Crenças e Profecias
Cap. XXI
Antes de dirigirem-se à biblioteca; Benevides foi até a enfermaria avaliar o estado dos noviços despertos, e, Silas o acompanhou para verificar se pensamentos conspiratórios ou conjecturas mal elaboradas estavam acontecendo.
O que encontraram foi assombro e dúvida; monges correndo de um lado para outro e nove noviços em repouso, contidos para evitar manifestações mágicas.
No corredor da enfermaria as conversas eram feitas em voz baixa, com olhos assustados percorrendo tudo, procurando detalhes, pistas, evidências. Para a sorte de Silas e Benevides, ninguém sequer imaginava o que realmente aconteceu.
Silas caminhava entre todos com a espada pendurada às costas, embrulhada da mesma maneira que estava ao chegar ao Templo no dia anterior. A única diferença era o pano roxo que encobria o pomo. Silas conjurou um encantamento para que o pano bento escondesse as emanações da Pedra Santa. Assim ela não chamaria a atenção dos nove despertos.
Benevides falava com o monge, chefe da enfermaria, quando Silas se aproximou e mentalmente disse que estava tudo sob o controle. A história da lasca de aço arcano havia funcionado. As mentes de todos fervilhavam com pensamentos de como um ferreiro de uma vila esquecida pudesse ter a sorte ou azar de encontrar um fragmento de material tão raro. Silas até se divertiu com a situação. Se uma lasca provocara tantos pensamentos fantasiosos, caso descobrissem que ele carregava uma espada inteira de aço arcano devastaria a mente dos monges e noviços. Um pequeno suspiro de diversão frente a todos os problemas que insistiam em lhe perseguir.
– Anselmo, ajude o irmão Pedro em tudo que ele precisar. Chame os mais antigos para reforçarem as orações de interseção e cuide para que cada noviço desperto tenha alguém em vigília permanente. Faça turnos de quatro horas. Ninguém deve permitir que as contenções esmoreçam. Até que os noviços tenham total controle de seus poderes eles não deverão ficar sozinhos.
– Cuidarei disso imediatamente.
– Obrigado, irmão.
Benevides voltou-se para Silas que aguardava pouco atrás e disse:
– Vamos para a biblioteca. Pedirei para nos mandarem alguma coisa para comer. Nosso almoço será adiado. – O abade não demonstrava, mas Silas sentia que havia uma crescente animação correndo nas veias do velho amigo. Era um momento de ansiedade e inquietação, mas a adrenalina parecia fazer bem a Benevides, o rejuvenescia.
– Seria bom. A fome é algo que ainda posso vencer facilmente. – Silas acreditava que a pressa em pesquisar os pergaminhos e tomos da biblioteca não seria motivo de desconfiança nos outros membros da Ordem. A pesquisa teria como tema o despertar dos noviços e elucubrações relacionadas aos boatos políticos envolvendo Bento II e seus asseclas nem seriam cogitadas. Esse assunto, Silas, preferia manter em segredo o máximo possível. Não queria que sua jornada fosse propagada aos ventos e chegasse a Harion.
Benevides no caminho à biblioteca chamou um noviço que caminhava pelo corredor paralelo ao pátio e pediu que ele solicitasse um lanche para duas pessoas.
– Estarei na biblioteca com nosso convidado. Por favor, peça para prepararem rápido.
Ao entrarem na biblioteca, Silas se surpreendeu com o número muito maior de obras: tomos, pergaminhos, quadros com tapeçarias bordadas com poesias ou trechos de obras religiosas. Papiros enrolados e amarrados com linhas feitas de lã de carneiro, e rolos de pergaminhos dentro de canudos de couro. Um paraíso para pesquisadores, embora Silas considerasse um pequeno tormento procurar algo naquela infinidade de material literário.
– Benevides. Uma coisa posso lhe garantir. Em todos esses séculos aprendi que o ser humano contou a mesma história o tempo todo. Mudam os tempos, épocas, costumes, modas, mas as histórias são sempre as mesmas. O que me demonstrou que o espírito do homem não evoluiu nem um pouco. É uma eterna reconstrução sobre ruínas. Vem o novo e destrói o velho, depois revivem o velho, mudam o verniz, a roupa, o modo de dizer, mas sempre se fala da mesma coisa. – O ferreiro olhava admirado para as estantes, mas sabia que muitos conteúdos, provavelmente, tratavam de assuntos que ele viveu.
