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A Aldeia Dos Magos Escondidos - Livro 2 - Cap. XIX

Atualizado: 19 de abr. de 2021


XIX

– Silas. Vamos para a forja. Temos que preparar essa espada. A Pedra Santa será um artefato valioso. Levarei você até lá e vou mandar preparar um bom café da manhã.

No caminho para a forja do templo, Benevides, mais refeito da notícia que acabara de ouvir, perguntou:

– Quem são os outros magos escondidos? A Aldeia do Morro agora é a Aldeia dos Magos Escondidos?

– Vila do Morro. Vila. Aldeia é outra coisa. – corrigiu sorrindo, entendendo a piada.

– Como se a diferença de tamanho fosse grande. – Benevides continuava insistindo na brincadeira.

– Sim. A “Al-dei-a” é quase um abrigo – disse separando as sílabas com um olhar, tentando imitar ferocidade, direcionado ao abade –; lá tem mais alguns moradores iniciados nas artes. – Silas sabendo que iria perder a disputa, resolveu responder a pergunta e assumir a derrota.

– Um porto seguro, então?

– Era até o forasteiro chegar... – Apesar de ter perdoado Antônio, Silas ainda era consumido por certa mágoa em função de a notícia ruim ter sido anunciada pelo Guardião.

– Ali está! – disse Benevides, apontando a forja. Silas notou que a fumaça da fornalha subia pela chaminé. – A forja do templo, espera que esteja equipada à sua altura.

– Ótimo! – Silas, que carregava a espada ainda enrolada e amarrada, não suportava a ansiedade em fazer o pomo com a lasca da Pedra Santa.

– Não quer mesmo fazer o desjejum antes? Forjar é um trabalho pesado.

– Eu dormi razoavelmente bem essa noite. O cansaço da viagem e o jantar foram um bom sonífero, claro que as taças de vinho fizeram sua parte. Estou bem. Não costumo comer pela manhã. O trabalho irá abrir meu apetite.

– Se prefere assim, está bem. Eu não posso dizer o mesmo. A noite foi entre lamparinas e livros. Depois que fizer o pomo e comermos, quero lhe mostrar algumas coisas que encontrei e que podem lhe ajudar. – Silas aquiesceu.

Dito isso, Benevides deixou Silas seguir sozinho até a forja e foi para a cozinha, faminto.

Chegando à porta da forja, o mago notou que havia um garoto em vestes de monge, certamente um noviço, atiçando as chamas com um fole de couro.

– O abade Benevides pediu que preparasse tudo para o senhor. – disse o garoto com um tom de alegria vistoso.

– Obrigado. Não era preciso acordar mais cedo para isso. O Abade é ansioso. – Silas ficara encantado com a disposição das ferramentas utilizadas na forja. Parecia uma cozinha de tão limpa. – Você limpou dessa forma ou nunca usam a forja?

– Usamos pouco, mais para reparar ferramentas e, caso necessário, fazer um machado, um martelo, facas para cozinha, pesca, caça. Nunca fizemos armas. Esses tempos são de paz, como diz o Abade. – Havia uma grande reverência quando o garoto se referia ao mestre do monastério.

“Espero que essa paz dure por mais tempo.” Pensou Silas.

– Qual seu nome? Sou Silas. – disse estendendo a mão e abrindo um sorriso.

– Antenor. Como meu pai. – o garoto falou do pai como se isso pudesse suscitar alguma lembrança no ferreiro.

– Belo nome. Se quiser ir para outros afazeres ou descansar, esteja à vontade. Antenor das Astúrias, o monge das adagas? Você é filho dele? Não sabia que ele tinha filhos.

A Ordem não exigia celibato, embora ele fosse implícito.

– Depois quero que me conte sobre ele.

– Hoje estarei à sua disposição aqui na forja ou onde mais precisar para fazer o trabalho que necessita. O Abade pediu para tentar aprender o máximo que puder.

– Então você será o ferreiro do monastério? Sabia que essa função já foi minha?

– Se aprender bem, talvez seja. Já sei fazer alguns reparos, soldas em ferramentas. Mas há segredos no aço. O Abade disse que posso aprender com o senhor. Será uma grande honra se um dia eu for ferreiro.

– Para isso acontecer precisa deixar de me chamar de “Senhor”. Não serei seu senhor. A relação entre um mestre e aprendiz é feita de outra forma. Esqueça as formalidades.

Diante do radiante sorriso de Antenor, Silas acomodou a espada embrulhada e começou a separar as ferramentas e o material necessário para a tarefa. Seria um trabalho rápido. Ferramentas dispostas, fornalha acesa. Uma ampulheta das vinte e quatro que compõe o dia.

Silas separou uma faixa de aço damasco que encontrou na prateleira onde guardavam os insumos. Esquentou-a até a temperatura necessária e o martelou-a com o malho de três quilos até a faixa esticar e ser possível de dobrá-la. Após algumas dobras, ele apertou a extremidade direita na morsa e martelou até fazer uma dobra em noventa graus. Repetiu a operação no lado esquerdo. A peça era como um tubo quadrado cortado ao meio. Com uma talhadeira afiadíssima e um martelete, cortou pequenos “v” - parecidos com dentes de tubarão – no terço central da peça e retirou as sobras, deixar apenas os dentes em “v”.

