XVIII
– A magia que cria essa ilusão é muito poderosa. Nunca notaria a verdadeira fonte de sua existência – Silas admirava a névoa mágica que envolvia o monastério –, talvez o vinho que bebi no jantar turve minha visão, mas de qualquer forma o trabalho dos anciões é magnífico.
Com um pequeno movimento de mão, Benevides, fez a névoa abrir um círculo e permitir a visão do céu estrelado. A vista da varanda que já era linda. O pátio, as árvores, os canteiros com as plantas, um lugar muito bonito que o céu estrelado ampliava.
– Não veio aqui para admirar a magia antiga, você estava lá quando ela foi escrita. Agora que estamos a sós podemos conversar sobre a verdade que lhe aflige. Verdade que nos aflige, melhor dizendo. – Benevides não escondia a apreensão.
– Me fale dos boatos, dos sussurros que chegam aqui. – Silas precisava de mais informações.
– Alguns ventos dizem que Faldang retornou; que sobreviveu.
– É atrás dele que pretendo ir. Essa informação já me deixa animado. Tinha medo que as histórias envolvendo morte e exílio fossem verdadeiras.
– Não são. Isso foi um estratagema do mago. Ele virou um andarilho. Um mendigo. Fui informado que ele perambulava de povoado em povoado.
– Alguém com a magnitude mística que ele possuía, não teria problema em desaparecer.
– Mas há algo estranho nisso. Por que arriscar a vida andando por aí. Acredito que ele procurava algo, ou alguém.
– Fala de artefatos mágicos ou de pessoas?
– Talvez as duas coisas. Quem me informou sobre, disse que Faldang não se incomodou em ser reconhecido. Era como se quisesse que soubéssemos que ele estava vivo.
– Ele vê o futuro... – Silas devaneou – Faldang nunca assume ações perigosas por nada. Se ele deixou-se mostrar, teria algo para esse fim – disse, pensativo.
– Isso que me incomoda. A sua chegada, então. Só me faltam as peças para entender o que está havendo.
– Um forasteiro... – Silas interrompe a frase, pensa por alguns instantes e volta a falar com mais convicção – Sabe Benevides. Não tenho visões do futuro. Mas analiso bem o presente, e minha intuição nunca me traiu. Devo lhe contar desde o começo.
– Bom pelo que acabei de ouvir: Um forasteiro... – Benevides repete o tom de voz de Silas e faz uma expressão de interrogação. Silas conta toda a história.
Ao fim do relato, Benevides já não tinha o semblante leve e feliz. Expressava uma profunda preocupação com tudo que acabara de ouvir.
– Seu relato confirma muita coisa... Elucida muitas dúvidas que tive quando ouvi essas mesmas histórias. Agora não são mais boatos. Não imaginava que Bento II pudesse ter se corrompido, mas se ele está com os Tomos Santos... Não me restam muitas boas opções quanto às intenções e interesses dele. Essa corja: João, Baltazar, Bento II. Eles só querem poder. Não sabem com o que estão lidando. A distância temporal dos antigos acontecimentos que nos trouxeram dor e sofrimento não faz parte das memórias desses homens. Eles não acreditam nas histórias que conservamos em nossos conventos e monastérios. – Benevides se referia aos tempos da Guerra das Três Raças. Ele mesmo só notou que a verdade era consistente quando notara a imortalidade de Silas. No começo achou que viver para sempre era um dom, mas depois notara a desgraça que se abatia sobre o antigo aprendiz.
– Sempre presenciei esse tipo de postura em uns ou outros incrédulos. As memórias da Guerra não são vivas, a não ser naqueles que como eu, vivenciei e sou responsável por não permitir que se repitam as atrocidades. O Mal sempre está à espreita. Sempre em buscar de corromper almas desprevenidas. Infelizmente, o esfriamento da fé é uma constante de tempos em tempos.
– Então que esse momento seja de avivamento. Que o Mal não prevaleça e que cumpra sua missão. Minha idade e condição física não me permite seguir com você, meu caro. E minhas obrigações com a Ordem pedem que eu permaneça aqui. Mas meu desejo é seguir contigo.
– Agradeço sua vontade em vir comigo. Gostaria que pudesse, mas realmente, sua permanência aqui é mais importante.
– Seguirei contigo em orações. Mas e depois que encontrar Faldang? Qual o próximo passo.
– Isso só ele pode me responder.
De repente os olhos de Benevides emitiram um brilho cheio de entusiasmo.
– Posso lhe ajudar de uma maneira mais efetiva. Vi que trazia uma espada contigo. Quero lhe presentear. Venha comigo.
Foram aos aposentos de Benevides. O Abade foi até um armário de pequeno porte e pegou um acanhado baú. Abriu o cadeado com uma chave que carregava consigo, assemelhava-se a uma chave-mestra, e retirou do interior do baú, um objeto embrulhado em um pano roxo, tal qual um paramento religioso e bordados feitos com fios de ouro em sua borda davam-lhe aspecto ainda mais religioso. Calmamente, com gestos muito delicados e quase solenes, Benevides revela o que estava embrulhado em pano bento.
– Achei que era mais um objeto perdido – Silas não escondeu o interesse súbito e a admiração ao reconhecer o objeto.
– Eu nunca acreditei em profecias. Mas acho que é chegada hora de mudar minhas convicções. Eis meu presente.
– A Pedra Santa de Erethir. – Incrédulo, Silas, pronunciou a frase com olhos fixos e palavras quase sussurradas.
– Um fragmento dela. O resto está perdido. Em posse não sabemos de quem. Mas engastada em sua espada, o fragmento lhe será de imensa ajuda.
