Dedico ao meu amigo Ernesto Fagnani,
corajoso companheiro daqueles
inesquecíveis anos de nossa infância e adolescência.
Os fatos constantes no texto são exclusivamente frutos da minha imaginação, entretanto, tentam refletir lealmente a visão mágica do mundo que todos nós tínhamos mais costumeiramente em nossa tenra idade. Resgatar esse encantamento, ou mesmo mantê-lo aceso, é o nosso intuito, sem qualquer maior pretensão além do prazer e da brincadeira de contar uma estória que fale sobre um pouco de nós; divertida, dramática e curiosa.
Os locais citados no conto poderão ser facilmente reconhecidos por aqueles que conhecem a nossa terra natal (Gavião Peixoto), além da referência direta a personagens reais e maravilhosos que passaram por nossas vidas.
Saliento que o enredo, simples como aquelas famosas redações da escola com o eterno tema “Minhas Férias”, atua, sem hermetismo, na dimensão do fantástico, de modo que o encadeamento dos acontecimentos pode suscitar a dúvida no leitor frente ao desfecho: o confronto entre a coincidência e o sobrenatural.
Desculpo-me, desde já, pelas digressões na estrutura narrativa, cuja existência é tida pelos mestres da escrita criativa como uma falha grave na produção ficcional, salvo quando há um objetivo útil para o desenvolvimento da trama. Nesse sentido, os episódios dos três sabiás, do assanhaço e do pescador Zé Tibiriçá, não têm qualquer vínculo direto com o enredo, de modo que mesmo sem eles o conto manteria a sua estrutura lógica e inteligível. Inobstante isso, tais digressões servirão ao leitor como equipamentos de imersão.
Boa leitura!
Esta história [TM1] é uma verdade verdadeira, daquelas que quando eu conto na roda de amigos muita gente desenha no rosto um ponto de interrogação, tudo por conta da minha injusta fama de possuir uma cabeça cheia de invencionices. Os mais céticos afirmam que, se realmente tal episódio me ocorrera, tudo se resume a uma sequência de fatos independentes e o verniz extraordinário da narrativa é mero fruto da minha superstição, característica majoritária de quem nasce e mora em cidade pequena, no interior.
Meus amigos estão cheios de certezas, enquanto eu me mantenho atento aos tantos mistérios desse mundo, com a curiosidade de uma criança, que tudo espia. Quem me der o orgulho de ler este relato, tire a sua própria conclusão sobre a veracidade e a natureza dos fatos. Eis que...
Para quem, igual a mim, viveu a adolescência nos anos 1990 no interior de São Paulo, divertia-se à solta pelas poucas ruas das cidades pequenas, bem como se aventurava nos campos rurais da redondeza, seja pescando de varinha nos rios, córregos e represas, ou caçando passarinhos nas matinhas, cafezais, milharais etc.
Nessas circunstâncias e nessas paisagens características do meio caipira, quando eu tinha quatorze anos de idade o meu amigo e companheiro de rupestres aventuranças era o Gersão, o melhor atirador de estilingue que vi atuando naquelas gloriosas épocas.
O hábil Gersão, predador nato da incauta avifauna, também atirava pedra eximiamente com a mão, mantendo a boa mira e a força fatal no arremesso. A munição variava conforme as possibilidades materiais acessíveis no momento: pedra, goiaba, manga, torrão de terra, pedaço de telha, bloco e tudo o mais que coubesse na palma da mão.
O objeto lançado pelo Gersão avançava assobiando contra o ar, percorrendo o trajeto até o alvo com violenta velocidade, de tão fulminante que era o arremesso manual do meu amigo. Se lhe tivessem dado oportunidade e treino, ele poderia muito bem ter sido atleta olímpico de arremesso de peso, pois força e aceleração lhe sobejavam. Provo facilmente o que afirmo sobre o Gersão e não me faltariam testemunhas se acaso o meu relato fosse objeto de alguma investigação acadêmica.
Como sei, de antemão, que o eventual leitor dessas linhas é justo e não tem o costume de desconfiar de quem tem coragem de lhe narrar fatos da própria vida, estou convencido de que só o meu relato basta para sustentar a veracidade dos eventos aqui narrados, na maior das sinceridades. Veja, pois, os detalhes.
Numa feita de final de período escolar, voltávamos para casa felizes e inocentes, quando eu e o Gersão avistamos, dentro do quintal do senhor Angelim, três sábias, distraídos, na copa de um mamoeiro, cujo tronco subia rente ao muro. O trio debicava o fruto de polpa suculenta, festivos como a gente fica na sagrada macarronada de domingo.
