Capítulo XX
As profecias do Templo das Sombras
– Não se desespere. – Benevides segurou as mãos de Antenor e levantou-as próximas do rosto do garoto – Veja! As chamas não consomem suas mãos. Você que as produz. Você é um Guardião. Um Guardião da Chama de Erethir. Controle-se. E não tenha medo. – notando que o garoto se acalmava, Benevides, virou-se para Silas. – O que está acontecendo? – O abade estava de olhos arregalados, fixos na espada incandescente.
A solda do pomo não era possível de ser notada. O aço arcano fundiu-se ao aço damasco. A espada assumiu a coloração do aço quando esse atinge o ponto de fusão, e dela emanaram chamas azuis, como as que estavam nas mãos de Antenor, mas não queimavam Silas. Nem queimariam qualquer guardião da chama.
– Não sabia que era um guardião da chama. – Benevides não escondia o assombro. – Nunca vi manifestação assim. E aquele estrondo? A realidade se rompeu? Por isso o despertar em Antenor?
– Sim. Sou um guardião. O estrondo foi um rasgo no tecido da realidade e Antenor despertou. Mas ainda não fez a pergunta principal.
– Qual?
– Por que a espada incendiou-se? Há perigo próximo? Eu não invoquei as chamas.
– Não sei. Nunca li sobre isso. Espere. – Benevides pronunciou algumas orações de contenção, chamando espíritos para domar o poder que insistia em se manifestar em Antenor, enquanto Silas passada a mão pelo fio da espada com a mesma intenção, mas criando a contenção a partir de seus próprios poderes. Silas acreditava que tais poderes estavam adormecidos em seu espírito. Espantou-se quando notou que suas habilidades estavam em potência máxima. Ainda assimilando os acontecimentos, olhou para Benevides e Antenor – ainda assustadíssimo – e disse:
– Garoto! – iniciou uma ponte mental para acalmar o desespero do noviço:
“As chamas não vão lhe fazer mal.”
“Não se assuste com minha voz em minha mente. Os poderes divinos se manifestam de várias maneiras.”.
Diante do alívio emocional demonstrado por Antenor, Silas continuou a fusão mental e compartilhou seus conhecimentos com o noviço. Algumas explicações eram necessárias e aquele era o melhor momento. Após alguns instantes, devido ao enorme esforço físico para receber e processar tantas informações, o cérebro do garoto não aguentou e ele desmaiou. O ferreiro rapidamente amparou-o antes da queda e com a ajuda do Abade deitou-o, colocou o pano que embrulhava a espada sob sua nuca e perguntou a Benevides:
– Enquanto ele se recupera, me responda, por favor. Por que o treinamento é feito nas catacumbas? Antenor comentou comigo que houve essa mudança.
– Obrigado por não vasculhar minha mente em busca de respostas. – Benevides também era dotado de poderes mentais, entre os que possuíam tal poder, havia um pacto de privacidade – Foi preciso. Mas não é nada além de precaução – Benevides respondeu e mudou o cenho, assumindo a gravidade que motivara a mudança. – Temos recebido algumas visitas que não quero que saibam sobre o que tenho feito aqui.
– Quem?
– Mercenários. Pessoas que sabem que mantemos vivas as artes divinas. Eles querem aprender magia. Então, para todos os efeitos não ensinamos mais. Se algum visitante indesejado aparecer não vai encontrar nada. Retirei da vista de todos esses curiosos, qualquer coisa que possa indicar que ainda treinamos os noviços. São eles que trazem os relatos. Estão próximos da vilania que cerca o Reino. Ouvem os sussurros e carregam só o que há de ruim. Não posso recusar-me a abrigar qualquer viajante que passe por aqui e para não correr o risco de que algum desses seja um bandido e, pior ainda, seja um incipiente sensitivo com intenções maléficas, eu preferi realizar os treinos às escondidas. Precauções de um velho.
– Isso tem a ver com o que falamos ontem? Sobre as pessoas banalizarem a História e duvidarem de que realmente houve uma guerra entre as três raças?
