top of page
Foto do escritorMaurylia Loureiro

Prato principal

Era domingo, dia do típico almoço em família. Pelo menos uma vez por mês meus tios e meus pais se reuniam na casa da minha avó, Teresa, em Dom Cavati, interior de Minas. Não morávamos tão longe dali, duas horas de carro, talvez. De qualquer forma, valia o esforço. Chegávamos perto das 10 da manhã, ajudávamos na preparação do almoço e continuávamos a festa até anoitecer.

Com meu refrigerante na mão, já cansada de tanto brincar com meus sobrinhos e jogar conversa fora com as minhas tias, parei para observar a família linda que éramos. Meus tios, dois deles, estavam abraçados cantando um modão sertanejo e segurando latinhas de cerveja. Meus primos adolescentes, rindo, filmavam e postavam nas redes sociais. Ninguém poderia duvidar do carinho mútuo entre todos nós. Nossa história seria perfeita, se não fosse pelo meu bisavô.

As histórias sobre ele eram contadas com uma reverência assustada. Diziam que Alceu tinha um jeito dócil, até ser tomado por uma extrema fúria e desaparecer por dias. Minha avó gostava de dar os detalhes sobre sua aparência, quase esperando que nós o reconhecêssemos caso o encontrássemos na fila do pão: a estatura era mediana, um metro e setenta, talvez; os olhos, quase pretos, pareciam olhar dentro da sua alma; usava sempre uma barba por fazer; seus cabelos eram crespos e curtos, da cor castanho-escuro; gostava de usar calça de linho branca e sandálias, sua camisa preferida era uma azul sem o terceiro botão; carregava sempre sua peixeira na lateral da calça.

Meu bisavô era um assassino que matava por puro prazer e tinha pacto com o demônio. As histórias iam desde uma simples facada até a retirada da pele do rosto de um homem que sorriu para a minha bisavó, mas todas acabavam da mesma maneira: uma perseguição policial frustrada onde Alceu fugia por algumas centenas de metros e, de repente, desaparecia após invocar o diabo.

Protegido pelo pacto, ele voltava para casa tranquilamente, assobiando durante o trajeto. Ao chegar, beijava os filhos, elogiava o jantar e brincava de boneca com a minha avó, sua única menina. Isso durava alguns dias, até Alceu ficar completamente diferente, sumir, matar algumas pessoas e voltar tranquilo para a família, como de praxe.

Eu amava os almoços de domingo na casa de minha avó, mas sempre me lembrava dessa mancha no nosso passado e isso me causava pesadelos durante a noite. Neles, o homem que Teresa descrevia, meu sinistro bisavô, aparecia sentado junto à mesa de domingo. Em flashes, o almoço passava de comidas preparadas com carinho a uma espécie de altar onde várias crianças estavam amarradas e ensanguentadas enquanto minha família conversava e ria.

Cética, nunca acreditei que pudessem ser presságios ou algo assim. Era somente minha mente trabalhando para me causar insônia. Porém, naquela noite, um detalhe no pesadelo me deixou arrepiada: havia mais uma criança, meu sobrinho mais novo, ensanguentada na mesa, e eu, que nunca antes havia participado do altar, estava rindo com uma felicidade genuína sujando minhas mãos de sangue e esfregando na minha própria barriga.

Acordei com náuseas, aquela cena parecia real demais. Depois de vomitar, voltei para o quarto, acendi a luz e sentei na cama com o notebook no colo. Eu precisava tirar aquela imagem da minha cabeça.

A série de comédia não estava funcionando, muito menos os vídeos engraçados da internet. Minha intuição mandava eu procurar alguma coisa no guarda-roupas que ficava no quarto de hóspedes. Tentando fazer o mínimo de barulho, revistei as cinco portas e não encontrei nada além de toalhas e roupa de cama. Parei, respirei fundo e alonguei o pescoço. Com este movimento, vi a alça de uma bolsa atrás de um edredom na parte mais alta do móvel.

Era uma bolsa de fotos de família, que eu nunca tinha visto antes, e em todas haviam crianças que eu não conhecia. Ou achava que não. De repente, meus pesadelos vieram à tona. Trêmula, apoiei-me na porta do guarda-roupa e soltei um grito ao ouvir minha mãe me chamar com uma expressão de horror no rosto.

Ela me perguntou o motivo de eu estar mexendo naquelas coisas às duas da manhã. Contei o sonho e posso jurar que vi a sombra de um sorriso nos lábios dela. Com um longo suspiro, minha mãe começou a contar mais uma das histórias de meu bisavô.

Segundo ela, minha bisavó, Rute, queria muito ter uma filha. Ao engravidar pela quinta vez, fez promessas e promessas para que nascesse uma menina, mas foi em vão. Após dar à luz, Rute não conseguia nem olhar para o filho recém-nascido. Sentia raiva, nojo e frustração a cada vez que deveria amamentá-lo. Alceu, vendo o comportamento da esposa, fez mais um acordo com o demônio. Ele sacrificaria seu filho mais novo se nascesse uma menina na próxima gravidez. Não demorou muito tempo para Rute engravidar novamente e nascer Teresa. O menino, que nem chegou a receber nome, foi sacrificado em algum lugar nos matagais de Dom Cavati. Desde então, quando uma das mulheres da família engravida pela primeira vez, a última criança a nascer morre subitamente. Essa é a nossa maldição.