– Assim posso esquentar novamente o aço damasco, dobrar os dentes na ponta da bigorna e a lasca de cristal ficará presa dentro, segura pelos dentes em “v”. Os dentes irão prender a pedra e limitar a dobra, dessa forma consigo deixar o pomo redondo. Só há um problema, terei que alongar a empunhadura da espada um pouco – disse Silas tendo por testemunha os olhos curiosos de Antenor. O garoto possuía várias perguntas, mas a maestria do trabalho do experiente ferreiro o deixava com medo de perguntar e assim perder um processo que não conhecia. Simplesmente, Antenor, estava fascinado com as técnicas de Silas.

– Antenor – chamou o ferreiro, retornando a peça à fornalha para aquecer o aço mais um pouco –, Talvez você ache que seria mais fácil cortar a peça sem dobrar as extremidades. Era só riscar e cortar com a talhadeira e depois com uma turquesa dobrar os dentes. Já fiz desse jeito e não deu certo. Os dentes ficam desiguais e na hora de dobrar não se encaixam com perfeição. Sei que falam que podemos lixar ou martelar e tal, em alguns casos as duas coisas, mas não gosto de ficar arrumando imperfeições. Se der para fazer de primeira, eu prefiro.

Antenor arregalava os olhos. Tantos processos que nunca viu de perto, só em anotações de livros sobre ferramentas e possíveis opções para criar essa ou aquela peça. Ver alguém fazendo não tinha preço.

– Nunca imaginei que era assim que faziam pomos com pedras. A pedra é redonda?

– Perfeitamente lapidada. Parece feita em uma forma. Assim o encaixe não terá folgas e a pedra não vai girar em seu eixo...

–... As pontas dos dentes irão prendê-la. Mas como vai dobrar? – Antenor terminou a frase de Silas, fazendo o ferreiro sorrir de satisfação.

– Você viu que risquei a peça para talhar os dentes e tirar as sobras? Agora vou fazer um talhe nos vãos dos dentes de um lado ao outro. O sulco em formato de “v” por causa do fio da talhadeira tira a resistência da peça. Desse modo consigo dobrar com mais facilidade.

O ferreiro retira a pedra do pano em que estava embrulhada. Confere as medidas e continuou a moldar o pomo.

– Tenho que terminar a dobra com a pedra dentro. O aço vai esfriar e espero que ele se molde à forma da pedra. Aí que não teremos folga alguma.

E assim, Silas, trabalhou. Esquentava a peça, martelava-a com o martelete, prendia-a a morsa, corria para a fornalha. Próximo do fim do processo encaixou a pedra e com o aço incandescente perto do ponto de fusão, mergulhou-o em uma vasilha de óleo, o pomo incendiou ao ser retirado do mergulho assim que encontrou o oxigênio presente no ar. Como olhar de satisfação, Silas, admirou a peça e terminou o trabalho.

– Agora espero esfriar um pouco e enquanto isso planejar como prender o pomo à espiga da lâmina. Já que temos tempo, fale de seu pai. Ele ainda é um grande espadachim? Apesar do nome ligado às adagas, não conheço outro que se compare a ele.

– Meu pai treina os noviços da Ordem das Espadas Longas. Minha mãe é mestre do arco na Ordem dos Arcos de Ébano e ótima amazona. Eu queria ser como eles, mas meu pai preferiu que eu viesse para a Ordem dos Eruditos. Aqui eles acham que aqui eu teria um futuro melhor.

– Toda Ordem é guerreira. Apesar de não ver ninguém treinando aqui. Com as preocupações que tenho esqueci-me de perguntar qual o motivo de não haver treinamento algum. – Silas, à época que esteve no mosteiro, sempre acordava com o chamamento matinal. Hora em que os noviços treinavam magia e encantamentos. Treinos com armas eram no fim da tarde e após as intermináveis leituras de tomos empoeirados na biblioteca.

– Dom Benevides mudou os horários. Estamos treinando nas catacumbas. Ouvi falar que ele não quer que vejam nosso treinamento, mas com as brumas... – Silas não via sentido em esconder o treinamento. A Ordem mantinha os conhecimentos, entretanto conservar essa tradição era permitido somente aos membros da Ordem apenas para estudos. Esses termos faziam parte do acordo, era uma convenção da Trégua. Silas, curioso, perguntou:

– Recebem visitas? Alguém que não seja costumeiro. Ele não mudaria sem motivo. Faz tempo que ele mudou o lugar e horários?

– Vinte dias no máximo.

– Entendi – desconfiado, Silas, muda de assunto –, mas você tem que se orgulhar, nem todos possuem um pai espadachim e uma mãe arqueira. É uma grande honra. – Silas mudava a direção do assunto. Não queria criar ideias erradas na cabeça do garoto.