– Sim. Eu sinto que o afastamento temporal desses acontecimentos deu-lhes uma aura de ficção, de histórias de bardos ao redor das fogueiras. Os fatos se tornaram lendas e as lendas se tornaram mitos e a verdade perdeu-se no leito do rio do tempo. Muitos acham que somos velhos magos que estudam o oculto e ou que nossa arte possa ser aprendida. Não quero correr riscos. Só isso.
– Minha imortalidade é uma prova de tudo. Minha maldição... – Silas lamentou.
– Não. Não é. – bruscamente Benevides interrompeu Silas. – Não se deixe levar pelas suas próprias fraquezas. Você é a prova viva de que tudo aconteceu. Parece que não lhe ensinei nada. Você tem em si capacidades que anulam essa visão errada que as pessoas têm hoje. Aceite que é capaz de fazer o que lhe compete. Você é um privilegiado. Não um maldito. O Criador lhe honrou com algo inimaginável. Será um daqueles que reavivarão a Fé.
Silas não respondeu. Guardou fundo as suas tristezas. Recolheu-se em seu interior. Benevides o conhecia bem o suficiente para repreendê-lo daquela maneira. Não era hora de Silas lamentar sua imortalidade.
– O que sugere? – Silas entregou o problema a Benevides.
– Primeiro vamos esperar o garoto acordar. Alertá-lo para que não fale com ninguém sobre o que aconteceu e averiguar se o despertar não afetou mais ninguém aqui no Templo.
– Está bem. Faremos isso.
– Mas há algo mais. Depois de nossa conversa de ontem, me lembrei de que há muito tempo havia lido um texto antigo que tratava de assuntos históricos e, claro, fui até a biblioteca procurá-lo. É apenas uma anotação, um apontamento em um pergaminho. Mas quem sabe... A providência divina sempre encontra seus meios de se revelar.
– O que encontrou? – Silas poderia varrer no tempo do bater de asas de uma borboleta a memória de Benevides e descobrir toda a informação necessária, mas gostava das sensações antigas das boas surpresas. Preferiu ouvir atento. Benevides continuou:
– O conteúdo desse pergaminho diz que entre os livros proibidos arquivados havia um grande livro de revelações. Onde o autor descrevia eventos que estavam no porvir dos homens daquela época. Ele relata acontecimentos catastróficos, chuvas de fogo, aparições demoníacas, fome, pestes, guerra e morte. Eu não conseguia me desvencilhar da ideia de que tais revelações eram profecias sobre a Guerra das Três Raças. As anotações diziam que apesar desse livro profético, as pessoas não acreditavam que realmente era um aviso divino. A Fé também passava por uma crise, os sacerdotes daquele tempo eram acusados de usarem o medo como meio de conduzir os fiéis. E eis que aconteceu o que o livro previa. O mundo viu o primeiro despertar e a guerra quase dizimou a humanidade. Mas o Criador não estava adormecido como acreditavam e seus planos para a humanidade se concretizaram. Você é testemunha disso. Você fará a diferença. Houve um tempo que concordei que sua imortalidade era um penoso fardo, mas agora enxergo de outro modo.
– Não entendo...
– Silas. O mundo perdeu-se novamente. Centenas de gerações se passaram e a Fé esfriou novamente. O rasgo na cortina da realidade cicatrizou e agora querem novamente abrir a ferida, mas os homens não evoluíram nesse período de trégua. A chama da Fé se extinguiu e o coração do homem endureceu. Se o romper da cortina que cobre o plano espiritual for feito de forma violenta como seus relatos sobre Bento descrevem; se Bento concluir seus planos... – havia um tom sombrio na voz de Benevides – A humanidade será escrava do Mal.
Silas não disse nada. Baixou o olhar e tocou Antenor que com dificuldade abriu os olhos e disse:
– Eu sonhei?
– Não. Melhor seria se tudo fosse um sonho. Mas não, não sonhou.
– O senhor entrou em minha mente. Tudo que me mostrou é verdade?
– Sim. – Silas respondeu ao garoto com ternura e paciência.
Benevides se manifestou:
– Você está bem? Sente dores ou desconforto?
– Não. Estou bem, senhor. Mas cansado. Como se estivesse trabalhando carregando pedras.
– O cansaço é consequência da ponte mental. Ela sempre exauriu minhas forças quando tinha sua idade. – explicou Silas.