Um inocente de um assanhaço quis participar do banquete, veio planando de outra banda e aterrissou elegantemente no meio da sabiazada, que lhe recepcionou rudemente. A pancadaria para cima da ave azul foi grande, pois os sábias bateram no intrometido impiedosamente; encheram-lhe de golpes: bicadas múltiplas, arranhões de garrinhas afiadas e estocadas de asas posicionadas em ponta de lança. O sanhaço, mesmo estropiado, mostrou-se ligeiro, porquanto conseguiu se safar dos seus três agressores. Cambaleante e soltando pequenas penas pelo ar, escapuliu-se até alcançar um galho de uma laranjeira, a poucos metros do mamoeiro.
Qualquer pessoa que viesse a vê-lo naquelas condições, todo desconjuntado, o peitinho parcialmente descoberto de pena, e abrindo e fechando o seu bico de tanta dor, imediatamente passaria a odiar os sabiás maldosos. Por outro lado, não deixaria de se espantar com a imprudência da ave surrada. Deu bobeira a avezinha cor do céu, pois os sábias, em grupo, ficam valentes, ferozes, podendo matar um homem, como a antiga história do trágico falecimento do pescador Zé Tibiriçá, encontrado morto no jaboticabal da Remanso. A morte do pescador não tem nada a ver com a minha história, entretanto, sabendo que todo leitor é curioso e detesta fatos mencionados sem o devido esclarecimento, contarei o que eu sei a respeito da tragédia que deu cabo do pobre homem.
O cadáver do Zé Tibiriçá foi encontrado todo perfurado e coberto de penas. Em volta do seu corpo havia uma dezena de sabiás mortos; alguns decapitados, outros tantos rasgados ao meio. Esses macabros detalhes apontam a horrenda luta travada entre o pescador e a sinistra turba de pássaros, pois, na ocasião, os moradores da Remanso disseram ter visto uma enorme nuvem de aves se afundando entre as jabuticabeiras, e então ouviram gritos humanos de terror, som de farfalho e estrondo de galhos se chocando, até que a infernal batalha se findou com um canto coletivo dos sabiás, em tom lúgubre que mais parecia uma orquestra de urutaus; depois, o silêncio absoluto, gerando aquela desagradável percepção da presença da morte.
Certamente, o assanhaço espancado no mamoeiro não ficou sabendo da tragédia do Zé Tibiriçá, pois se soubesse não teria se aproximado dos sabiás com tanta imprudência e petulância. Que surra levou! Fiquei comovido e julguei que os sábias mereciam uma boa lição.
No quintal do seu Angelim a confusão dos sábias nos prendeu tanto a atenção, que parecia uma deliberada provocação. Tudo tem limite, pensei. “Ei Gersão, quando a gente tá com os estilingue eles não provoca nóis”. O pragmático Gersão se agachou e pegou um pedaço de telha jogado na calçada. “Vou mostrá como si fais”.
Eu pude ouvir o ruído ventoso que o movimento do seu braço fez para o arremesso. Dos três sábias, dois caíram para o lado da calçada, atordoados. O terceiro, ficou com o corpo afundado na polpa do mamão, só com a perninhas magrinhas para fora. Gersão então subiu no muro e pegou a ave pelas canelazinhas, igual se segura entrededos palito de picolé. O passarinho saiu com a cabeça toda coberta por um pedaço de mamão, cujo aspecto lembrava uma abóbora de Halloween. Quem testemunhou a proeza do Gersão custou a acreditar que aquilo fosse possível, “derrubar três pássaros numa pedrada”.
Antes que o consciente leitor me repreenda por absurda prática, confesso ter me arrependido de um dia ter caçado passarinhos, por isso acho muito melhor hoje as crianças e adolescentes brincarem de vídeo game e usarem seu tempo livre para a prática de ações que contribuam para o seu desenvolvimento pessoal. Por sorte, o ser humano evolui e, na época, nem passava por nossa cabeça de adolescente interiorano a covardia praticada. Hoje, no entanto, só de ver um passarinho na gaiola me incomoda e me entristece sobremodo.
Não é a perspicácia e a técnica de arremesso do Gersão que me fizeram escrever, entretanto, o episódio dos três sabiás serve para contextualizar os costumes daqueles nossos tempos, nem tão inocentes como alegam os poetas versando a infância. Enfim, o relato que prometi lançar em páginas se deu numa dessas tardes de estilingadas. Vamos ao ponto.
Sábado à tarde, o sol reinava furioso no céu esvaziado de nuvens, e o vento parecia ter se divorciado do mundo. Eu e o Gersão caminhávamos sorrateiros entre as árvores da matinha do Morro do Bembão, atentos a qualquer farfalho de galhos que indicasse a presença de passarinhos.
