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Foto do escritorsr.cristiano.teixeira

Bordados

As primeiras horas da manhã eram as favoritas de Arlinda. Ela sentava-se na cadeira de balanço e punha-se a trabalhar. Numa mão segurava a agulha com linha colorida e na outra o bastidor. Enquanto a velha cozinheira se ocupava de fazer o almoço, ela passava as manhãs na varanda bordando o vazio de seus dias.

Arlinda era tão talentosa com as mãos quanto a maioria das mulheres de sua família. O aprendizado para aquela habilidade fora adquirido através da avó. A matriarca era o tipo de mulher que era como o centro da família. Ela tinha a última palavra sobre tudo sem impor o seu desejo e, com doçura, modelava a família com a mesma educação e respeito às tradições como lhe ensinaram os seus antepassados.

A velha possuía uma saia larga e branca de algodão, que se abria feito um guarda-sol ao ser esticada no chão onde se sentava e sobre a qual os netos deitavam-se para ouvi-la contar histórias de assombrações, reis, rainhas e de terras distantes, ao mesmo tempo em que bordava. Aquele pano amoroso era como o prolongamento de seus murchos braços, a criançada aconchegava-se sobre ele como um porto seguro onde os medos do mundo se dissipavam.

Ao terminar a escola, Arlinda apaixonou-se por um homem mais velho que logo a pediu em casamento. O pedido foi aceito, apesar das restrições de seus pais, uma vez que o pretendente tinha o dobro de sua idade. Mas ela estava cega de paixão e ele era tão carinhoso, prometendo-lhe uma vida de conforto e sem preocupações. O casamento aconteceu em menos de seis meses. O primeiro ano de casados foi de felicidade e o amoroso marido cumpriu tudo que prometera. Entretanto, ele era um homem antiquado e não permitiu que Arlinda trabalhasse fora de casa. Ela deveria ser uma dona de casa tal como fora a sua mãe e cuidar dos filhos que planejavam ter. Ele queria muito ter filhos.

Apesar das inúmeras tentativas, Arlinda não conseguia dar os filhos que o marido tanto sonhava ter e um conclusivo exame médico declarou finalmente a sua infertilidade. A tristeza abateu o casal. O marido, amargurado, distanciou-se. Arlinda tornou-se uma mulher solitária e melancólica, buscando refúgio em seus bordados. Aquele seu estado de espírito gradativamente debilitou a sua saúde até ela se tornar uma mulher doente. Sua pele rosada e brilhante adquiriu uma brancura opaca e sem viço.

Certo dia, enquanto bordava na varanda, sua irmã Amarantina apareceu inesperadamente. Ela parecia aflita e abatida.

— O que houve? Parece que viu um fantasma. – Arlinda pôs de lado o bastidor com a agulha. – Mamãe e papai, estão bem?

— Sim, eles estão muito bem...

— Então, por que veio?

— Não ouviu o noticiário?

— Não me interesso por notícias. O que aconteceu de tão importante para você vir aqui?

— Houve uma grande explosão de gás no centro que fez ruir um prédio inteiro. – disse a irmã, trazendo a notícia aos poucos e com cautela.

— Que horror! – disse Arlinda, emocionada.

— O pior vem a seguir. – disse Amarantina, temendo pela reação do coração fraco da irmã.

— Vamos, diga logo. Por favor, não me torture com tanto suspense.

— A explosão foi no prédio de Astolfo!

Arlinda deu um grito e levantou-se da cadeira abruptamente, deixando cair no chão o bordado. Há muito tempo os dois mal se falavam, quase não se olhavam mais nos olhos.

— Henrique correu até lá para saber alguma notícia. – disse a Amarantina, observando preocupada a irmã mais nova.

Arlinda continuava muda, como se não conseguisse pôr em palavras os pensamentos. A irmã sempre soube que ela era meio fechada, incapaz de dar vazão às emoções e que tinha um casamento difícil. Arlinda estava em estado de choque, pensou a mais velha, temendo pela sua saúde frágil.

Não demorou muito para que o cunhado chegasse trazendo mais notícias. Ao contrário da esposa, ele era menos cauteloso.

— Cunhada, eu lamento tanto. – disse Henrique, aproximando-se de Arlinda. – Fui informado que Astolfo está entre as vítimas.

Arlinda ficou muda e entrou na casa, trancando-se no quarto. A irmã a seguiu pouco depois, mas não conseguiu abrir a porta do quarto.

— Abra a porta, querida, não fique aí isolada. – Amarantina batia na porta.

Arlinda ficou de pé diante da janela, observando distraidamente o vazio. Ela estava perdida em pensamentos. Eis que, subitamente, um frêmito de excitamento lhe invadiu o espírito, fazendo seus lábios esbouçarem um discreto sorriso. Enfim, a liberdade! Os anos de indiferença, os olhares acusatórios e abusos verbais finalmente se acabaram. E não foi porque não pode lhe dar os filhos que ele sempre desejou. A sua essência jamais foi a do homem bondoso que demonstrou ser para conquistá-la. Ele era um ser mesquinho e sem compaixão que consumiu a sua saúde e juventude. Os pais tinham razão, ela não deveria ter casado com Astolfo. Ela fora orgulhosa demais para admitir o erro, preferiu acomodar-se ao conforto e vida segura que ele lhe proporcionava apesar de tudo. Ele não a deixaria sair com coisa alguma, caso pedisse o divórcio, avisara. Então ele a forçou a dividir com ele, para o resto da vida, a sua amargura e frustração. Lágrimas de felicidade começaram a rolar por seu rosto. “Livre!”, repediu seguidamente para si mesma. Do lado de fora, a irmã mais velha continuava batendo na porta. Arlinda se recompôs, enxugou os olhos e apagou qualquer resquício de satisfação que estivesse em seu rosto. Foi encontrar a irmã e o cunhado.

Ela pediria ao cunhado para cuidar dos preparativos para o funeral. Ao mesmo tempo em que chegava à sala, a porta da casa se abriu e um vulto entrou provocando em Arlinda um espanto como se estivesse vendo um fantasma. Sua visão turvou-se e numa janela de segundo apenas para trazer-lhe a lembrança da avó contando-lhe histórias, de sua acolhedora saia branca esticada ao chão e de seus bordados. Seu coração fraco a traiu paralisando-se, fazendo-a despencar sem vida nos braços do marido que, afinal, sobrevivera à tragédia.

 

Cristiano Teixeira nasceu em Fortaleza e cresceu em Salvador. Filho de artista plástico, foi criado convivendo com pintores, poetas e escritores, daí a inclinação para escrever. Fez letras na UFBA. Escreveu Demasiado Pouco Amor, A Morte de uma Sugar Baby e O Gato Preto e Outras História de Arrepiar, além muitos contos e de centenas de crônicas e histórias para o seu blog Cartas do Meu Moinho. Quando não está escrevendo, lê bastante. Faz revisões de textos literários e acadêmicos.

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