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O Homem Cinza

Atualizado: 11 de set. de 2020

Encostado em um poste, ele observava o movimento das pessoas na alameda, todas as faces alegres ou, no íntimo, encenando uma alegria. Que as máscaras eram ótimas, isso era. Ele tinha puxado a gola da sua jaqueta de tecido sintético para mais próxima do rosto, pois garoava e o frio castigava sua pele, que um dia fora morna e vívida como a primavera, mas que agora estava gelada, cadavérica. Suas mãos estavam enfiadas nos bolsos da jaqueta, lá dentro elas tremiam. O facho de luz do poste no qual estava recostado revelava as gotículas da garoa, penosas, caindo numa diagonal esquisita. Só de ver, este trajeto lhe causava dores de cabeça fortes. Decidiu sair dali, observar as pessoas e as gotas fazia sua mente implodir com todas as lembranças dolorosas.

Caminhou pela alameda, que desembocava numa avenida — pisando, antes, numa poça d’água —, onde no meio ficava uma pequena pracinha, quase como uma porção de terra dividindo um rio, na qual também se localizava o ponto de ônibus em que sua ex lhe dera um pé na bunda. Lembrar disso provocou-lhe uma pontada de dor e angústia. Ele queria parar com o processo de recordação, mas aquelas emoções... aquela realidade, o sentimento de abandono, de culpa, de remorso e, principalmente, de mágoa o condenavam a cair em um vazio de solidão. Quando olhou para o banco de metal, para a cúpula côncava que os protegera da chuva naquela noite triste de inverno, o nome do seu antigo amor lhe veio à mente: Amanda. Mas, para o seu azar, a cena, do exato jeito como ocorrera, repetiu-se. Ela dizendo que amava outra pessoa, ele ficando surpreso com a confissão, ela desatando em lágrimas e implorando que ele compreendesse, que não insistisse em continuar com ela, ele tapando o rosto com as mãos e, após um longo suspiro, falando: Amor, por favor, diz que isso é mentira., depois, esticando os braços para abraçá-la. Tendo seu ato de súplica rejeitado doce, mas decididamente, gritando COMO PODE FAZER ISSO COMIGO? EU TE AMO!, então, numa voz mais delicada Quando isso começou?, ela respondendo Mês retrasado., e completando com Mas eu não queria que isso terminasse assim, nunca quis que tomasse tanto tempo pra te contar. Eu só... só... E, não havendo mais palavras, dando-lhe um beijo no rosto, abrindo o guarda-chuva amarelo e correndo de volta para casa. Na mesma hora ele pensou que ela chegaria e ligaria para o novo babaca que ela ludibriaria, o fantoche recém-adquirido na liquidação de caras mais atraentes e com algo a mais para oferecer, com o qual ela brincaria até ficar enjoada e então o jogaria no lixo, assim como fez com ele, deixando-o à deriva.

Foi a cena que ele viu umas duzentas vezes antes de desviar o olhar para mais adiante na avenida; do outro lado dela, havia uma alta cerca fincada em um muro de pedra cinza que protegia o longo perímetro do colégio onde estudou sua vida inteira. O imenso edifício estava envolto em uma penumbra sombria, pois as únicas luzes que deviam estar acesas agora eram as da entrada. De onde estava, só dava para ver a extensa parede lateral daquele bloco de cimento azulado, mas que agora a cor não fazia muita diferença, pois a lugubridade da noite engolia tudo. As péssimas memórias desse lugar, que mais parecia uma penitenciária para menores, uma representação do mundo cruel dos adultos e de toda a mesquinharia da raça humana assaltaram a mente do Homem Cinza em um piscar de olhos. Quando deu por si, todo o seu corpo estremecia (além do frio que o açoitava) de fúria, ódio, raiva e frustração, tudo conectado por uma fina, estranha, mas nítida linha de vergonha. Sofrera diversos maus-tratos lá dentro, sem nunca ter tido ninguém ao seu lado para lhe dar uma mão ou prestar socorro nos momentos difíceis. Conseguiu se defender algumas vezes, mas na maioria foi humilhado na frente de todos das diversas classes pelas quais passou ao longo dos anos. Não era o melhor da turma, nem o pior, mas de alguma forma todas as forças azarentas do universo se convergiam nele, pois era sempre o alvo das piadas.

Havia várias palestras motivacionais para os alunos do ensino médio; ele as detestava. Do mesmo jeito que existiam coisas que ele não comia por sentir repulsa, assim eram todos os discursos moralistas, religiosos e pedagógicos, tudo misturado numa salada de baboseiras que era atirada ao caldeirão — a mente dos jovens, “futuros do país”. Em uma dessas retóricas, a senhora Gislene (cujo nome inspirava diversos apelidos por parte dos ouvintes) perguntou ao seu amável, afável e respeitável público Quem aqui acredita em Deus?, a maioria deles levantou a mão, pelo menos atrás da pilastra em que o Homem Cinza estava naquele dia, dava para ver grande parte, mas ele suspeitava que na verdade todos levantaram a mão, em uma ordem de obediência e temor dignos de aplausos, porém indisfarçavelmente falsos. Bando de hipócritas do caralho, pensara o Homem Cinza. O rebanho todo levantando a mão em harmonia, clamando por misericórdia e perdão por seus pecados que, no dia seguinte, voltariam a cometer; desejando o paraíso, morrendo de medo de que suas almas fossem condenadas, arrependendo-se apenas durante o momento do grande contágio social.