Benevides levantou-se – o tempo em que Antenor ficou em repouso, ele não saiu de seu lado – e falou com convicção:
– Pelo tempo que estamos aqui. Se não apareceu ninguém desesperado é porque apenas Antenor foi afetado pelo efeito do aço arcano.
Benevides resignou-se ao próprio azar quando ao sair da forja, acompanhado por Antenor e Silas, viu quatro monges caminhando rápidos em sua direção.
– Senhor! – disse o que estava mais próximo – O que houve? Ouvimos um grande estrondo e vários noviços foram acometidos de manifestações de poder. Oito pelo que notamos. Mas já estão contidos. Não sabemos o que provocou.
Outro se aproximou e disse:
– Isso é um novo despertar, senhor? Não há relatos de manifestações assim desde a Guerra. Eles nem eram sensitivos avançados. Muitos eram apenas teóricos.
Benevides leu a situação como algo que poderia se transformar em boatos perigosos e considerou que deveria fazer algo para que a semente de conversas mal-intencionadas não germinasse.
– Não há nada de anormal. Devo primeiro dizer que nada disso é fora da normalidade. Esse acontecimento ocorreu graças ao aço.
– Benevides... – Silas disse com visível apreensão e desconforto, tentando impedir que Benevides continuasse a falar, mas foi impedido pelo abade apenas com um olhar. Silas compreendeu e calou-se.
“Não diga nada.”
– Silas veio pedir auxílio. Ele encontrou uma lasca de aço arcano. – Notando que a última palavra proferida causou o efeito esperado nos monges e mais ainda em Silas, Benevides continuou:
– Como sabem Silas é um ferreiro e já pertenceu aos nossos membros. Ele encontrou essa lasca e pediu para que eu o ajudasse a destruí-la. Já não há mais perigo. Conseguimos aniquilar a lasca. Mas a consequência foi um pequeno rompimento do tecido. Isso causou essas manifestações. Teremos trabalho para conter quem despertou. – Benevides olhou para Silas e disse:
– Os noviços precisarão de mais tempo dedicado ao treinamento, mas tudo ficará bem.
“Ficará tudo bem.”
Houve um silêncio. A impressão era de que os monges analisavam as implicações desse ato. Um deles, chamado Anselmo, foi o primeiro a questionar o abade:
– Confio em suas palavras e ações. Se o que diz é o que aconteceu. Agora nos resta corrigir as consequências e voltar à normalidade.
– Obrigado, irmão. Vamos tratar dos noviços e, por favor, levem Antenor à enfermaria. Ele também despertou.
“Depois irei vê-lo, não diga nada a ninguém sobre o que aconteceu na forja.”
Os monges se retiraram, pareciam satisfeitos com as explicações do abade. Ninguém iria discordar de suas palavras. Ninguém ali além de Silas era capaz de ler mentes. Aproveitando-se desse dom, o ferreiro emitira mensagens durante a fala de Benevides para Antenor que, a cada frase ecoada em sua mente, simplesmente olhava para o ferreiro e levemente balançava a cabeça, concordando. A ponte mental criada há poucos momentos criou um laço de confiança entre eles. Antenor sentiu a bondade e a qualidade de caráter que o ferreiro possuía. Era melhor atender aos pedidos e esperar os acontecimentos futuros.
– Parece que os convenci – disse Benevides para Silas assim que os monges e Antenor estavam longe.
– Enquanto falava, eu senti que cada um ficou aliviado ao ouvir suas palavras. Não só pelo conteúdo, mas também pela confiança e respeito que tem por você, meu amigo. Na verdade, acredito que somente eu fiquei assustado com seu discurso. Leio mentes, mas não consigo saber o que vai falar até que fale. E parabéns por conceber uma fantasia – para não chamar de mentira – quase que ao mesmo tempo de pronunciar. Sua agilidade mental é impressionante.
– Obrigado. Mas foi fácil. Leio muito. Acho que isso desperta a criatividade. Sua sorte é a emanação do aço não ter aqui pessoas que a sintam, além de mim, claro.
– Realmente foi por pouco.
– Vamos para a biblioteca, teremos muito trabalho. Há ainda muito a ser descoberto nos pergaminhos.
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