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A discípula nociva

Atualizado: 19 de set. de 2020

A noite era um hiato. As nuvens cobriam o céu. Noite feia, assim como quem a olhava. Era lua cheia, desbotada pela névoa. A feia-garota nem tentou procurar constelações, já que mal estrelas tinha.


— Vem pra jantar, Mini — chamou-lhe a mãe.


Mini engatinhou, para distribuir o peso do corpo e assim não pressionar muito o telhado, e pulou de volta para dentro do quarto, fechando a janela em seguida. Na pressa — porque seu estômago a socava de fome — só não tropeçou nos degraus estreitos da escada porque se apoiou na parede. Do outro lado da escada, onde havia anos a mãe dizia “amanhã chamo o homem pra botar logo o corrimão”, havia um vazio. Era outro hiato.


Mas Mini não era pobre. A mãe é que era uma pão dura, como dizia o pai quando eles brigavam. “Minha pão durice”, respondia a mãe, “minha pão durice é que põe comida na mesa, paga a escola da nossa filha e principalmente, Jorge, prin-ci-pal-men-te pagou essa bosta de computador onde você fica sentado o dia inteiro escrevendo essa droga de livro. Então, antes de falar que eu sou pão dura, vê se levanta essa bunda gorda e vai arrumar um emprego de verdade!”


Naquelas horas o pai, calado, se trancava no quartinho-escritório e só saía à noite, com algumas páginas a mais em seu livro. Aquele livro devia ter infinitas páginas, porque o pai já trabalhava nele havia nove anos.


— Tolkien demorou mais de dez pra escrever O Senhor dos Anéis — justificava-se.


— É, Jorge, só que Tolkien tinha um emprego.


Na época, Mini não sabia quem era o tal de Tolkien, então pesquisou na internet. Leu o sujeito, gostou, pesquisou livros parecidos, depois mais e mais livros. Posteriormente, tal qual o pai, escreveu seu próprio. O dela não levou nove nem dez anos, apenas dois. Escreveu, pediu para os amigos lerem e para o professor de redação ajeitar. Pronto, mandou para algumas editoras. Recebera a resposta naquela tarde:


— Eu vou publicar um livro.


A mãe falou de boca cheia, cortando um bife:


— Você?


— É.


O pai deixou o garfo cair.


— Que livro, Mini? Quando foi que você escreveu um livro?


— Viu, Jorge, até a Mini conseguiu terminar um livro e você aí, enrolando.


— Eu comecei a escrever há dois anos. Não contei nada pra fazer surpresa depois.


— Foi uma ótima surpresa, filha! — disse a mãe. — Minha filha é uma escritora!


— Mas por que não contou pro papai, Mini? Eu podia ter ajudado.


— É você que devia pedir a ajuda dela agora, Jorge. Nossa escritorazinha!


— Você só tem quatorze anos — disse o pai.


— Ah é, preciso que vocês assinem uns papéis e tal, já que eu sou de menor.


— Eu assino, minha escritorazinha, depois da janta.


— Você começou a escrever com doze anos???


— Uhum.


A mãe levou mais uma garfada à boca. Mini se serviu de outro copo de suco. O pai já devia estar satisfeito, pois só depositou o prato na pia e saiu, quieto como o céu feio daquela noite.


Quando terminou de comer, Mini subiu para buscar o contrato de publicação, que a mãe assinaria. Entrou no quarto e a janela estava aberta — ela jurava que tinha fechado. Quando se aproximou, viu o pai do lado de fora, sentado no telhado.


Observava o céu, chorava baixinho.


Mini pulou a janela para engatinhar até o pai e só então ele notou a presença da garota.


— O que houve, pai?


— Nada não, Mini. — Estava sério, o rosto como que esculpido em um bloco de sabão, similar à escultura que Mini precisou fazer uma vez na aula de Artes.


O silêncio tomou conta e só os insetos ciciavam. O telhado fez um barulho também. Quebraria, com certeza, com o peso dos dois. Quando o pai levantou, Mini teve certeza de que eles desabariam naquele momento. Olhou para cima e encarou o rosto escuro do pai.