– O colocarei no pomo da espada. Ainda tem um forno aqui?
– Sim. Forjamos nossas ferramentas aqui, Não se lembra?
– Claro! A surpresa me deixou bobo.
– Não lhe recrimino por isso. Artefatos místicos são sempre causadores dessas reações.
– Mas qual o problema com as profecias? Elas fazem bem às pessoas, dão uma direção, aliviam as dores, dão esperança. – Silas não era um crédulo de profecias, achava que eram apenas um farol, um conforto.
– Nublam a fé. O Criador é responsável por tudo. Quando as pessoas depositam a fé em profecias, elas podem cair em mãos de quem as quer dominar. Já vivenciamos isso. Mas sem filosofias. Quando encontrei esse fragmento, foi-me dito que um dia um imortal faria uso de seu poder. Nem me lembrava disso. Mas quando vi sua aproximação, uma voz me chacoalhou por dentro. Algo me dizia que hoje era o tempo da realização das promessas. E agora a Pedra Santa é sua. Já é um homem santo. Agora tem mais possibilidades de canalizar poderes divinos.
– Espero conseguir. Faldang é minha esperança. Sozinho e com traidores se manifestando entre nós, como Clarice, essa guerra vai ser dura de travar.
– Tenha fé.
– Benevides – o tom grave de Silas, fez o abade arrepiar –, eu não sou nada. Era um ferreiro antes do Despertar. Quando fui envolvido por isso, eu não sabia nada de estudos da Fé, a religião era apenas um alívio para minha alma, para os tormentos que tinha. Buscava a igreja para acalmar meus pensamentos e coração. Era um homem comum. Não acreditava que havia predestinação, sonhos proféticos, nada. Não cogitava que seria parte disso.
– Não possuir vaidades lhe deixar longe da arrogância que tamanho poder pode lhe conferir. Lembro-me quando foi enviado aqui para estudar a fundo as artes divinas, nunca gostei de chamar de “Artes Mágicas” – fazendo cara de desdém –, nunca relacionei dessa forma. O Poder provém do Divino. Eretor nos conduz. Não tema, creia somente.
– Pare de falar como monge em pregação nos ritos de fim de semana. Eu continuo o mesmo homem que conheceu.
– Um homem que cumpre a missão. Eretor lhe escolheu por isso.
– Lá vem você com essa de escolhido. Você que não acredita em profecias.
– Não me refiro a essas bobagens. Você foi escolhido e não você é “o” escolhido. – a ênfase em pronunciar o artigo “O”, fez os dois sorrirem um pouco.
– Sentia sua falta. Não sabia, mas esse seu jeito de ver as coisas me diverte. Ainda mais agora que é um abade. Dom Benevides. Nunca imaginei que um bibliotecário iria chegar a tanto.
– Um ferreiro imortal e letrado em magia não deveria duvidar das possibilidades que o mundo, o destino, algumas vezes apresenta. Somos dois que apenas são levados pela correnteza da vida.
– Esse tom de sermão que me incomoda. – disse Silas encetando uma longa risada.
Riram muito. Havia nos dois uma alegria em estarem juntos novamente que afastava os problemas que enfrentariam.
– Me deixe perguntar uma coisa que sempre me rondou e nunca tive oportunidade de perguntar.
– Fale, meu caro. – Silas se preparou para a pergunta cruzando os braços.
– Como você faz para não notarem sua imortalidade? Em vinte e cinco anos você não mudou nada.
– Sempre me mudo de povoado em povoado. Nunca passo mais de vinte anos no mesmo lugar. Antes que venham me questionar, sumo.
– E Cecília? Ela o acompanha?
– Sim. Agora mesmo, pouco antes de surgir esse forasteiro que trouxe a notícia da desgraça que iremos enfrentar, já pensávamos em ir embora... – Citar os planos frustrados amargurou o rosto que até aquele momento era de semblante leve e otimista. Benevides, mesmo há tempos sem ver o amigo, notou o imenso pesar.
– Sinto muito por você. Muito mesmo. É uma vida dura. Ser tão poderoso e sempre ter que viver à sombra. Escondido.
– A Vila do Morro do Vinhedo Velho, nos acolheu muito bem. Lá há outros magos, escondidos, claro. Disfarçados. A Lei não permite a manifestação mágica, você sabe. Mas há aqueles que nascem com dons. Não intuí, mesmo notando que o número de nascimentos de sensitivos tinha aumentado, que alguma coisa pudesse acontecer.
– Não se culpe ou se flagele por nada. Sua missão é estar a postos frente ao embate espiritual caso o tecido seja novamente rompido. Não prever alguma coisa. Ainda mais sendo contrário a profecias. – Benevides tentava tirar o peso do fardo que o amigo carregava.
– Sim, mas era uma coisa estranha. De uma hora para outra, nascimentos de sensitivos e sensitivos muito poderosos.
– Alguma coisa lhe incomodou de verdade.
– Mesmo há tanto tempo sem falar comigo, parece que você nota tudo.
– Sim. Nosso treinamento foi árduo, extenuante. Essa ligação acaba acontecendo.
– Tenho uma filha com Cecília.
Benevides calou-se. Uma filha de dois imortais. As consequências desse ato seriam devastadoras. Diante do silêncio do amigo, Silas falou:
– Ela teve um despertar antes de minha vinda para cá.
– Mas... – o queixo abriu para pronunciar alguma coisa, mas som algum saiu de sua boca. Benevides desmoronou.
– Ela é tão poderosa quanto a Clarice.
O silêncio nascia de ambos. Era aterrador.
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