– Eu sei. Me orgulho muito disso, mas gosto muito de animais, de cavalos, principalmente. Escolhi ser ferreiro, a principio, para fazer ferraduras e ficar mais próximo deles. Não contava que iria gostar tanto de criar ferramentas. – Antenor, enquanto falava, deixava um largo sorriso se formar ao citar o amor pelos animais e o interesse pela forja.

– Eu entendo bem esse interesse. Minha história foi diferente, meu pai era ferreiro. Por que seus pais não lhe enviaram para uma Ordem de Cavalaria.

– Me disseram que já havia muitos guerreiros na família. Preferiram que eu fosse um erudito, embora toda Ordem treine os noviços para a guerra como você comentou.

Toda Ordem atendia aos mesmos propósitos da Fé: Glorificação, Adoração, Contemplação, Defesa, Estudo, Estabelecer o Reino de Deus no Reino dos Homens. A escolha das armas era simbólica. Mas com o tempo algumas Ordens se especializaram nesta ou naquela. Isso ocorreu ao longo de décadas. A maneira era tão natural que não se notava a tendência de escolhas de cada Ordem. Havia lendas. Tal a do Arco Negro de Anraro. Um monge virtuoso no arco e flecha. Acertava alvos distantes, maçãs atiradas para o alto, anéis em alvos, mesmo montado em cavalos que disparavam pelos campos. Era um talento que Anraro dizia herdar dos céus. Após seu falecimento, a Ordem Dos Arcos Negros fazia questão de manter sua memória viva na qualidade do treinamento de seus noviços. Cada Ordem especialista era dona de uma história de algum virtuoso que viveu dentro de suas muralhas. Também havia histórias de Ordens que faziam cervejas maravilhosas, queijos especiais, vinhos incomparáveis. Não teríamos pergaminhos suficientes para contar as infindáveis histórias acumuladas nas centenas de anos da Ordem. No Templo das Sombras, a Erudição surgiu porque ele foi o lugar escolhido para proteger o conhecimento e guardar os Arquivos Secretos da Fé.

– Devemos sempre nos anteceder às ações do Mal e qualquer preparo é necessário. Não gostaria de entrar em uma batalha só com livros. – Silas durante a conversa não deixava de trabalhar na peça e mesmo atento à fala de Antenor, planejava a melhor maneira de prender o pomo à empunhadura da espada que continuava embrulhada e amarrada.

O ferreiro decidiu soldar as peças. Encontrou um cadinho que poderia conter a quantidade necessária de aço para cobrir possíveis fendas e disse:

– Antenor. Derreta aço damasco nesse cadinho. – enquanto isso Benevides se aproximou e disse:

– Esqueça o café já é hora do almoço.

Silas sorriu ao ver o amigo.

– Já estamos terminando. Só falta uma solda.

Antenor derretia o aço que coube dentro do cadinho indicado por Silas. Esse colocou a parte do pomo que seria soldada à espiga na fornalha de carvão, deixando a Pedra Santa fora da ação do fogo, e virou-se para pegar a espada. Ao desembrulha-la, notou que Benevides arregalou os olhos e deixou a boca aberta procurando palavras para definir o assombro. Quando o abade se refez do susto, disse:

– Uma espada de aço arcano!

Silas, sem esconder o constrangimento, respondeu:

– Sim...

– E você escondeu a emanação de poder que ela contém como? – Antes de Silas responder, Benevides virou os olhos na direção do pano que a embrulhava. – Pele de cordeiro. Cipó de Casca Santa. Como não notei. Itens que disfarçam magia. Ah, meu amigo. Quantas surpresas eu ainda terei, vindas de sua presença? – O tom das palavras do abade era um misto de admiração, espanto e pavor. Silas, notando a variedade de emoções, respondeu:

– Espero que não apareça mais nenhuma. Não tinha comentado da espada? – fazendo-se de desentendido, Silas, perguntou com uma sobrancelha erguida.

– Sobre sua feitura sim, mas não disse que ela era inteira de aço arcano. Imaginei que o aço mágico era parte dela, não ela toda. Você tem noção do que isso representa?

Silas silenciou. Não sabia a resposta.

Virou-se para a fornalha, pegou o pomo aquecido, deixou-o em uma posição que o calor mantinha a temperatura, mas sem aumentá-la e colocou a espiga da espada para aquecer ao lado.

Assustou-se quando rapidamente a espiga ficou com a cor que indicava quase o ponto de fusão. Tão rápido quanto pode, juntou as peças, pediu para que Antenor derrubasse um pouco do damasco derretido sobre as peças e foi para a bigorna. Quando posicionou e deu o primeiro golpe com o martelete, mais uma vez ouviu o clangor do aço arcano rompendo o silêncio do Vale das Brumas Eternas.

– Senhor! – Antenor gritou. – Dom Benevides! Me ajude!

Antenor estava de olhos arregalados, apavorado.

Suas mãos estavam em chamas.

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