Nada se agitava à nossa volta e não me lembro sequer de ter ouvido, por um bom tempo, o zumbido de uma abelha ou o canto de um grilo. Se não fosse o estralo dos galhos secos pisoteados por nós eu poderia ter me sentido acometido de perda auditiva. A gente nem se falava pelas trilhas, como se estivéssemos a par de algum voto de silêncio com a natureza.
Caminhamos da cidade até a mata empolgados e nem percebemos o esforço de ter percorrido três quilômetros sob o sol castigando. Depois, na mata, aquele silêncio, o sumiço das aves, nos enchia de contrariedade. Bem que o Gersão tinha sugerido caçarmos na palhada do milharal do Bernardim, mas optamos pela matinha, por minha decisão, e demos azar. Brasileiro não desiste nunca, disse algum homem sábio da nossa nação. Vai que...
Vasculhamos cada árvore, batemos por todo canto do território, andamos por horas pelas trilhas, num vai e vem sem fim, até que, sem sucesso, acabamos por encontrar uma goiabeira cheia de frutas maduras. Estranhamente, não avistamos aves frutívoras se fartando em seus galhos pensos. Famintos, eu e meu amigo colhemos algumas suculentas goiabas, enchendo os nossos bornás de tecido jeans, resto de barra de calça.
Roendo lentamente a casca de uma goiaba, brinquei com o Gersão.
— Sabi o qui é pioir qui achá um bigatu na goiaba qui a genti tá comendu?
— Nam sei, mi fala.
— Achá meiu bigatu hehehe.
Deixamos o pé da goiabeira para trás e pegamos o sentido de uma trilha íngreme que findava no ponto mais alto do terreno, onde havia uma capelinha de oração adornada por dentro com imagens e estátuas de santos, além de um crucifixo pendurado na parede, sobre um pequeno altar de madeira, com verniz fosco e descascado.
Não sei o que me deu na cabeça, mas, passando em frente à entrada da igrejinha, atirei uma pedra para dentro, sentido altar, e despedacei uma Nossa Senhora Aparecida. Minha mãe tinha uma santa igualzinha àquela, que ficava sobre a geladeira de casa. Na hora lembrei disso, mas fiz um esforço para afastar o sentimento de culpa, de vergonha mesmo. Gersão só abanou a cabeça em reprovação, sem nada me dizer, ampliando o mistério do silêncio na mata, de estranhas ausências.
Prosseguimos pela trilha até chegarmos numa mangueira frondosa, de sombra fresca e convidativa. Sentamos debaixo dela para comer as goiabas e descansar as pernas, antes de retornarmos definitivamente para nossas casas, frustrados pela falta de passarinhos.
Sob o frescor da volumosa folhagem, já alimentados, até demos uma pequena cochilada naquele conforto; não existe sombra melhor do que a de uma mangueira de copa larga. Eu sonhava algo muito divertido quando o Gersão me acordou, dando-me sacolejos: “Corre, corre, o tamanduá tá vindo! Corre!”. Ele saiu correndo até alcançar uma árvore e se proteger.
Ainda sonolento, achei que era brincadeira do Gersão, porém, o animal soltou um grunhido que me despertou para a realidade. Era tarde demais, pois me vi encurralado pelo tamanduá avançando sobre mim, em pé, ereto sobre as suas patas traseiras. O bicho agitava os seus membros dianteiros como se tocasse uma sanfona, com suas garras grandes e afiadas para frente, ensaiando o abraço mortal.
Encostado no tronco grosso da árvore, só me restou gritar implorando a clemência do animal furioso, enquanto o Gersão lhe tacava pedras. Nesse meio tempo, avistei, próximo às raízes proeminentes da mangueira, uma garrafa de vidro transparente, quebrada na parte de baixo. Agachei me esticando que nem borracha de estilingue, peguei a garrafa pelo gargalo e fiquei agitando-a para amedrontar o tamanduá. Este não se intimidou e já se encontrava muito próximo de me atingir.
Gersão tentava bravamente espantar o animal, porém, tremendo de pavor, não conseguia acertar as pedras no bicho, embora interrompesse o avanço do tamanduá. Quando eu concluí por meu inevitável fim, pois nem mesmo o certeiro Gersão conseguia atingir o animal feroz, me ajoelhei no chão, mantendo o braço esticado para frente e a garrafa na mão. Eu e a fera nos entreolhamos por alguns milésimos, tempo necessário para que eu vislumbrasse o iminente fim da minha linha.