– Por isso preferiu se isolar? O tédio da vida eterna? – Benevides pergunta curioso.
– Um pouco, mas morar afastado tem mais a ver com minha capacidade de leitura mental. Ultimamente não quero mais blindar minha mente. Isso tem me causado um grande cansaço físico e psicológico. Aí prefiro morar onde só há pássaros, animais, árvores, etc. O silêncio assumiu outro valor em minha vida.
– Entendo. Eu não tenho a sua potência nesse quesito. Preciso parar para ouvir as mentes. De certa forma é uma vantagem. O que em mim é aprendido em você é nato.
– Você não imagina o quanto sua condição é vantajosa – havia inveja no tom da voz do ferreiro.
– Mas realmente as histórias do Homem são as mesmas? – Benevides acreditava que alma humana era parecida em muitos aspectos, mas a opinião de Silas tinha mais substância, o ferreiro viveu por séculos.
– Me diga o que pode mudar: Filosofia, política, religião, costumes? São esses aspectos que nos regem. Livros discutem o autoritarismo de reis ou de imperadores; a moral, os valores e sistemas éticos, mas nunca me responderam ou resolveram as questões apresentadas. A ficção faz uso dos mesmos artifícios. Bem e mal, amor e ódio. O mundo parece que está em uma gangorra ideológica. Ora todos correm pra um lado, começa a baixar a tábua e todos correm para o outro. Filósofos discutem os valores do Homem. Historiadores contam as vitórias dos poderosos – claro! Pescoços estão em jogo –, ficcionistas imitam a realidade, mas se a ficção for muito diferente do real a degustação literária parece não funcionar. Algumas vezes imaginei que somos apenas peças em um grande salão de festas. Alguns são pratos, outros são cortinas, outros são cadeiras, mesas, etc. Haverá um banquete solene, suntuoso e não podemos mudar a função de cada peça. – Silas nem percebia que a quantidade de palavras proferidas estava maior que costumeiramente preferia usar.
– Sendo assim, você acredita em profecias? Predestinação? – o abade insistia em cutucar o amigo.
– Não. Na verdade acho que as crenças nesses conceitos dão conforto para as pessoas. Assim, elas não terão que pensar diferente, aceitar o diferente ou utilizar o novo. A mente das pessoas, ao que me parece, pode aprisionar-se com muita facilidade às ideias que lhes confortam. Eu me libertei disso graças à imortalidade. Mas não vejo como libertar as pessoas. Veja a nossa História. Houve a Guerra das Três Raças. A Humanidade foi apresentada aos filhos de Orco e aos Alvos, os filhos de Eretor, após o fim da Era dos Homens, Céu, Inferno e Terra dividiam o mesmo plano. A Verdade libertou as mentes? Nem em dois mil anos a Humanidade mudou. Voltaram ao sono, ao torpor, aos clichês de suas vidas anteriores. Não houve a paz sonhada e cantada em canções ou poesias compostas por videntes. O Mal não foi acorrentado para sempre. Os profetas falharam. As profecias não se cumpriram.
– Ou a Humanidade falhou? Não será a vez de a Humanidade assumir seu lugar nesse conflito e lutar pela Verdade? – Benevides perguntava com imensa curiosidade, queria entender aonde chegaria o pensamento de Silas.
– Eu já pensei sobre isso. Se nossos corpos materiais são apenas veículos para nossa alma e após a passagem para o plano espiritual, irmos para a luz ou escuridão tem a ver com nossa vida pregressa, por que com a revelação da Verdade isso não acabou? Talvez, realmente, o Criador tenha adormecido durante a Trégua como acreditam alguns. – Silas parecia procurar uma resposta, mas Benevides respondeu com outra pergunta:
– Ou Ele está esperando uma atitude da Humanidade. Pode ser um motivo, quem sabe? – O abade mantinha o questionamento, não parecia satisfeito com a tese do ferreiro.
– Ou ele está em outro nível no plano espiritual e essa é somente a primeira etapa da viagem. – Silas encerrou o assunto.
– Para mim, fazer o certo é o que importa. Não mergulhei tão fundo nessas filosofias. Desculpe o interrogatório, mas são tantos anos para colocarmos em dia. – Benevides demonstrava alegria e ansiedade. Silas retomou o foco da situação:
– Vamos conversar trabalhando. Vá pegar o pergaminho que me falou. Estou curioso.
– Só um minuto. Além desse, vou procurar obras relacionadas ao livro das Revelações.
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