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Pesos e Plumas

As flores estavam esturricadas e o marido na cama. Dona Carolina não mais se encontrava. Retiraram o corpo do quarto e o levaram para a perícia.

 

Agatha chegava do trabalho. A tia, que aparecera subitamente pedindo para ficar uns dias com a sobrinha depois de perder o marido, estava na sala assistindo atenta ao noticiário. Ao ouvir o ruído da porta se abrindo, desligou o televisor.

— Querida, acho que vou deixar que você resolva a venda do apartamento pra mim. Sinto que enquanto continuar em São Paulo não vou esquecer o Dário.

— E pra onde tu pensa em te enfiar, tia? Melhor que fique aqui mais um tempo. Acho que vou te apresentar pra dona Angelines do 71, ela gosta de flor igual a senhora. O apartamento dela é quase uma selva.

— Não. Preciso sair urgentemente daqui.

— Oxe, o que deu na senhora? A cama não está boa não? — Brincou a sobrinha.

— Eu não quero continuar aqui. Vou pro Paraná.

— Caçar o que no Paraná?

— Não sei. Talvez o barulho das cataratas me faça parar de ouvir a voz do Dário na minha cabeça dia e noite.

Na mesma noite a tia organizou suas malas, pegou seu travesseiro, que trouxera da antiga casa, vestiu o xale preto e seguiu para a rodoviária. Agatha ainda insistiu para pelo menos esperar para comprar uma passagem de avião, mas a tia pôs o medo de altura como imposição.

Despediu-se da sobrinha e seguiu viagem. O travesseiro na mão, como um parceiro de aventuras. A fronha florida escondia uma outra fronha, branca, entre a primeira e o tecido que envolvia as plumas.

 

Dois dias depois, um primeiro interessado no apartamento da tia. Agatha chegava ao prédio a fim de aguardar o comprador, quando avistou a fita zebrada na porta. Voltou à portaria.

— O apartamento da minha tia está interditado por quê?

— Moça, pelo que o meu colega da noite me informou, é coisa da polícia.

Sentou-se no hall e ligou para Mello Sá.

— Tu sabe de alguma ocorrência no Edifício Maia?

— Sim, por quê?

— Porque ocorreu no apartamento da minha tia.

Em menos de dez minutos Agatha estava na sala do delegado.

— Sua tia? E ela não te contou que seu tio foi assassinado?

— Não, ela disse que eles estavam de viagem pra terra da família dele e foi um infarto fulminante. Não éramos muito próximas, a família da minha mãe acho que nunca gostou da adoção. Nunca me senti parte com eles. Eu até estranhei ela bater na minha porta e pedir apoio.

— Ela está na sua casa? — Indagou Mello Sá.

— Se descambou pro Paraná há dois dias. Ainda insisti pra ela ficar.

— Ela precisa voltar. Seu tio foi encontrado morto na cama. Os peritos desconfiam de asfixia depois de uma dose forte de sonífero. Você saberia dizer algo sobre ele?

— Eu o via pouco também. Mas os dois estavam sempre juntos nas poucas vezes. Era médico, trabalhava o tempo todo.

— Você tem como falar com ela?

Agatha pegou o telefone e fez várias tentativas de ligação. Nenhuma atendida. Entraram no carro e foram ao apartamento. No caminho, Mello Sá telefonava para o perito.

Entrando no quarto, Agatha foi chegando próximo à cama, quando pisou em algo. Agachou-se e percebeu o papel. Passagens rasgadas. O perito, após realizar os registros fotográficos do achado, pegou os pedaços e tentou remontar, como um quebra cabeças.

— Paraná.

— Pelo visto ela não queria fazer essa viagem sozinha.

— Mas por que não foram? — Questionou o perito.

— Falta de tempo? De vontade de um deles?

— Trabalho. — Concluiu Agatha.

— Eram aposentados, não?

— O jaleco dele está em cima da maleta, em cima da cômoda. — Observou Agatha.

— Então, pelo visto, ela queria ir mas ele não estava a fim de deixar o jaleco.

— E ela rasgaria as passagens por não convencer o marido a ir?

— Nunca vi tia Carolina ter essas impulsividades. E olha que ela e minha mãe sempre brigaram muito nos poucos encontros. Minha mãe dizia que ela era rancorosa demais. Não esquecia nada.

— Talvez não fosse a primeira vez que tentasse essa viagem. — Sugeriu o perito.

— Ele não tinha cara de que curtia férias.

— Vou entrar em contato com a polícia do Paraná. Eles precisam nos ajudar a encontrar dona Carolina.

 

Os dias se passavam e a distância de dona Carolina parecia só aumentar. Ela sumira do mapa dos policiais paranaenses. Até na Argentina foi procurada.

— Talvez nem tenha botado os pés nas cataratas.

— Acho que era um destino antigo, não deixaria de ir. — Falou Agatha.

Nesse momento, um dos investigadores entrou na sala de Mello Sá.

— Delegado, tem uma senhora aqui querendo falar com o senhor.

— Mande-a entrar.

Agatha virava-se para sair da sala quando deu de cara com a senhora entrando.

— Tia Carolina?

— Querida, não vou mais ficar na sua casa nem na minha. O delegado vai saber onde me colocar.

— Tia, que loucura é essa? Isso tudo só pra ver as cataratas?

— Meu avô sempre disse que um brasileiro não podia morrer sem ver o Cristo Redentor, o Parque do Ibirapuera e as Cataratas do Iguaçu. Eu perdi as contas das passagens perdidas pro Paraná. Nunca conseguia ir. O Dário nunca largava um hospital.

— E por que a senhora não foi sozinha?

— Ele nunca deixou. Sem ele eu não podia nem visitar parente em Campinas. Ele nunca tinha tempo. Vivemos a vida inteira assim, até envelhecer e continuarmos sem paz, sem tempo, sem fazer nada. Não suportei mais um par de passagens rasgadas. Tinha dito pra mim mesma que seriam os últimos pares de passagens que comprava.

— Dona Carolina, a senhora está confessando que matou seu marido?

— Não queria. Levei esse tempo todo pra conseguir me livrar de uma prisão, não queria cair em outra. Mas a voz dele não saía da minha cabeça. Além do mais, melhor poupar o trabalho de vocês, tem mais gente pra prender.

— Não é bem assim, dona Carolina.

— Eu ainda queria fazer muita coisa, mas o perdi na volta.

— O que?

— O travesseiro. Era o único jeito de levar o Dário comigo. Levando onde ele deu os últimos suspiros.

 

Capixaba natural de Ecoporanga, atualmente residindo em Feira de Santana-BA; estudante de Pedagogia, escreve desde criança. Apaixonado por café, criança, história, arte e cultura brasileira. A Arte de Viver foi sua primeira novela publicada, além da coletânea Contos Oh! Ríveis, de humor, estando presente em coletâneas de contos e poemas do Projeto Apparere e contos disponibilizados na Amazon.

O gênero policial vem sendo seu novo foco na escrita, explorando a temática familiar, um prato cheio para discutir as relações da sociedade e refletir sobre as atitudes passionais.

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