Eu não sabia o que pensar. Perguntei sobre as crianças das fotos.

— Umas morreram atropeladas, outras pegaram alguns tipos de vírus, doenças. Não se preocupe com isso, meu amor — ela disse, acariciando meu cabelo. — Depois a gente conversa melhor. Você precisa dormir.

— Eu vou, mas… senti vontade de rezar pelo Gabriel. Não gosto desses sonhos.

— Deixa de bobagem! — Ela disse com os olhos arregalados. — Nós nunca fomos religiosos, e, até onde eu sei, você não acredita em nada. Vai rezar pra quem? São Isaac Newton? — riu, mas percebi que ainda estava tensa.

— Não sei... O que me deixa apavorada é que não consigo encontrar uma lógica entre os meus sonhos, nos quais essas crianças aparecem, e essas fotos. Como eu poderia sonhar com elas se eu nunca as vi?

— Claro que existe uma conexão, sua boba! Quando você era criança, adorava ver fotos. Espalhava pelo chão, tentava organizar e recortava algumas pra colar no seu caderno, lembra? Essas são preciosas demais, guardei pra não correr o risco de estragá-las, mas você brincou com elas algumas vezes. — Olhou para as fotos e expirou, parecendo contrariada. — E até onde sabemos, isso tudo pode ser uma terrível coincidência, não uma maldição.

Confesso que senti certa calma. A explicação era razoavelmente lógica. Porém, durante a semana, uma sensação incômoda de desconfiança e medo tomaram conta de mim. Procurei pelas fotos outra vez, mas não as encontrei. Não quis perguntar onde estavam, minha mãe se tornou um tanto ríspida e distante. Aproveitei todos os momentos sozinha em casa para fazer a minha busca e em todos eles fracassei. Não entendi o motivo de tanto segredo.

Na sexta-feira, quando cheguei do trabalho, às cinco da tarde, vi duas bolsas de roupa na sala. Meu pai disse que iríamos para Dom Cavati outra vez, uma reunião de família extra. Eu não queria ir, mal havia me recuperado da última visita.

Peguei a bolsa que estava com as minhas roupas e a coloquei no meu quarto. Meu pai, gritando, tomou a mala e a jogou no carro. Ao passar por mim, minha mãe sussurrou um enigmático “em breve você entenderá tudo!”. Entendi que eu não tinha liberdade de escolha naquele momento.

A viagem foi tudo, menos agradável. Os enjoos voltaram, por isso tivemos que parar três vezes no acostamento para eu vomitar. Depois da última vez, recebi um lembrete do aplicativo que eu usava para monitorar minha menstruação. Estava uma semana atrasada.

Senti todo o meu sangue gelando, meu coração quase parou. Uma gravidez indesejada já seria horrível, mas, e se a maldição da minha família fosse real? Isso significaria que… Não! Eu não podia acreditar nessa história de atropelamentos e doenças inexplicáveis. Minha intuição, porém, ainda apontava um sentido diferente, ainda havia alguma coisa em minha mente que eu não entendia.

Antes de chegar ao doce lar da vovó, pedi para pararem o carro. Precisava respirar. Me deixaram algumas ruas antes e seguiram. Naquela cidade, os comércios ficavam abertos até as nove da noite nos finais de semana. Comprei o teste de gravidez na farmácia, tentando conter a ansiedade. Eu faria aquilo em casa, sem dúvidas. Tentei prestar atenção nos sons e cheiros, a fim de regular os batimentos cardíacos.

Um cheiro bom vinha da padaria. Muitas mesas estavam dispostas na calçada e as pessoas chegavam para tomar assento. Curiosa, aproximei-me. Li em um cartaz que aconteceria o sorteio de um leitão assado. Sorri. Cidades pequenas tinham eventos estranhos.

Entretanto, olhando mais atentamente, aquele formato do prato a ser sorteado se tornou um gatilho para uma lembrança enterrada fundo demais.

Minha irmã mais nova.

Tentei manter o ritmo da caminhada, mas minhas pernas pareciam se atropelar de tanta pressa. Corri para a casa da minha avó, o ar gelado de julho fazia minhas narinas arderem. A lembrança se passava como filme na minha cabeça, de novo e de novo e de novo. Eu só queria esquecer.

Abri o portão. Meu coração batia mais forte do que nunca. Dezenove anos atrás, naquela mesma casa, eu a vi. Eu tinha uma irmã, meu Deus! Ela tinha dois ou três anos. Era pra eu estar dormindo, mas acordei com uma gargalhada de alguém que não conhecia. A porta da cozinha estava entreaberta. E eu a vi.

