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A Aldeia dos Magos Escondidos XI


A manhã seguinte foi pedagógica. Quase uma aula sobre o passado. O ferreiro não queria forçar lembranças. Tentaria de modos menos invasivos. Torcia para que o estrago fosse resolvido.

Silas contou a Antônio episódios da Guerra, disputas políticas e religiosas e em determinado ponto da narrativa a memória do guardião voltou.

– Estou me lembrando.

– Que bom. Fizeram um grande estrago em você, tive medo de não conseguir voltar sua mente.

– Silas. Mas depois da tortura não sei como vim parar aqui. Talvez não importe.

– Viagens e andanças são parecidas sempre. O que vem antes da tortura talvez seja mais importante. Tente me contar o que houve.

– Os guardiões sentiram distorções no tecido e começaram a investigar quem pudesse ser o responsável. Eu caí em uma emboscada quando estava no templo do palácio. Eu estava lá para falar com o monge emérito, pois o atual estava em uma viagem de estudos em outro templo. Mas era apenas fachada. Mataram o monge que dirigia o templo e o emérito retornara ao cargo para utilizar os paramentos religiosos consagrados para realizar os rituais negros. Mas não havia certeza nisso, então, fui lá para investigar...

– Malditos. Eles profanam o sagrado para realizar a passagem. – Silas disse em ato falho.

– Você não assume que é um necromante por qual motivo? Vergonha? Medo. – Antônio questiona imediatamente após o fim da fala impulsiva de Silas, esse se rende e confessa:

– Sim. Sou um necromante.

– Então você fala com os mortos? – Antônio, enfim, sente que vencera uma disputa de confiança.

– Essa era a função inicial. Depois deformaram a regra.

– Continue. Adoro histórias.

– Qual a vantagem em saber os motivos da danação do mundo? Você gosta de ver o sofrimento alheio?

– Não. Quero separar os fatos das lendas, dos mitos. Gosto da verdade. E isso tudo parece histórias para assustar crianças. Quero saber por que vivo dessa maneira, por que chegamos aqui e por que, nesse estado, o mundo está.

– Amigo... É uma longa história.

– Já lhe ouvi até agora. Não me importo em ouvir mais.

– Bom. De certa maneira é tudo muito simples: Ambição. Desejo de poder ilimitado. Controle. O de sempre.

Silas pega um copo com um pouco de água, bebe e continua:

– Primeiro há uma distinção que devo fazer. Nos idos tempos um mago necromante era apenas alguém que invertia os ritos de passagem da alma e chamava os mortos para vagar pela terra dos vivos novamente. Apenas isso: chamava os espíritos do além-túmulo. Esses obedeciam às ordens dos magos que os invocavam e, geralmente, eram invocados apenas para adivinhações e segredos do porvir. Inicialmente, necromancia significava previsão do futuro com o auxílio dos mortos. Mais tarde a palavra sofreu alteração em sua forma para nigromancia, utilizando o vocábulo em latim Niger, que significa negro. Assim, alterou também o significado. A necromancia ou nigromancia passou a ser identificada com as artes negras das noites ocultas e os espíritos invocados eram considerados demônios que estavam sob o poder do mago.

– Está ótimo. Mas isso está no Livro sobre as Lendas de Sangue. Até agora não vi novidade. – Antônio demonstrava certa frustração com a narrativa óbvia de Silas. O ferreiro continuou independente da reação do guardião:

– O que há de importante é que a ressurreição é ilusória. Os iniciados nos mistérios ocultos, detentores de segredos dos antigos deuses, tinham o poder de levantar os mortos em suas sepulturas, mas, sabiam que a vida então oferecida era de perdição e morte eterna.

– Meu Deus... Outro trecho do livro. Eles obrigam vocês a decorarem palavra por palavra? Silas, pare de enrolar. Isso a gente aprende em bancos escolares no monastério. – Antônio conhecia o texto que Silas recitava. Certos conhecimentos eram de todos.