Então sabem, continuou Gislene, que precisam tratar os outros com respeito, assim como vocês gostariam que lhe tratassem, não é?, ao que toda a classe balançou a cabeça em concordância cínica e de aparência sensata e solene, como se fossem jovens maduros, responsáveis pelos seus atos, inocentes na arte da tortura psicossocial. Talvez nem se dessem conta de que estavam sendo profundos “falsetas”, como diria o zelador da escola — o único com o qual o Homem Cinza gostava de conversar — , mas com ignorância ou sem, isso o irritava muito. Durante todos os anos escolares, 65% da sua cor tivera sido sugada por eles, os malditos sanguessugas, vampiros e súcubos, ou, em palavras menos violentas, seres humanos.

Amanda não era tão diferente para ele. Em sua concepção, a única característica que se destacava nela era que ela lhe concedera o prazer carnal, a paixão (nada próximo do amor, se é que isso existe), o êxtase, o orgasmo, o néctar de toda a luxúria disponível nela pelo tempo em que estiveram juntos, mas, em compensação, jamais foi próxima dele. Tudo acontecera na superfície, na epiderme, onde apenas era permitido enxergar o véu de veludo vermelho, sua sedutora cor morna e convidativa; ela soube como envolvê-lo e ainda por cima não compartilhar nada pessoal, conseguia inventar desculpas para adiar aquela ida ao cinema, ou ao concerto de rock da banda que ele adorava, tudo tinha que ser feito com o mínimo de ligação covalente, sem momentos sentimentais ou compartilhamentos de sonhos e metas, de longe uma tenacidade mais do que perfeita. Ela o elogiava, ele a elogiava (apesar de ela detestar elogios vindos dele, sentia desgosto de qualquer expressão de carinho, só queria o seu corpo) e ponto final. Por fim, nas férias de verão, quando o amor da sua infância dissera-lhe que a faria uma visita, resolveu dar o basta na sua relação superficial e teria que fingir se importar, apesar de, na verdade, não dar a mínima.

O Homem Cinza sacudiu a cabeça, tentando afastar todas as ideias ruins, mas isso se provava cada vez mais uma tarefa impossível. Atravessou até a calçada da cerca pontuda e caminhou até o final dela, chegando a uma esquina obtusa que era outra alameda, ao lado de uma loja de tintas e materiais de construção. À esquerda desta, um morro dava para um complexo de favelas. A garoa tinha agora se transformado num chuvisco que machucava, mas ele não ligou para isso. Ao contrário, até gostou de senti-lo caindo no topo de sua cabeça e escorrendo pelas têmporas e maxilares frouxos, a dor física seguida da sensação de dedos gelados fazendo cócegas na pele, de alguma forma, amenizava a dor sentimental.

Ele olhou para a loja de tintas e recordou-se do dia em que seu pai morreu. Buscara-o na escola e estacionara o carro para comprar uma lata de tinta verde para pintar as paredes do quarto do filho; a cor que ele adorava! Iria ajudar o pai a pintar tudo, se não fosse pelo buraco que uma bala fizera em sua cabeça logo após sair da loja. A bala entrara pela parte de trás e desenhara uma trajetória reta, saindo pelo olho esquerdo. O choque causado tinha sido tão grande que o seu filho nem mesmo chorara naquele dia, apenas ficara calado, imóvel, paralisado pelo medo, encolhido dentro do carro. Felizmente, ele ainda tinha 11 anos na época, e sua cor, mesmo tendo diminuído em 20%, ainda era suficiente para que ele lutasse e conseguisse recuperá-la, completando os objetivos de sua vida. O problema (sempre há um problema!) era que quem dera o tiro fora um assaltante que já estava escondido na loja antes do seu pai — – um policial com vinte anos de carreira — chegar. Se ele tivesse observado bem os olhos do vendedor por trás dos óculos de lentes finas e sem armação, teria notado algum nervosismo no momento em que ele dissera Muito obrigado, volte sempre!, por menor que fosse, além do suor que fazia sua testa brilhar à luz do sol que entrava pelas janelas. Sua loja estava quieta demais para um dia de comércio movimentado como segunda-feira. Todos estes sinais foram ignorados pelo pai do Homem Cinza, mas bem, ele estava empolgado para pintar o quarto com o seu filho e sua cabeça (uma das mais caçadas entre os traficantes e assaltantes) tinha o foco apenas nisso. Aquele que o matara tinha dado meia volta, sem nem mesmo demonstrar culpa por ter acabado de matar alguém; ia começar a subir o morro, correndo o mais rápido que podia, mas o vendedor da loja saiu pela porta carregando uma espingarda e, com um movimento antecipado ao do assassino, acertou-lhe um tiro na mão em que ele portava sua 38. Ele gemeu de dor e, segurando a mão ferida com a outra, descreveu um movimento giratório ao tropeçar com o tornozelo no chão, soltando a arma que, ao acertar o chão, disparou para o alto. Caiu em agonia e começou a chorar no exato instante. Sabia que seria preso, embora o sistema viesse a conceder-lhe liberdade em poucos meses. Um dos motivos pelo qual o Homem Cinza, assim que soube da sua soltura, perdeu mais cinco por cento de sua cor, e também parte da sua crença na humanidade. Soube, algum tempo depois, através do jornal, que o responsável pela morte de seu pai viera a falecer de derrame cerebral. A notícia não o animara tanto, mas lhe serviu de algum alívio. Se pelo menos seu pai tivesse prestado atenção aos sinais...

