XXII
Interrupções
Benevides voltou com uma pilha de manuscritos. Silas torceu o cenho. Teriam trabalho. Um trabalho saboroso, entretanto.
– Você esteve ocupado.
– Enquanto você buscava os pergaminhos, pensei em quais poderes manifestaram nos garotos. Antenor é um manipulador da chama. Isso já cria uma expectativa sobre as possibilidades.
– Por que pensa assim? A manifestação não é aleatória?
– Sim. Mas pensando no nível de poder que Antenor demonstrou e levando em consideração à chama desperta na espada, acho que teremos despertos com altas habilidades: necromantes, videntes, conjuradores.
O abade silenciou, ponderando a fala do amigo imortal. Instantes depois, disse:
– Nas escrituras isso é citado. Nascidos com sensibilidade e nascidos com o Dom. Os que despertam com sensibilidade aprendem a manipulação do poder, mas com limites. E os que possuem o Dom, não têm limites. Nunca pensei que isso fosse real. Sempre acreditei que o estudo e o preparo eram suficientes.
– E são. Mas não para o que vamos enfrentar...
A frase de Silas não precisava ser completada. Benevides lera as histórias, conhecia a gravidade da Guerra das Três Raças. Apesar da discussão anterior sobre profecias, presciência e predestinação, era difícil não enxergar que os acontecimentos obedeciam a certo padrão. Como se um poder maior conduzisse a vida de todos.
Ironicamente, Benevides trazia um velho pergaminho que continha um ensaio intitulado: “Onisciência versus Livre-Arbítrio”, escrito por um antigo irmão da Ordem que era afeito à teológicas e filosóficas. Silas olhou o título e virou-se com olhos de lince para Benevides:
– Não me venha com esse olhar. Coloquei de propósito.
– Quer me provocar ou converter para esse seu pensamento? – Silas olhou de novo para o pergaminho e riu, baixando a guarda e dizendo:
– Está bem. Vou ler.
Antes de continuarem a pesquisa irmão Anselmo apareceu resfolegando segurando nos batentes da porta da biblioteca.
– Perdão, Abade. – disse puxando o ar profundamente antes de continuar – temos um vidente. Um dos noviços entrou em transe e começou a falar em línguas estranhas. Irmão Pedro acredita que seja uma língua celestial. Assim que o noviço disparou a falar um dos despertos começou a traduzir o conteúdo das palavras ditas – disse em um só fôlego.
– Acalme-se, respire. Que fizeram após o menino entrar em transe?
– Nós o separamos dos demais. Houve certo pânico. Irmão Pedro achou melhor – inspirou lentamente interrompendo o final da frase.
– Respire. Tente não desmaiar.
– Estou bem. Vim correndo o mais que pude. Não sabemos o que fazer.
– Vamos para onde levaram o menino. E onde está o que tem traduziu? Estão juntos?
– Sim. Em um quarto lá na enfermaria. Na sala de operações.
– Venha, Silas. Vamos resolver esse problema, nossa pesquisa pode esperar.
Silas concordou com um aceno de cabeça e prontamente se levantou, sem deixar de levar consigo a espada.
– Anselmo. Fique aqui e se recupere. Alguém irá trazer algo que pedi para minha refeição e também de nosso convidado. Diga para quem vier que leve, esses pergaminhos e a refeição, para meus aposentos.
Silas já aguardava Benevides no corredor que os levaria para o prédio da enfermaria.
Ambos quase correm até o encontro de Pedro. Esse os aguardava visivelmente nervoso.
– Graças a Deus. Abade. Não sei o que fazer.
– Acalme-se.
Pedro os levou até os garotos. Ambos em transe deitados em macas na sala onde os monges realizavam pequenos procedimentos que necessitavam de ambiente mais esterilizado. A chamada sala de operações era um cômodo sem janelas e com piso e paredes cobertas de massa tão fina e polidas, que se assemelhavam a porcelana vitrificada. Silas sentiu que algo estava diferente. Havia mais entidades no lugar.
– Manifeste-se, escória do submundo. – disse Silas, imperativo, já com a mão em direção à empunhadura da espada.
O garoto, chamado André, aquele que pronunciava palavras em línguas estranhas, se contorceu.
Os irmãos Pedro e Anselmo - esse, já refeito da correria e sem atender ao pedido de Benevides voltou à enfermaria para auxiliar -, estavam próximos à porta do cômodo, estenderam as mãos em direção às macas e iniciaram as preces de contenção. Era um caso de possessão.
Os demônios, que dominavam os noviços, assumiram totalmente o controle de seus corpos aprisionando suas almas nos recônditos da mente.
– Um guardião da chama. Imaginava que não existissem mais – uma voz gutural saia da boca de André.
Silas tirou a espada da pele de cordeiro, provocando ira e pavor na face do noviço possuído. O outro garoto, Tomás, que estava em transe na outra maca, retesou o corpo, rangeu os dentes e lutava contra a possessão, Benevides segurou-o pelos ombros e proferiu preces de aprisionamento; libertar os espíritos sem saber suas intenções não era uma opção.
Silas, com um tom de voz tão assombroso quando a voz do demônio; convocou a chama de Erethir, a espada incandesceu. Uma sombra negra envolveu André, era densa, e assim que Silas aproximou a espada do rosto do noviço, a sombra dirigiu-se em direção à lâmina, nesse momento a sombra se transformou em uma face demoníaca.
Assim que a materialização do demônio finalizou, Silas empurrou o corpo de André e agarrou o demônio pelo pescoço.
– A chama de Erethir consumira até as suas cinzas. – disse aproximando a lâmina e queimando a carranca do monstro. – Aqui nesse mundo sentirá os tormentos que afligem o humano.
– Quem é você? – grunhiu o demônio.
Silas virou-se para Benevides e disse:
– Contenham o garoto. Vou entrevistar esse aqui. – Benevides concorda balançando a cabeça e sinalizando aos irmãos Anselmo e Pedro para que lhe ajudassem a conter Tomás, esse travava uma luta silenciosa contra o demônio que agora tentava consumar a possessão.
– Agora que em meu mundo você jogo conforme minhas regras, diga a que veio. Por que possuiu o garoto. – Mentalmente, Silas, repetia as orações de selamento. Precisava fechar a passagem.
– Ouvi o chamado.
– Que chamado?
– Da espada. Do aço arcano. Do sangue. – disse em desespero cuspindo as palavras.
– Quem do Inferno permitiu que fizesse a passagem?
– As hordas estão de prontidão, sou apenas um batedor.
– Prontidão para quê?
– Invadir e incendiar a terra.
Sem que Silas pudesse fazer alguma coisa a criatura desfez-se em pó.
O ferreiro voltou-se para Tomás.
– Desfaçam a contenção. Tenho que saber mais.
Os monges concordaram, mas antes que eles tomassem qualquer atitude, Tomás conseguiu vencer a batalha que há instantes travara sozinho.
– Vá até Starek
Silas gelou.
Em Starek, a última batalha havia sido travada.
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