Ao decidir ingressar na aventura de conhecer um pouco mais sobre a mulher por trás do mito, a poetisa da dor, da saudade e da melancolia ou a “malograda poetisa” como descreveu José Agostinho em 1931, observando como, equivocadamente, durante muito tempo, a fusão vida e obra marcaram a leitura de sua obra e história, deparei-me com algumas pesquisas que permitiram a visualização de uma imagem mais nítida da poetisa portuguesa, para além da descrição de outrora. A intensidade presente nas obras de Florbela Espanca (1894-1930), a qual deixou em Portugal um legado de grande importância para os estudiosos das mais diversas áreas, tão controversa, à época, como a vida de que foi protagonista, a torna, sem dúvida, uma das mais fascinantes mulheres do seu tempo.
A literatura portuguesa foi assinalada por grandes períodos com seus respectivos representantes, mas nem todos puderam ser integrados a movimentos literários definidos. Isso é o que acontece com Florbela Espanca, destacando-se como uma figura controversa diante do feminismo e da preocupação com a condição da mulher. O início do século XX trouxe grandes mudanças que ajudaram a compor o mundo globalizado em que vivemos hoje. Diante da visão econômica estabelecida na época pelo Capitalismo, a contextualização da condição e do papel da mulher na sociedade começa a mudar. Os questionamentos, as reivindicações, espalham-se pelo mundo por diversos meios, até pela literatura. Em Portugal, o movimento também começa a ganhar forma e força. Dentro deste cenário, de modo mais contido, iniciando pelos salões de chá e depois pelas publicações em revistas, destaca-se Florbela Espanca, uma das mais importantes vozes femininas da época na Literatura Portuguesa, que se dizia conservadora, mas defendia o surgimento de uma nova mulher que deveria expandir seus horizontes sem se deixar ser dominada. A poetisa viveu e conviveu com um mundo de transformações, e sua vida não fugiu do contrário, ela foi uma mulher aquém do seu tempo e do movimento literário vigente, talvez por isso se deixasse levar tanto por seus anseios.
Florbela Espanca foi uma mulher extremamente sensível, cheia de inquietações e dúvidas, criada num ambiente de liberdade, porém vivendo numa sociedade masculina e opressora. Florbela nasceu no Alentejo, em Vila Viçosa, em 08 de dezembro de 1894. Filha ilegítima de uma criada e de João Espanca, fotógrafo e negociante, que viajava pelo mundo em busca de imagens e de antiguidades com as quais dirigia a vida. Entre 1899 e 1908, Florbela frequentou a escola primária em Vila Viçosa. Foi naquele tempo que passou a assinar os seus textos como Flor d’Alma da Conceição. As suas primeiras composições poéticas datam dos anos 1903 - 1904. A poetisa portuguesa teve duas antologias publicadas em vida: Livro de mágoas (1919) e Livro de sóror saudade (1923). Outras três foram lançadas postumamente: Charneca em flor (1931), Juvenília (1931) e Reliquiae (1934). Além da poesia, Florbela escreveu para jornais e traduziu obras literárias. Foi uma das primeiras a frequentar o curso secundário Liceu Masculino André de Gouveia, em Évora. Posteriormente, Florbela foi a primeira mulher a entrar no curso de Direito da Universidade de Lisboa. Formou-se também em Letras. Em um meio dominado por homens, a poetisa foi colaboradora do jornal D. Nuno, de Vila Viçosa, dirigido por José Emídio Amaro, em 1927. O pioneirismo e a independência feminina de Florbela também estiveram presentes em sua vida pessoal. Ela foi casada três vezes, coisa incomum para as mulheres da época. Após o diagnóstico de um edema pulmonar, a poetisa perdeu o resto da vontade de viver, não resistindo à terceira tentativa do suicídio, falecendo em Matosinhos, no dia do seu 36º aniversário, em 08 de Dezembro de 1930.
