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Onde reside o amor

Qual o rosto do amor?


Onde se pode encontrar um sentimento tão puro?


Pergunto-me isso todos os dias. Sempre que eu acordo e me levanto, eu me pergunto onde posso encontrar uma bela e pura manifestação desse sentimento. Essa manhã não foi diferente, levantei, observei a rotina da cidade pela janela e saí.


A rotina é cansativa e estressante, eu me sinto sozinha, mesmo estando rodeada de pessoas. Sinto falta de algo que nem sequer conheci, ou provei. Trabalho como atendente de telemarketing numa empresa relativamente grande na cidade de São Paulo, ouço todo dia pessoas insatisfeitas e as deixo ainda mais insatisfeitas a mando da empresa, tentando vencê-las pelo cansaço para que não cancelem o serviço. Passar todos os dias pela mesma rotina é exaustivo física e psicologicamente.


Mas, que escolha eu tenho?


As pessoas devem trabalhar, devemos ser independentes e colher nosso sustento, toda aquela coisa de comer do seu suor, o tipo de coisa que faz a gente se desesperar e procurar um emprego qualquer, para ter um dinheiro qualquer na conta, a qualquer custo, como eu.


Atender, desligar, às vezes conversar e brincar com um colega ou outro no trabalho. Quando finalmente o sol se pôs e já eram cerca de seis da tarde, eu pude me levantar, dar adeus aos meus colegas de trabalho, bater o cartão e sair da empresa. Infelizmente as conduções estavam em greve, sendo assim eu tinha que caminhar. Apesar de ser um pouco distante, o caminho não era tão perigoso e eu não tinha muito a perder. Após caminhar cerca de vinte minutos, finalmente cheguei ao meu bairro. Minha casa ficava somente a algumas ruas de onde eu estava.


Estava próxima a um cruzamento quando ouvi um gemido, era fino, baixo e choroso. Não parecia ser humano, mas expressava uma tristeza que eu jamais havia visto, nem mesmo dentro de mim.


Continuei caminhando, mas desacelerei um pouco. Olhei ao redor e vi um pequeno movimento num canto à esquerda. Observei melhor e vi orelhinhas pretas e um focinho branco, que estava meio sujo e com alguns machucados. E lá estava ele, ao lado de uma construção abandonada, o pequeno filhotinho chorava ao lado da sua mamãe, que não respirava mais.


Tentei me aproximar, meu coração estava partido por conta do filhote. Mas quando notou minha presença, o pequeno cachorrinho correu, sumindo entre os restos da construção. Suspirei pesadamente e me afastei, voltando a caminhar em direção a minha casa. Naquela noite não dormi tão bem quanto queria e, quando resolvi levantar para ir trabalhar, passei novamente pela construção abandonada, mas não havia sinal do pequeno cachorrinho.


Cheguei à empresa, atendi, desliguei, conversei com pessoas ainda mais estressadas que eu, brinquei com alguns colegas de trabalho. E no final do dia a mesma coisa, com uma modificação: passei num petshop ao invés de pegar a condução e comprei um pouco de ração para filhotes.


Será que ele estaria lá?


Não podia negar que meu peito doía ao imaginar o pequeno cachorrinho ao léu durante a madrugada, então talvez um pouco de comida o agradasse. Quando passei pela construção, ouvi o som das patinhas correndo, se escondendo provavelmente. Deixei a ração no chão num local com um pouco de cobertura e segui meu caminho, voltando para casa.


Mas ainda me sentia angustiada.


No dia seguinte novamente me levantei, fui ate a empresa, atendi, desliguei, brinquei com os colegas e no fim do dia lá estava eu, passando novamente no petshop e pegando um pouco mais de ração. Instantes depois estava na construção, ouvindo os sons das patinhas correndo. Vi que a ração do dia anterior não estava mais lá, coloquei a nova ração e fui embora em seguida. Isso se repetiu por mais de duas semanas, vez ou outra o pequenino me encarava de longe, meio escondidinho atrás de alguma pedra, e levar a comida dele se tornou minha atividade adicional. Mas dessa eu gostava, apesar de não querer admitir.


Numa certa noite, eu estava me aproximando da velha construção em ruínas onde morava o pequeno cachorrinho, estava frio e a chuva estava começando a cair levemente. Eu estava voltando a pé, o que se tornou comum desde que comecei a trazer comida para o cachorrinho. Usava o dinheiro da passagem para lhe comprar a ração. Nessa noite eu ouvi novamente as patinhas correndo, mas dessa vez elas não se distanciavam, pelo contrário, vi a pequena silhueta na escuridão, se aproximando cada vez mais e logo pude ver, pela primeira vez, os olhinhos escuros me encarando.


Quando eu o vi senti meu coração se aquecer de uma forma que jamais havia sentido, seus olhos brilhavam e eu podia jurar que ele estava sorrindo. O cachorrinho se aproximou e pulou em minhas pernas, senti meus olhos se encherem de lagrimas e num choro silencioso eu me abaixei, começando a acariciar seu pelo macio. Aquele, sem duvidas alguma, era o rosto do amor, ali, naquele momento, eu o conhecia pela primeira vez em sua forma mais pura.


Como um ser tão pequeno pode responder todas as duvidas que habitavam em mim? De alguma forma eu pude ver naqueles olhinhos um sentimento que eu jamais havia visto ou sentido em nenhum outro momento e toda a falta foi preenchida em questão de segundos. Não deixei a ração naquela noite. Peguei-o no colo e ele se aconchegou a mim enquanto eu caminhava. Quando cheguei ao meu apartamento coloquei-o no chão, e ele agiu como se aquela fosse sua casa desde que nascera. Coloquei sua comida perto da cozinha. Dormi um sono de paz aquela noite, o pequeno cachorrinho, a quem chamei carinhosamente de Agaphe, se aconchegou ao meu lado da cama.


Então, desde aquela noite, o amor passou a residir na minha casa e olhar para mim com seus olhinhos brilhantes todos os dias.



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