Entrementes, lembrava-me da imagem que eu quebrara na capelinha uma hora antes, de modo que enxerguei naquele ataque selvagem o meu castigo. Pedi desculpas para Nossa Senhora Aparecida, suplicando-lhe o perdão. Meu ânimo se viu invadido de uma tranquilidade plena; eu não sentia mais medo, e se meus pelos dos braços se arrepiaram naquele momento, não foi por medo, mas sim porque eu soube, no fundo da minha alma, que a santa me concedera o perdão. Assim, pensei aliviado, eu iria para o céu.
Meu amigo, à distância, pelejava com a fera, lhe atirando pedras enquanto implorava a Deus para salvaguardar a minha vida. Senti orgulho e compaixão por ele, que se esforçava incessantemente para afastar o animal de mim. Tentei acalmar o Gersão, falando-lhe, a nosso jeito rústico, porém verdadeiro, de alma escancarada:
— Gersão, tá tudo bem. Sabi, u cê é meu melhô amigu, gostu du cê comu irmão. Eu vô pru céu, e um dia o cê tamem.
Imaginara que o Gersão ia parar de chorar quando me ouvisse, mas aí que o coitado berrou igual a uma pessoa acometida de dor de dente, embora tenha passado a me dizer sobre nossa amizade. Sua voz, aflita, externou-me o seu sentimento verdadeiro, a sua desinteressada estima.
— Eu num queru qui u cê morri, u cê é meu amigu, o melhô. Mi insina tudim as tabuada...faiz os papagaiu e as pipa pra mim!
Gersão me disse aquelas palavras com tamanha emoção que o tamanduá interrompeu a sua investida para espiar quem falava por trás dele. O bicho permaneceu imóvel, observando o Gersão, até o momento em que ele se calou. Ato contínuo, o animal voltou-se novamente para a minha direção, demonstrando não ter abandonado o seu desejo de me ferir, pois retomou a sua anterior posição de ataque, mantendo as suas garras em movimentos ameaçadores. Nem por isso deixei de perceber que a minha mudança de ânimo gerara no bicho um desconforto muito próximo do temor. Ele suspeitava de algo, e a intuição selvagem nunca erra.
Inopinadamente, uma ventania abateu-se sobre a mata, movimentou as copas das árvores e percorreu por entre os troncos. Um sopro veloz veio me acariciar o rosto, dando-me a impressão de ter sido tocado por dedos carinhosos de uma mulher. Os galhos da mangueira agitaram-se, suas folhas distanciaram-se em espaço e tempo necessários para que o raio do sol atravessasse a folhagem até atingir a garrafa na minha mão.
Uma ofuscante irradiação projetou-se do vidro estilhaçado, resultando num feixe de luz da cor do fogo, cuja trajetória, oportunamente, encerrou-se em cheio na face do tamanduá. O animal assombrou-se, parou de grunhir e, amedrontado, baixou seus membros dianteiros ao chão, ficando em posição quadrúpede.
Perturbado pela luz em forma de chama, que lhe afetara os sentidos e a vontade, o animal saiu em disparada mata adentro, atropelando moitas, arrebentando cipós e ignorando barrancos e buracos. Foi-se para bem longe de mim; eu corri para o lado oposto, junto ao meu amigo, que me recebeu com abraços e gargalhadas, de tanta alegria. Agradecemos à Deus e a tudo o que é sagrado, no exato valor de uma grande amizade, que fora preservada mesmo perante aquele fatal perigo, de velório agendado.
Retornamos céleres para as nossas casas e nunca mais caçamos passarinhos. Uma semana depois, minha mãe foi comigo à capela do Bembão repor a imagem da santa quebrada que, assim acreditei na época, milagrosamente me salvara do animal feroz.
Se senti a necessidade existencial de escrever sobre este meu acontecimento é porque ainda não sei, não estou certo em relação àquela tarde, na Mata do Bembão.
Carlos Alberto Oliveira nasceu em Araraquara, interior de São Paulo, no então distrito de Gavião Peixoto, hoje município. Tem 43 anos de idade, e é pai da Eliza e do Leonardo. Apaixonado por literatura, passou a se aventurar na escrita de contos e noveletas. Seu primeiro conto publicado foi O Morro do Diabo, que faz parte da Antologia Vozes da Terra, Editora Publiquei Editorial. Também participou da Antologia Quando a Lenda Ganha Vida, da Editora Sinna, com o conto O Retorno do Saci. Honrosamente, seu conto TARSILA, para além do bem e do mal faz parte da Antologia Resilientes, Editora Rico. Por fim, seu conto O que será está na Antologia Sob o Signo da Morte, editora Arca Literária.
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