— Eu sou um adulto, Mini — disse ele e voltou para dentro.


 

Durante nove anos, o quartinho-escritório fora o canto do pai, o lugar onde ele passava a maior parte do tempo, todos os dias. “É a quartinha-escritória dele, a verdadeira esposa dele”, disse a mãe uma vez. Contudo, já fazia três dias que a quartinha-escritória chorava de solidão. O pai trocara seu canto pela rua, saindo de manhã e voltando à noite, ligando só de vez em quando para dar sinal de vida. A mãe dizia a Mini que tudo bem, que o papai precisava de espaço para refrescar a caixola.


No quarto dia, o pai voltou com uma novidade: tinha arrumado um emprego.


— É uma consultoria, eu tô no RH.


E a partir dali a rotina na casa foi diferente.


Com os dois pais trabalhando fora, Mini ficava sozinha em casa à tarde. Em uma dessas, visitou o quartinho-escritório, que estava até com poeira. Ligou o computador do pai, abriu o documento do livro dele e começou a ler. Terminou no dia seguinte: era uma história meio grande, mas envolvente, mesmo sem ter final.


Então Mini criou um final. Sorte que não demorou muito, porque alguns dias depois o pai desfez o quartinho-escritório e apagou do computador todos os arquivos relacionados ao livro. Só que, sem ele saber, a única cópia já estava em revisão com o professor de Mini. “Mini, você se superou. Que espetacular!”, foi a resposta dele quando concluiu o serviço. “Não é meu não, profê, é do meu pai”.


Ela enviou às editoras que conhecia. O Discípulo Nocivo, por Jorge Yohano. Na verdade, o nome dele era Jorge Johan, mas o livro já estava assinado como Yohano quando Mini leu, e ela não quis mexer naquilo. Meses se passaram e respostas vieram. Não foi de primeira nem de segunda, mas o terceiro e-mail que chegou na caixa de entrada de Mini trouxe a boa notícia. Ela soltou durante o jantar:


— Pai, vão publicar seu livro.


O pai tossiu engasgado. A mãe deu um tapa nas costas dele. Quando se recobrou, ele disse:


— Como assim? Eu apaguei o livro.


— Você apagou, Jorge!? Você disse que só ia dar um tempo! Aí depois se arrepende e vem reclamar no meu ouvido, que nem da última vez.


Mini explicou. A editora era das grandes, maior do que a que publicara o livro dela. O pai ficou surpreso, com as sobrancelhas levantadas. Ao longo da conversa, retraiu a cara ao normal. Falava pouco. Chegou a sorrir, mas não parecia feliz. Disse palavras legais à filha, talvez sinceras, mas não parecia completo. Estava interno, como se guardasse a si próprio em seu interior. Mini fingiu não perceber aquilo.


O pai tomou as rédeas da publicação. A editora propôs um lançamento dali a quatro meses, e o pai sugeriu dia dezesseis.


— Dezesseis? — disse a esposa. — É o dia do lançamento da Mini.


— Você sabe como esse pessoal das editoras são uns monarcas: eles decidem e a gente não tem muita alternativa.


A esposa passou o dia dezesseis inteiro se revezando entre os dois eventos, que ocorreram em livrarias diferentes no mesmo shopping. Ao fim da loucura, de volta à paz da casa, a esposa tinha pernas doloridas e os outros, pulsos fadigados de dar autógrafos. Relataram suas experiências. O livro de Mini vendera quarenta e três exemplares. Jorge teve quase um espasmo, tentando evitar um sorriso que, ainda assim, angulou de leve sua boca. Mas na hora de falar, foi como quem não quer nada:


— Eu vendi quinhentos.