E, se, também, pensou, apenas beber todas aquelas tintas o fizesse recuperar a sua cor... se pelo menos fosse tão simples...

Sua mãe, o único refúgio seguro que ele tinha na época, a sua âncora emocional no atribulado mar solitário, ficou depressiva e alcoólatra. A empresa que administrava foi falindo gradativamente, conforme ela se tornava mais relapsa com o rendimento. Ela não ficou cinza, mas com o passar do tempo já apresentava dores de cabeça constantes, tonturas, falta de ar e péssimo desempenho físico; seu semblante parecia transformar-se a cada dia num esgar de angústia. Os resfriados passaram a causar efeitos destruidores na sua saúde, por causa do álcool e da depressão; o sistema imunológico foi ficando fraco. Às vezes, enquanto cortava legumes ou descascava uma laranja, acidentalmente se cortava, e o sangue que escorria demorava a estancar; o corte, a cicatrizar. Uma mulher que antes era difícil de ser abalada, agora se magoava facilmente com qualquer coisa que lhe dissessem, mesmo que a intenção não fosse a de ofendê-la. Dentro de seis meses ela falou as últimas palavras e sentiu sua batida final do coração.

— Seja meu orgulho — dissera ela, num gemido fraco, para o filho, no leito de morte.

No mesmo dia, ao deslizar a mão pelo rosto dela, fechando seus olhos que se mantiveram abertos mesmo após a morte, o Homem Cinza começou a vasculhar os documentos dos seus pais, puxando as gavetas das cômodas, abrindo as portas dos armários, vasculhando compartimentos do guarda-roupa... Queria ter certeza de que levaria consigo quaisquer fragmentos — fotos, gravações em vídeo, desenhos, cartas — que pudesse para o lugar de onde veio. Embora não fosse religioso — falsos ídolos altruístas e promessas mentirosas de redenção eram quase como drogas para ele, cujo uso contínuo levava ao vício —, sua mente o chamava para voltar ao seu Oásis particular, aquele canto no qual ninguém poderia incomodá-lo, onde todos os que amava ainda estariam vivos e seus dias felizes seriam intermináveis, variados, sempre com novas surpresas; haveria paisagens incríveis e momentos de tirar o fôlego, as emoções jamais se tornariam arcaicas e os cheiros lhe instigariam novas inspirações, sonhos seriam vivenciados eternamente e o universo estaria ao seu favor – a vida lhe sorriria com carinho, e não mais existira a palavra “sofrimento”.

No seu quarto, deitado em sua cama, segurando o álbum de foto da família contra o peito, a roupa fria e úmida em contato com a pele (após ter chegado de sua breve e última excursão noturna), O Homem Cinza viu uma fita com várias fotos passar diante dos seus olhos, a maior parte das cenas em preto e branco, poucas coloridas e vivazes, sendo ele o personagem principal destes momentos. Suas últimas palavras, ditas no espaço vazio do quarto, dirigiam-se para ele mesmo; num tom de lamento e meditação, disse:

— No fim, eles destruirão uns aos outros.

Depois disso, um clarão desabrochou do meio da sua visão — algo quente, como um abraço —, e ele deixou-se dominar pela onda calmante que veio com isso. Em questão de segundos, sua consciência abandonou seu corpo, que se desidratou, secou e tornou-se pó, esparramando-se de uma vez em seu leito de morte e enchendo o ar de cinzas.


 

Pablo Vieira Neves nasceu Rio de Janeiro, onde viveu até os 14 anos. Vive em Varginha-MG, desde então.

Inspirado em um jogo de videogame chamado Alan Wake, passou a escrever. Escreve desde então por diversão. Publicou em no Wattpad (conta deletada, atualmente), no Recanto das Letras e também publicou em uma feira literária, em Varginha.

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