– Agora vou dizer o que você não sabe. Quando uma alma inicia a caminhada no além, ela não retorna. O que retorna são os Caídos ou os Iluminados. Não invertemos o ritual de passagem. Não é uma via de retorno. Antigos magos, desejosos de poder invocavam os Caídos, filhos de Orco em Noites Ocultas quando os Iluminados descansam. A Purgação das Noites Ocultas era o momento onde os Caídos buscavam as almas que lhes eram oferecidas. Isso sempre foi um conhecimento oculto. Apenas os religiosos sabiam disso. Rituais nessas noites só funcionavam com o uso de paramentos consagrados e profanados. Não se trata de oferecer uma virgem, como certamente você aprende em histórias de terror. Ali, na Noite Oculta, na véspera de qualquer Dia Santo os Acólitos roubavam paramentos e preparam a Profanação. Invocam demônios e usam corpos em decomposição ou corpos de pessoas que morriam em dias próximos ao dia do ritual para a possessão.

– Mas os acólitos são religiosos? Não consigo conceber que uma pessoa de fé se sujeite a isso. Roubar paramentos para utilizá-los em rituais negros? Eu, sinceramente, não compreendo. Mas agora faz mais sentido. O emérito é um ser desprezível. – Antônio ouvia e avalizava os fatos que ele mesmo presenciara. A corrupção dentro da Ordem era evidente e palpável.

– Alguns são aprendizes de necromantes e que debandam para a escuridão. Querem poder. Poder absoluto. São facilmente corrompidos pela maldade. No fim, são filhos de Orco. Como dizem algumas lendas. Mas aí é outra história.

– Calma. Agora ficou interessante. Mas ainda não entendi alguns pontos. O que ocorreu que mudou tudo? Quando houve algo que mudou a função da nigromancia?

– Há alguns séculos... Há dois milênios mais ou menos... Um mago rompeu a barreira. Orcs e Elfos, Anjos e Demônios, ou o que quer que você os chame, atravessaram a cortina da realidade e caminharam sobre a terra. Não precisavam mais utilizar a matéria dos corpos mortos, possuir os vivos ou todas essas coisas espirituais que você conhece. Assumiram forma na matéria e estavam aqui. Foi quando iniciou a Guerra das Três Raças. O resto você sabe.

– Sim... Trégua... Necromantes com vida eterna para garantir o equilíbrio. Deuses adormecidos. Livre-arbítrio. Religiões, política. Teocracias...

– E para acabar com o meu sossego você aparece aqui com essa história de Bento querer começar tudo de novo.

– Mas não foi meu querer.

– Eu sei. Agora tenho com o que trabalhar. Iremos atrás desse emérito. Bispo emérito?

– Sim. Bispo Emérito. Chama-se João. Dom João. Ele se tornou emérito pela idade avançada.

– Eu sei como funciona. – Silas claramente entendia tudo. Ele fundara a Ordem a que Antônio se referia.

– Mas tirou o sucessor da jogada.

– Isso que não está claro para mim. Como foi essa investigação?

– Como disse, sentiram distorções no tecido. Então, eu viajei até o templo de onde emanava a distorção. Mas sem alarde. Cheguei à noite. Instalei-me em uma pousada próxima ao templo. Sem minha indumentária de Guardião. Estava como quem visitava o templo para a semana de oblação. Esse era meu disfarce. Conversei com os moradores e descobri que o monge eclesiástico que administrava os bens de uma abadia próxima, estava desesperado com uma notícia que acabara de chegar. Devido a isso o emérito assumira o cargo.

– Esta cidade é próxima à Capital do Reino? – Silas já maquinava sua mente com as informações dadas por Antônio.

– Era uma cidade próxima.

– No entorno do Lago da Aparição.

– Como sabe?

– Baltazar... – Silas deixou o nome de o mago antigo escapar-lhe pelos lábios que estavam abertos, em face à possibilidade que se formava na mente do ferreiro. Assustadora e perigosa possibilidade.

– Quem é esse?

– Um dos três magos antigos. O único vivo. O homem que lhe marcou com fogo. Meu antigo mestre e mentor.

– Mas não entendo...

– O bispo emérito, esse tal Dom João, é um fantoche. Baltazar controla o templo de Khaza-an Lori. Temos que detê-lo. Baltazar é a chave. Ele sempre esteve inclinado para o Mal. Temos que ir até Cecília e alertar o restante dos Magos da Mística Ordem.

– Mas como você junta os fatos assim tão facilmente?

– Existem coisas que nunca mudam. Baltazar sempre foi ambicioso e amava luxo e opulência. O Lago da Aparição é um lugar de peregrinação. Lá a igreja é poderosa. O Culto a Lutrien Hal tem muita força política. Mas isso também é outra história.

– Você já foi um bardo? Tem tantas histórias.

– Pare com as piadas e vamos até Cecília. Temos que colocá-la a par de tudo.

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