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Natureza Morta



Era final de tarde quando Joana sentiu de súbito uma vontade de sair de seu apartamento iluminado por luz alaranjada e tremulante; vontade que parecia crescer dentro de seu estômago e puxá-la assim, como corda amarrada no meio de seu corpo. Não era a primeira vez que Joana experimentava essa energia fugaz, aquilo vinha crescendo dentro dela há muito tempo, ela só sabia que agora não poderia ignorar.

— Fernanda! – gritou por sua esposa, que vinha sendo sua esposa há tantos anos que já nem se lembrava quantos.

— Oi – a resposta era seca.

— Trocou a água dos gatos?

— Sim

— Eu preciso sair.

— Eu sei.

— Eu não sei se volto

— Eu sei

Joana fitou os olhos da companheira por um tempo, passou a mão em seu rosto. Ali era tão familiar e caseiro, ela não tinha ideia do motivo de sua partida, sabia apenas que devia ir.

— Eu te amo.

E saiu do seu apartamento à beira do mar de uma cidadezinha no interior do Espírito Santo. O céu continuava em tons de azul escuro e laranja, cores que ela nunca havia visto misturadas acima de sua cabeça. Andou por um tempo na areia, deixando as ondas do mar lamberem seus pés, enquanto podia escutá-lo chamando seu nome. Tudo à sua volta parecia convidativo, seu corpo arrepiava-se ao toque do vento gelado que parecia querer carregá-la. Dois sentimentos brigavam dentro dela enquanto movia-se automática e inconscientemente para um lugar que ela desconhecia: medo e vontade. A vontade, no entanto, era alheia ao seu desejo, era algo fisiológico como precisar beber água. E ela precisava. O medo era do final, o destino da jornada que ela começara sem motivo aparente. Mas seguia.

Parou diante de uma mata fechada que marcava o final da praia, onde geralmente não se entrava. À exceção de um ou dois espertinhos que queriam provar-se para alguém. Respirou fundo e sentiu raspar a garganta, precisava mesmo de água. Estava ofegante como se tivesse andado por dias e sentia suas articulações doerem como se tivesse ficado encolhida por muito tempo, tensa, retraída.

Entrou. Andou por alguns minutos, ela já não sabia quantos. Sentiu um frio estranho e reparou, só então, que não estava vestida. Usava uma lingerie gasta e um roupão de cetim que pretendia ser de seda. Estava confusa e prestes a parar e se questionar, tentando racionalizar seu comportamento naquela tarde, por que motivo agia de forma tão crepuscular, misteriosa?

Mas não conseguia parar. Suas pernas moviam-se sozinhas como se soubessem para onde levá-la, e rápido, como se tivessem pressa de chegar. Doía para respirar e Joana não fazia ideia do motivo. Parou aos pés de uma árvore enorme no meio da mata. Parecia ser o centro, o coração do lugar. Sem pedir sua permissão, seu corpo sentou-se debaixo da vida frondosa que pairava acima dela. Estava frio. Joana fechou os olhos por um instante, tentando saber o que estava acontecendo, e foi quando escutou ao longe um som que lhe era extremamente familiar. Palmas, cantigas de roda, risadas. “crianças brincando”, pensou, “como eu brincava quando criança. Estou em casa”. A noite caiu.

 

Eram 11 da manhã quando Fernanda escutou seu interfone tocar. Enxugou as lágrimas antes de pedir que esperassem um momento. Ela chorava todos os dias há duas semanas, desde que se desencontrara da esposa num show que tinham ido na praia perto da casa delas. Voltou pra casa naquela noite esperando encontrar a esposa já dormindo e descobriu que estava sozinha, que não tinha nem sinal de Joana ter estado ali. Esperou impacientemente até o meio dia do dia seguinte para avisar à polícia local que sua esposa tinha desaparecido.

— Não, nós nunca brigávamos – ela respondeu quando lhe perguntaram. – Ela não foi embora. Estávamos no show, ela foi até uma das barracas comprar água e não voltou. Imaginei que tivesse se perdido e voltado para casa, mas ela não estava aqui quando voltei. Não, ela não atende o celular, está desligado, liguei mil vezes.

 

As semanas se passaram longa e vagarosamente enquanto Fernanda espalhava pelas redes sociais fotos e pedidos de ajuda. Era desesperador não saber o que tinha acontecido. Mas agora o interfone tocava e era a polícia. Ela já não sabia se queria escutar o que tinham para lhe dizer mas deixou que entrassem e sentou-se no sofá enquanto uma policial a encarava com olhos tristes e severos, de pé na sua frente.

— Fernanda, encontramos o corpo de Joana.

Fernanda tremeu, sentiu-se fraca e desejou desmaiar, mas não desmaiou. Em vez disso, ouviu.

— Ao que parece ela havia sido sequestrada durante o show da noite de 05 de fevereiro, na praia das castanheiras. Pelas marcas ela estava sendo mantida em cativeiro e tinha substâncias sendo injetadas. Ainda estamos concluindo as investigações, mas tudo indica que ela conseguiu fugir, provavelmente ainda sob efeito de drogas. Foi encontrada por um casal que fazia caminhada, estava sentada debaixo de uma árvore seca num lote vago, há três quarteirões daqui. O laudo médico concluiu que ela morreu por desidratação.

A policial continuava falando sobre a necessidade de Fernanda ir reconhecer o corpo, sobre o quanto ela sentia muito, sobre coisas que Fernanda não queria escutar.

Agora ela sabia o que tinha acontecido. Ela pensava que, quando soubesse, encontraria paz, mas a paz não veio. A paz não veio e Joana também não. Fernanda suspirou enchendo os pulmões de ar e de realidade, a realidade doída que se apresentava para ela. Endureceu por dentro. Já não tinha casa.

 

Sobre a Autora: Ana L. Fuchs


 

Revisão do Texto: Pablo Gomes

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