas não acredito em anjos. Ele era um Homem com um olhar acima da vaidade e muito prático. Uma breve olhada em seus livros e, você veria a verdade. Pena serem proibidos. Pena não poder falar-lhe nada. Mas meu amigo veja por você mesmo. Abra os olhos ao que acontece agora. Deixe-me contar a verdade. Antes que seja tarde...


─ Nesse ponto, meus queridos amigos. Foi onde tudo começou.

─ Senhor... As guerras começaram após a carta que o Rei recebeu? ─ Um garoto perguntou. Faldang olhou com um sorriso maroto e continuou.

─ Não, meu pequeno... Já havia muitas intrigas e desavenças no Reino. A carta foi apenas um aviso que chegou tarde demais.

─ Mas, senhor. ─ Falou outro. – As Guerras são lendas. Nunca aconteceram. São para entreter os mais novos. O rei Vingzar aceitou a nova religião.

─ Não, meu filho... Não é bem assim. ─ Respirou fundo com os olhos firmes no garoto que o interrompeu e disse: ─ Os registros foram escritos pelos sacerdotes-feiticeiros do Culto. Você acredita neles? Você não acha que poderiam ser feitos ao bel-prazer do Rei que governa o Reino? Tudo que vivemos é uma ilusão criada pelo Culto para nos manter fiéis e manipulados. Assim eles se sustentam no poder e continuam a dominar o Reino tendo o Rei ou todos os Reis de todas as dinastias e em qualquer era como fantoches.

Essas palavras fomentaram sussurros desconfiados e um homem, mais velho que os demais, falou com um grave sentimento de medo e intimidação.

─ Senhor, as suas palavras ferem nosso código de conduta. Não questionamos o Culto. É passível de punições, de torturas até a morte.

─ Sendo assim, vou voltar a contar a história do Rei Envenenado. – Faldang intimamente lamentou a cegueira deles e começou outra narração, que se chamava:

O Rei Envenenado

Faldang começou a falar olhando as estrelas.

─ O Último Rei da Quarta Era havia se tornado um opulento senhor. Tão rico em ouro quanto o céu era de estrelas. Embora o número de estrelas tenha fim, não era assim que o Rei pensava sobre sua fortuna. Seu nome era Vingzar e pertencia a uma família que há nove gerações estava no poder. Não tinha inimigo, pois seu pai fortificou a Cidade de uma maneira que era impossível transpor as barreiras construídas e seu território era tão grande e tão fértil que um cerco de anos seria inútil.

─ Então como em toda calmaria e sossego, veio o ócio em sua pior vertente. E veio acompanhado de vaidade e preguiça. Essa acomodação custaria caro para o Rei. Mas Vingzar não era homem de se preocupar com nada. Apenas queria seus súditos fiéis e bem felizes.

─ Apesar de toda a felicidade e segurança do Reino, existiam pessoas contrarias a essa situação e tramavam contra o soberano senhor. Alguns estavam infiltrados na Corte e seduziam os nobres mais próximos ao Rei. A palavra tem efeito devastador no coração de alguns, tanto para o bem como para o mal, e esses aliciadores usavam esse artifício para trazer mais simpatizantes para sua causa. Abordavam pessoas com vontade fraca e pouco amor próprio e mostrando através de artes negras do Culto, que elas poderiam ser melhores, que seriam amadas. E assim, a Guilda dos Magos Guardiões de Lutrien Hal foi crescendo no seio da Corte e minando qualquer tentativa de contra-ataque.

Alguns começaram a se sentir desconfortáveis com a narrativa do bardo e pensavam em interrompê-lo caso o rumo da história seguisse para o fim onde já desconfiavam que ele fosse usar.

─ Não demorou muito para que um cozinheiro envenenasse o jantar do Rei. Um veneno produzido pelos Magos da Guilda. Tão bem feito para seu propósito que era indistinguível. Não tinha odor, gosto, cor. Parecia água em um frasco transparente. Mas seu efeito era devastador.

─ Após sua morte, e realizadas várias cerimônias de funeral, o Reino seguiu acreditando que o Rei seria substituído por seu irmão mais novo. Nesse ínterim, um Mago, sorrateiramente matou toda a família real. Filhos, irmãos, primos, tios e todos que pudessem ter qualquer ligação de sangue com o Rei foram mortos ou presos.

─ Houve medo e desespero... E o Mal se alocou no centro do poder na figura de Tulshar Dorun.

Essa afirmação foi demais para um homem que estava mais a margem dos que ouviam atentamente a história de Faldang. Ele se levantou, foi até próximo do bardo e cochichou algo em seus ouvidos que o fez parar de contar a história na hora.

Muito graciosamente Faldang se levantou, agradeceu a refeição novamente, a atenção dirigida a suas palavras e se retirou.

