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A Bola Prateada


No outro canto, dentro do velho armário nunca aberto, uma criatura se contorcia, seu corpo rangia barulhos estranhos, tudo se contorcendo. Sua face sem nada, apenas amassada com uma parte que parecia uma boca. O ser aleatório falou o que ninguém conseguiria entender, quem sabe nem mesmo a própria criatura entendeu. Da poeira se nasce e renasce do pó. Esse que a tudo trouxe. Amassada se encontrava com dobras específicas feitas ao acaso. O amassado se contorcia parecendo que não o queria ser, sua carapaça envergada e gosmenta se mexia nas laterais. A tal criatura se levantou rastejante e se estalou, craquelou. Luz, luz, luz. Contorcia-se, era, de longe, vista como uma bola prateada, servindo de brinquedo para o vento. Apaga, apaga, apaga e não se via mais nada. Estava tudo escuro, breu total no caminho da tal, infelizmente, estava na hora de levantar e foi o que realmente fez. Seus olhos estavam tapados com o que pareciam lascas de galhos com musgos. Estavam rachados, rabiscados com, o que a criatura suspeitou ser, a culpa do tempo.

De longe, ela parecia apenas rolar. Rolou até a poça de chorume e ali se limpou, lavou toda sua amarga alma, todo seu orgulho, inveja e suas palavras. Crack, crack, crack. Descraquelou-se, seguidamente. Não se aguentava mais, não cabia, em seu exoesqueleto, tudo aquilo que sentia. E, assim, sucumbia a mais mísera vontade de estar no mundo, de ser o mundo. Gotas, gotas, gotas; sons, sons; luz, luz; breu, breu, breu. Se olhou no reflexo de seus olhos e não se reconheceu. Com toda certeza que considerava pegar emprestado do mundo, pegou e jogou na sua confiança de que algo não estava no lugar ou tinha desaparecido, sumiu em si. Breu, breu, breu.

As gotas, ao passo que iam caindo, limpavam a alma dela. Parecia ter voltado tudo. Olhou fixamente para um ponto iluminado, dentro da caixa pensante, e viu uma coisa girar contra si e para si, abrindo um sorriso medonho. Era uma arcada dentária perfeitamente suja que estava sorrindo para a criatura. Giro, sorriso, giro, sorriso, giro, sorriso, bem. O que foi isso? Era o seu bombeador de ilusão da vida que quebrou e ia sumir. Giro, sorriso, bem, giro, sorriso, bem, giro, bem, sorriso, giro, giro, sorriso, bumbum, gritos, tiro, luz, luz, luz, pisca, pisca, pisca, bem, giro, sorriso, grito, luz, grito, pisca, passos, pisca, rastros, correntes, rastros, gritos, giro, luz, sorriso, passos, sorrisos, gritos, giro, escuro, grito. Bum, bum, bum. Fechou os olhos, tudo passou, achou um chiclete no chão e colocou em seu bombeador. Agora, o portal mundano estava aguardando sua passagem. Enquanto rolava para lá, a criatura não percebia que sumira em si. Parou todo seu devaneio e desconcentrou do modo automático. Estava ali não estando.

Seu corpo trabalhava fisicamente entre dobras e objetos, o seu mundo externo girava no incomum. Era tão ritmado que não se lembrava mais de nada. Foi sugado pelo portal, lá não era mais uma bola prateada, se tornou uma forma mais estranha e enrijecida. Agora, ficava em pé e tinha uma coisa redonda no topo. Nesse momento, percebia tudo ali. A criatura adquiriu os sentidos e sentia-se diferente. Mais quente, mais fraca, mais exposta e vulnerável. Não mais rolava. Agora, tinha umas coisas deitadas na parte de baixo que usava para se locomover, não sabia como fazia aquilo, apenas queria ir para frente e as coisas achatadas iam, uma de cada vez, para o lugar onde ela queria. Achou assustador e repreendeu aquilo. Se sentiu amaldiçoada por todos os deuses e deusas que nunca acreditou e que, a partir daquele dia, não acreditaria mesmo, apesar de alguns latejarem insistindo no pensamento.

Encontrava-se estranha a criatura, totalmente absoluta em seu nada que nem conhecia coisa alguma, nem sabia o monstro asqueroso que havia se tornado, nem faria sentido se soubesse, ou faria? Provavelmente não, não teria a afetado muito, continuaria com medo, porque nunca teve contato com nenhum ser parecido. Seu corpo era muito alongado e desprotegido, tinha uma fina camada que se estendia por todo o seu ser, não sabia, mas isso se chamava pele. Tocou-se e estranhou tudo, não sabia que tinha olhos nariz e boca. Assustou-se em ver, respirar e sorrir. O que era essa maldição? Acabou dizendo em voz alta, um outro ser semelhante disse que a vida era a maldição. A antes criatura, agora, se encontrava fora do armário. Em sua direção, um ser correu e o chamou de pai, esse era seu nome. Então, ele olhou o pequeno ser, virou-se, deitou no sofá e, por quase uma hora, regrediu ao que, de longe, parecia uma bola prateada.

 

Sobre a Autora:

Autora baiana, Kananda Gomes começou a escrever quando criança e não parou mais. Além de escritora também é estudante de Museologia na UFBA e criadora da página no Instagram @eu.e.minhas.ironias onde compartilha diversos textos com seus seguidores leitores.


 

Revisão: Pamela G. Augusto

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