 

O pai e a filha, dois escritores. Começaram a carreira profissional ao mesmo tempo. Mas ele foi um avião em decolagem: depois de tanto correr na pista, enfim saiu do chão, subindo cada vez mais. Ela? Caiu no esquecimento. Tinha seus leitores, sim, mas quando se perguntava a alguém “conhece aquela escritora Minerva de Motta?” a resposta mais frequente era a negativa. A própria Mini, entretanto, dava de ombros para aquilo. Preferia sair com as amigas, estudar, assistir a séries na internet, ler, mas escrever? Era um hobbie para ela, um de-vez-em-quando,-se-desse. Nenhuma grande pretensão.


— Você não se importa em ter sucesso como escritora? — Jorge teve, certa vez, a ousadia de perguntar.


— Não, eu nunca almejei isso pra mim. Você escrevia, eu tentei também, achei legal, meus amigos também gostaram, meu professor falou que podia revisar pra mim… E como eu não tinha nada pra fazer com o livro depois, mandei pra umas editoras, pra não deixar parado.


Agora, o livro de Mini estava quase parado novamente. E o de Jorge… de Jorge? Nove anos trabalhando em uma história, nove anos sempre indo, sem nunca chegar. Até que uma garota de quatorze anos o empurrara para lá, para o ponto, para o fim da pista de decolagem, onde ele provou que tinha asas. Era isso, as asas sempre foram dele. A porcentagem que Mini escrevera era exatamente 4,7% do total de palavras do livro. Não era nada, o livro era grande, o livro era dele, o sucesso era dele. Ele merecia! Ele, Jorge, ele!


Mesmo a crítica enaltecendo o final como a melhor parte. A criatividade do desfecho. A quebra de expectativas, o êxtase, as pontas amarradas. Mas o que seria de um bom final sem os outros 95,3%? Frases soltas de uma garotinha.


Jorge, o escritor. Jorge, o pai. Mini, a filha. Tão feia, mas tão esperta. Minerva, como a deusa grega, o nome que ele sempre quisera. Quando nasceu era bonita, um cabeção, uma cara mole com ossos frágeis de coisa recém-nascida. Uma coisa nojentinha, mas linda, era a recém-paternidade. Só que a menina foi crescendo, os ossos endureceram e a cara ficou feia. A quem ela puxara? Como ele podia ter feito uma filha tão feia? Mas se mostrou inteligente desde cedo, muito esperta, e ele sabia que ela não poderia ser de ninguém senão dele. Sua filha, a melhor aluna de todas as classes, a que cobria os adultos de estupefação, aquela pirralha. Tinha agora dezessete anos, dezessete desde que Jorge segurara a coisa suja de sangue e líquido amniótico. Aos quinze não quis aniversário de princesa, com valsa, salto alto, aquelas idiotices. Mini não era assim. Pedira uma viagem em família, e Jorge pudera dar com o próprio dinheiro, porque era escritor e trabalhava no RH. Se quisesse até poderia largar a empresa, porque era um best-seller, um sonho de menino. “Vou ser um escritor bestesseli, papai, mamãe, o que vende melhor, beste é melhor, seli é...”. A esposa até andava mais quieta, já que não podia reclamar. Ele fazia questão de bancar as maiores despesas da casa. Ganhava bastante só com o livro, um único livro. Nove anos. O que Tolkien diria? Traduzido para oito idiomas, e o agente negociava agora com uma editora holandesa. Jorge na Holanda, o livro de Jorge no mundo todo, o filme que fariam do livro de Jorge...


Mas Mini. Mas Mini!


Jorge tragou novamente o cigarro e soprou a fumaça para o alto, para se juntar à névoa da noite. Noites feias se repetiam, às vezes. Aos seus pés, uma telha estava solta. Amanhã ligaria para o homem — esquecera o nome dele —, o mesmo que instalara o corrimão na escada. Era um bom trabalhador, aquele homem.


 

Wlange Keindé é cientista social, escritora e criadora do Ficçomos, o maior canal direcionado a escritores iniciantes do Brasil. É mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na UERJ e pós-graduanda em Roteiro Cinematográfico na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Foi finalista de dezoito concursos literários e seu primeiro romance venceu o prêmio Wattys 2018.

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