A história da literatura, após um período de dominação nos estudos literários, iniciou um processo de decadência que coincidiu com a ascensão da crítica e da teoria literária. A crítica feminista desenvolveu-se, mais precisamente, na segunda metade do século XX. Aponta-se, em geral, duas modalidades de desenvolvimento da crítica feminista, uma visa ao resgate de obras escritas por mulheres e que, no decorrer do tempo, foram relegadas ao ostracismo; a outra tem por meta fazer uma releitura de obras literárias, independentemente da autoria, considerando a experiência da mulher, ou seja, procura detectar, através do estilo, da temática e das diferentes vozes do texto, a relevância da voz feminina e os traços de patriarcalismo que perpassam a obra.
Para iniciar essa discussão, sabe-se que as mulheres ficaram, por muito tempo, excluídas de diversos espaços e não foi diferente com relação ao campo literário. Às mulheres, apenas ficou reservado o papel de personagem. Ainda assim, frequentemente, apenas o papel secundário na literatura canônica, essencialmente masculina que sempre apresentou imagens de mulheres estereotipadas, para quem o modelo patriarcal, marcado pela submissão, obediência e silenciamento femininos consistiam na única possibilidade. É o que vemos em Carolina, por exemplo, protagonista de A moreninha, escrito em 1844 por Joaquim Manuel de Macedo, marcada pela sua beleza, delicadeza e fragilidade, para quem o casamento era o único destino almejado. Quando havia alguma personagem que fugia desses padrões, o tom moralista entrava em cena. É o caso de Lucíola (1862) de José de Alencar, a prostituta que larga a profissão pelo amor de Paulo, mas o único destino possível para tamanha subversão social é a morte. E, ainda, Capitu, de Dom Casmurro (1899), que embora saibamos que Machado de Assis quis deixar a dúvida instaurada para o leitor, ainda temos apenas a narração de um homem ciumento e possessivo. Se só Bentinhos forem autorizados a contar suas histórias, nunca saberemos a versão das Capitus, não é mesmo?
No seu aclamado e essencial ensaio, Um teto todo seu (1929), a escritora modernista Virginia Woolf levanta uma questão que viria a dominar o cenário do debate literário feminista nas décadas de 1960 e 1970, época de contestação massiva das muitas barreiras institucionais que ainda impediam o pleno acesso das mulheres aos diversos campos da produção cultural. Ela ponderava a existência de uma “escrita feminina” e o que poderia distingui-la da literatura histórica e canônica feita desde uma perspectiva masculina.
Com uma posição mais cética quanto à “diferença”, mas igualmente interessada na ascensão das mulheres a posições de produção cultural reconhecida, Simone de Beauvoir articulou outro ponto de partida para nossa atual discussão sobre mulheres e literatura. Denunciou enfaticamente o Mito da Mulher criado pelos homens, o qual construía as mulheres ora como musas, ora como malditas, mas sempre como o repositório de uma “diferença” que, mesmo quando elogiada, continuava sendo vista, no fundo, como falta.
Em nosso país, somente na segunda metade do século XX, coincidindo com os avanços do movimento feminista no Brasil, que uma nova fase surge com a publicação de Perto do Coração Selvagem (1943), de Clarice Lispector. Ao lado de Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Lya Luft entre outras, todas elas são conhecidas por repensar a condição da mulher na sociedade. Frequentemente são narradoras, donas de casa, que passam por um momento de reflexão e questionam seus papéis na sociedade e no casamento. Não que fosse necessário que elas se dissessem feministas, como de fato a maioria não se dizia, mas dá para se fazer uma leitura pelo viés da crítica feminista e perceber nessa época grandes alterações nas representações de mulheres quando estas têm a chance antes negada de contar as suas histórias. Há notadamente um tom de angústia nas protagonistas presas às amarras sociais.
Após a fase de intensas e necessárias problematizações, a partir de 1990 tem-se a última fase em que se percebe que tais questionamentos não são mais necessários e vemos a construção de novas identidades para as mulheres, móveis e plurais, já libertas do peso da tradição. Com isso, vemos que a produção escrita por mulheres teve e tem o papel, ainda que inconsciente, de desestabilizar a tradicional representação da mulher na literatura canônica que em nada condizia com a grande diversidade de identidades femininas que povoam a realidade extraliterária da mulher contemporânea.
Essas questões, entre outras, constituem o substrato de uma crítica feminista que procura desconstruir os processos ideológicos tradicionais, discutindo as representações masculinas e femininas, a fim de colocar em evidência as questões de identidade de gênero. Essa hipótese de leitura faculta uma abertura para as possibilidades de mudança na escrita literária e na sua interpretação. Deste modo, a apropriação feminista da literatura é um gesto político, visto que a exclusão das mulheres, assim como de outros grupos sociais marginalizados do estatuto literário expõe o sexismo, o racismo e o classismo como práticas ideológicas hegemônicas, transgredindo modelos e regras, até então historicamente cristalizados, como tem demonstrado a literatura produzida pelas mulheres escritoras.
Referências Bibliográficas
ADELMAN, M. Metáforas de vida e de Escritora. Revista Cult, Jul. 2015. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/metaforas-de-vida-e-de-escrita/> Acesso em 19 Abr. 2021.
BONNICI, T. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: Eduem, 2007.
SANT’ANA, R. C.; ROCHA, E. do C. A. A crítica feminista no cenário literário contemporâneo. Revista Jangadas, v.2, n.15, pp.60-74, 2020. Disponível em: <https://www.revistajangada.ufv.br/Jangada/article/view/257> Acesso em 19 Abr. 2021.
ZOLIN, L. O. A literatura de autoria feminina no contexto da pós-modernidade. In: Ipotesi, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, pp. 105-116, jul./dez. 2009. Disponível em: <http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2009/10/a-literatura-de-autoria-feminina.pdf> Acesso em 19 Abr. 2021.
Sobre a Autora:
Aline Amorim é Recifense, aquariana, mãe e feminista. Graduada em Gastronomia, Pós-graduanda em História Social e Contemporânea, Pesquisadora da temática Relações de Gênero e o Mundo do Trabalho; Alimentação e Feminismo. Amante das Letras, é colunista da Literatura Errante trazendo a temática Mulheres e Literatura sob uma perspectiva Feminista.
Revisão: Carol Vieira
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TE AMO
Parabéns pelo texto
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