A poetisa alentejana encontrou diversas dificuldades para alcançar o reconhecimento do seu talento literário, enfrentando muitos preconceitos até ter reconhecido o seu valor. As suas vicissitudes biográficas contribuíram para que em torno da mesma se erguesse uma aura que acabou por mitificá-la. Florbela Espanca cantou a dor, a saudade, a sensualidade, o erotismo, a terra alentejana, o sonho, as vaidades, sempre fiéis às suas verdades interiores, tendo sua coragem destacada, por vários críticos, pela escolha de temáticas relevantes para a emancipação das mulheres, em uma época em que a cultura patriarcalista, opressiva, inviabilizava o discurso feminino. Dentro deste contexto, vale a pena ressaltar que as mulheres do século XIX estavam destinadas ao âmbito doméstico, as mais pobres produziam e vendiam seus artefatos e dentre outras atividades, trabalhavam como costureiras e operárias; as pertencentes à burguesia, trabalhavam para os seus maridos, muitas vezes exercendo as mesmas funções, mas sem receber remuneração equitativa. Neste ponto, parece não termos evoluído muito, não é?
Florbela seguiu transgredindo, trazendo poeticamente, o corpo, a liberdade, a sensualidade, que a vinculou, a uma associação que se confundia entre o prazer, o proibido, o pecado. Aqui, vale também a pena lembrar que se tratava de um tempo no qual as mulheres não tinham liberdade sexual, ou seja, não tinham direitos plenos sobre o seu corpo e sobre a sua sexualidade. A liberdade que hoje se materializa no direito ao prazer, que já não é apenas reservado aos homens, era vetada às mulheres consideradas honestas, e o corpo, com suas sensações e demandas, era considerado um tabu. Florbela foi, ao longo da sua vida, quebrando os grilhões do patriarcado que a prendiam a uma existência recatada e submissa que lhe estaria reservada, tornando-se responsável pela introdução de uma nova perspectiva de escrita feminina, em que desconstrói o padrão patriarcal de feminilidade e abre, assim, caminho a toda uma nova expressão do sujeito lírico da mulher – embora, muito provavelmente, o seu objetivo, ou “sonho” fosse tão só criar um lugar para si própria na esfera literária. Embora não estivesse, declaradamente, ligada a qualquer movimento, Florbela ilustra na perfeição o conceito de verdadeira feminista, conforme descreve Guimarães (1978): “uma verdadeira feminista não pode pensar em masculinizar-se, porque orgulha-se de ser mulher.”
Referências Bibliográficas
BOMFIM, R. O. A outra Florbela Espanca. Revista Ágora, [S. l.], n. 22, p. 111–123, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/agora/article/view/13611 Acesso em: 7 mar. 2021.
CAMPOS, Lorraine Vilela. "Florbela Espanca"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/biografia/florbela-espanca.htm. Acesso em 07 de março de 2021.
ESPANCA, Florbela. Florbela Espanca. Organizado por Maria Lúcia Dal Farra. Rio de Janeiro: Agir, 1995 (Nossos Clássicos, n. 121).
GUIMARÃES, Elina. Discurso de Abertura do II Congresso Feminista Português. In: Boletim da Comissão da Condição Feminina, nº2, Abril/Junho de 1978.
SILVA, Elen Karla Sousa da. A Representação Feminina na obra poética de Florbela Espanca. Linguagem, Educação e Memória, n. 08, 2015.
Sobre a Autora:
Aline Amorim é Recifense, aquariana, mãe e feminista. Graduada em Gastronomia, Pós-graduanda em História Social e Contemporânea, Pesquisadora da temática Relações de Gênero e o Mundo do Trabalho; Alimentação e Feminismo. Amante das Letras, é colunista da Literatura Errante trazendo a temática Mulheres e Literatura sob uma perspectiva Feminista.
Revisão: Jázino Soares
Muito bom o texto
Muito bem escrito! Uma história de luta!
Um texto muito claro, objetivo e rico de detalhes históricos. AMEI! Parabéns Aline!
❤️👏🏼👏🏼👏🏼 adorei