─ Vocês que escutaram essas palavras do contador de histórias sabem que a verdade é outra. Ele contou desse modo para nos entreter e nos levar para outro caminho. Lembrem-se que levantar falsos fatos históricos é mal visto pelo Culto. Não queiram desagradar os Magos Guardiões. Punições severas aguardam a quem os desagrada. – Falou o homem que ouvia a contação de histórias, assim que o bardo se afastou.

Ao se distanciar das pessoas atônitas com a intromissão do caçador do povoado, Faldang, aproximou-se de uma taverna e ao entrar no lugar, logo localizou com o olhar, um guerreiro com a espada descansando sobre seu colo. Sentou-se próximo e tenta ouvir o que o guerreiro conversava com um homem que possuía uma enorme cicatriz na face direita.

Guerreiros são obsoletos nesses tempos. Entretanto, qualquer um pode ser uma fonte de informações sobre o que houve antes da Guerra Do Expurgo. E esse era bem velho. Parecia um ser fora de seu tempo. Agora era o tempo dos magos. A maneira de travar uma guerra há muitos anos era diferente. E Faldang sabia bem disso.

Aguçou os ouvidos.

A conversa tratava de um ataque acontecido há três dias em um lugarejo próximo. Todos os habitantes dizimados em instantes por bestas demoníacas. Ao final da batalha os mortos se levantaram e uniram-se ao exército que marchava em direção ao Deserto Do Leste.

Faldang não pode ouvir mais. Um garoto de no máximo dezesseis anos o interrogou.

─ Por que conta mentiras? ─ E falou com um tom de medo e ao mesmo tempo curiosidade que o bardo não viu como não responder. O contador de histórias achou que seria melhor deixar a investigação para depois.

─ Não são mentiras. São provocações. Consegui o que queria.

Faldang olha fixamente para o menino, mas com um grau de ternura igual ao de um pai que ensina um filho.

─ O quê? Deixar o caçador assustado? ─ O garoto passou de medo e dúvida para sarcasmo em um átimo.

─ Não. Provoquei em você alguma coisa. Fiz nascer em você algum sentimento que o trouxe até aqui. Qual seu nome? ─ O mago demonstrava em sua face, a sinceridade que expôs em palavras.

─ Rash... Rashnar Letak. Mas não me respondeu. Provocar para quê? ─ O garoto era insistente.

─ Provocar para que alguém como você, faça as perguntas certas e deixe de acreditar em tudo que lhe é dito. Você tem o que preciso. E tendo esse sobrenome acho que vai ser tão grande quanto os homens de sua família. Você quer saber mais? Mas acho que é novo demais para saber a verdade. Rapaz um cálice de vinho, por favor. ─ Disse ao atendente da taverna, que de esguelho olhava desconfiado os dois recém-chegados ao estabelecimento.

─ O que sabe sobre minha família? E não acho que sou tão novo assim. ─ Rash era tão difícil de convencer quanto a uma pedra. Mas Faldang sabia o que fazer para despertar no garoto a motivação necessária para segui-lo.

─ O que sei sobre sua família e sobre seu nome? Um dia todos saberão. Mas, se ficar aqui, você não descobrirá nada.

─ Quais são suas intenções? Vi que carrega duas espadas curtas sob a túnica. O senhor não é apenas um contador de histórias. Por que parou aqui e quase arrumou uma briga com o Culto?

─ Você faz perguntas demais. Faça as certas e lhe responderei.

─ Para onde vai? Posso acompanhá-lo?

Faldang se esforçou para disfarçar o sorriso. Bebeu de uma vez o cálice que estava sobre o balcão da taverna há tempos. Pagou com uma moeda de prata que compraria a garrafa toda, virou-se para Rash e disse:

─ Venha, carregue pouca bagagem e despeça-se de sua mãe. No caminho direi para onde iremos.

─ Ela morreu. Não tenho muito. Moro só, no sótão de uma oficina de um marceneiro. Ele nem vai saber que fui embora.

Rash era órfão de pai desde muito pequeno e a mãe foi vítima do Mal Vermelho, uma doença hemorrágica que fazia o acometido verter sangue pelos poros até morrer. Um vendedor de carroças que obrigava o menino a cortar árvores que seriam usadas na construção das rodas e eixos, e que como pagamento, lhe dava comida e abrigo, era sua única ligação ao vilarejo e último empregador. Fazia algumas semanas que trabalhava ali. Insatisfeito, pulava de trabalho em trabalho. Já estava querendo deixar o lugar. Algo o impelia.

─ Estou livre para ir, não se preocupe. ─ Rash estava tão decidido a partir, que a leve consternação de Faldang se dissipou em instantes.

─ Então vamos. ─ O bardo virou-se em direção a porta e seguiu. Sem antes passar próximo ao guerreiro e ouvir o homem com cicatriz dizer em sussurros:

─ O Mago sobreviveu. Tornou-se um andarilho e há boatos de que está preparando sua volta.

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