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Lenora

São Paulo, 1830

A um amigo de longa data, senhor Álvares.


“Quero, antes de mais nada, dizer-lhe, meu bom senhor, que és mui querido por mim, pois sempre recebe piedoso as minhas lamentações escritas neste papel velho. Tenho-lhe dito a minha desesperança por Lenora, a senhorita dos meus sonhos e pesadelos. Agradeço-lhe, meu bom amigo, por ouvir este penitente que padece de amor. Haja vista, os meus sonhos turbulentos nos quais Lenora incendeia-me. Ateia fogo a este meu corpo esquálido e doentio.

No sonho da última noite, ela lançou chamas aos meus ossos e eu, por minha vez, urrei de dor. Angustiado. Então, lancei-me no mar revoltoso e gélido. Iluminei as profundezas oceânicas, porém, o ardor infernal não cessava. O fogo de mil diabos não se apagava naquele abismo caudaloso. Eu fenecia de um tormento sem fim.

Acordei entre as sombras do meu leito lúgubre. Entre os meus escritos e os meus trapos. Ah, meu caro amigo. Quando eu saí naquelas horas altas da noite, a fim de desanuviar a mente do pesadelo nefasto, a lua escondia-se por entre as nuvens e seu brilho morria entre a neblina baixa. Uma névoa apta a esconder os crimes indefensáveis dos seres mortais. Levei um quarto de hora para atravessar as vielas até o rio Tietê, atropelei ratazanas esfomeadas, visto que sequer enxergava os meus pés. Antes eu tivesse ficado em meu casebre, no qual eu pagava alguns poucos réis. Eu faria sala para as baratas e ficaria em paz.

Orientei-me pelo desaguar do rio. Aproximei-me da ponte, levando na mente o semblante infame e demoníaco de Lenora, a súcubo que me sugava as forças. E, sob a névoa que se desvanecia ali, vi algo a boiar nas águas escuras. Agucei as vistas, era um corpo. Pelos céus! Apressei o passo sob as luzes frágeis das lamparinas da pequena ponte e debrucei-me. Era uma senhorita, sem dúvida. Seu vestido alaranjado e primaveril era vívido. Tinha os cabelos negros de Lenora e não houve solução além desta, joguei-me no rio a fim de salvá-la. Diabólica Lenora.

E antes que me acuses de insensatez, acaso tu não farias o mesmo, como bom homem e cavalheiro que tu és? Acaso deixarias ali a se afogar aquela dama? Atraquei-me ao corpo frio e tentei me aproximar das margens. Procurei vencer as ondas debaixo do nevoeiro e por uns instantes expiraria. Daria meu último suspiro numa noite fúnebre de ares nefastos. Numa noite melancólica e enevoada, que se assimilava ao meu aspecto taciturno, segundo os meus mais próximos amigos.

Entrementes, venci a batalha das águas. Porquanto, levei a senhora moça à margem do Tietê. Formosa criatura, de cabelos negros como a noite sem lua e tez amendoada, similar a avelã de tão macia. E eu sei, meu caro amigo. O dever pedia que eu a levasse às autoridades, porém, deste modo não prossegui. Como poderia eu levar aquele ser angelical para quem a trataria simplesmente como um cadáver? Ela era uma sereia hipnótica, embora seus olhos fossem da cor do leite. Como um espírito a espreitar na soleira da porta o mortal desavisado.

O vento assoviou rasgando a névoa, no entanto, chegou aos meus ouvidos como um sussurro de moribundo. Olhei em volta. Algo se movia na névoa? O desaguar do rio atrapalhava os sentidos. Lastimei a morte da dama em meus braços e a levei ao meu casebre, esgueirando-me nas sombras, almejando não ser visto. Deitei-a no sofá escuro e carcomido pelas traças. Fechei a pequena janela, por onde ao longe eu vira um corvo de grasnar feio.

Havia um silêncio mórbido pesando sobre os meus ombros. Acendi todas as velas após sentir um odor pútrido. Passei as vistas ao redor, eu pretendia buscar uma toalha velha para secar a moça, seu vestido estava ensopado.

Porém, num repente, todas as velas se apagaram. Preocupei-me. Um corvejar ao longe e um assovio agourento frisaram os pelos da minha nuca. Estremeci. O odor se intensificara? Um baque surdo ecoou na escuridão. O que poderia ser? A escuridão é morada de demônios. Esbarrei no pé da cama. Ouvi uma respiração pesada ao pé do ouvido, uma gota de suor frio descia pela minha testa. Não enxergava nada, embora os meus olhos estivessem arregalados. Meu quarto fora invadido? O barulho de antes se repetiu mais uma vez. Voltei-me. Alguém ainda respirava em meu encalço. Se houvesse bravura, eu perguntaria, pediria explicações ao perpetrador que invadira a minha alcova. Entretanto, aquele calafrio que percorria o meu corpo sugeria que havia algo mais sinistro a me perscrutar. Uns sussurros incompreensíveis. Um assovio?

Algo gelado acariciou o meu antebraço. Afastei-me de súbito. Olhei os quatro cantos sem nada encontrar. Que Deus venha em meu auxílio e apiede-se desse seu filho leal! O barulho se intensificou mais uma vez e talvez fosse demência minha, mas a dama se movera. E como eu sei? Ela confessou-me isto ao pé do ouvido antes de apunhalar-me.

Todavia, eu já estou morto. Até onde eu sei, não posso morrer duas vezes. Eu morri quando tentei salvar Lenora do rio, anos atrás. Tu bem sabes. Eu continuo a repetir meus pesadelos, as noites são iguais. Espíritos que sussurram e assoviam têm segredos a esconder.”


Carta sobre o túmulo do senhor Tomás de Alcântara. Endereçada ao senhor Gabriel Álvares.

 

Sobre a Autora:

J. Brandão (ou Josiene Brandão Campos) é alagoana, atualmente radicada em São Paulo. Escreve por hábito, terapia e gosto. É amante da leitura desde a adolescência e louca por animais desde sempre.

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