Pelos carros estacionados, sabia que meus tios e minha irmã mais velha também tinham chegado para a reunião. Entrei na casa e parei no corredor, tive medo do que encontraria à frente. Passei a mão na minha barriga desejando não ter nenhuma vida ali. Uma voz quebrou a minha concentração.

— Aline, não nos deixe esperando. Não vamos comer você — e deu uma gargalhada. Aquela gargalhada.

Trêmula, dei alguns passos à frente. Eu sabia o que encontraria. Não queria olhar para a mesa.

Vi, de relance, a sombra do homem que estava à cabeceira da mesa. Meu bisavô. Não era a silhueta de um ser humano. O encarei e, por um momento, ele se mostrou para mim: tinha cascos de cavalo onde deveria ter pés; as pernas eram quase humanas, mas tão finas que pareciam não suportar todo o peso daquele ser; os joelhos se dobravam para os lados; o tronco lembrava o corpo de um porco; os braços seguiam a mesma estrutura das pernas; nas mãos, dedos pontiagudos terminavam em unhas afiadas; a cabeça era de humano. Alceu não fez pacto com o diabo, ele era o próprio diabo. E nós éramos seus descendentes.

Passando os olhos pela mesa, percebi o brilho demoníaco no olhar de cada familiar meu. Me detive no prato principal. Gritei com toda a força dos meus pulmões. Meu sobrinho, tão pequeno, ali, morto, assado como um animal. Minha irmã o olhava com um apetite pavoroso. Não existia amor naquela família.

Tentei correr, mas minhas pernas falharam e minha cabeça rodava. Minha irmãzinha, meu sobrinho. Quantas crianças tiveram aquele mesmo destino? Os dedos pontiagudos agarraram meu braço.

— Você é uma de nós! Você vai honrar o seu sangue! Você vai tomar do seu sangue!

Meu bisavô me jogou no chão da cozinha, olhei suplicante para minha mãe. Alceu alcançou uma taça com o líquido viscoso e ameaçou derramar em mim, na minha boca. Teresa forçava meu maxilar para baixo enquanto o resto da família emitia zumbidos ansiosos para o início do ritual que me transformaria em uma deles. Eu me contorcia em completo desespero no chão.

Alceu inspirou fundo, fechou os olhos e começou:

— O sacrifício foi aceito.

— Sanguis! — minha família disse em uníssono.

— O mais tenro sangue foi derramado.

— Sanguis!

— A descendência será...

— Ela foi batizada! — minha mãe gritou.

— O quê?! — Teresa levantou a cabeça com horror no rosto.

— Ela foi batizada — repetiu com calma. — Não vai passar pela transformação.

— Sandra, o que você está dizendo? — Meu pai perguntou.

— Eu a levei para a igreja poucos dias depois de nascer, pedi oração ao padre, ele quis batizá-la nas águas. — Teresa se levantou com uma rapidez que não condizia com a idade e estapeou o rosto da minha mãe. — Eu não queria perder mais um filho, eu não podia arriscar! Eu teria batizado a Verônica também, mas você — se virou para o meu pai — não me dava espaço, não me deixava sair de casa. Eu a perdi e a culpa é sua! — gritou.

Talvez houvesse uma faísca de amor no meio daquela podridão.

Alceu me soltou, quase enojado, e jogou a taça longe. Vi quando minha mãe sussurrou “corre” para mim. Obedeci. Pelo canto dos olhos, vi toda minha carinhosa família gritar e atacá-la.

O diabo repetia “você nos profanou” em um tom grave enquanto os gritos desesperados da minha irmã, que parecia ter saído daquele transe infernal, pelo filho perdido ecoavam pela casa. Não tive coragem de olhar para trás. Bati o portão e corri em direção à igreja mais próxima. A missa ainda não tinha acabado.

Sentei-me no último banco, tremendo, tentando pensar no que fazer além de me jogar aos pés do padre e implorar que ele me ajudasse a limpar minha alma.

Minha mente dava voltas e voltas e a perturbação era tanta que não vi a missa terminar. Só me dei conta quando uma mão gentil apertou meu ombro. Era o padre. Joguei-me aos seus pés, soluçando de tanto chorar.

— Eu sei quem você é — ele disse com firmeza. Olhei para cima, assustada. — Estava te esperando.

Não consegui formar uma frase coerente, gaguejei palavras aleatórias. Ele, percebendo minha confusão, segurou meu rosto entre as mãos e disse:

— Você é a arma enviada por Deus para destruir o diabo que assola essa cidade há tantas gerações.

Percebi que ele trazia um pequeno frasco com óleo. Molhou os dedos e fez o sinal da cruz em minha testa repetidas vezes enquanto dizia coisas que eu não conseguia entender. Aquilo queimava a pele, ardia os olhos e me fazia gritar.

Eu sentia como se o meu corpo estivesse entrando em convulsão. Como num lampejo, vi Alceu em sua forma demoníaca ateando fogo nas casas ao lado da residência da minha avó. Ele estava furioso. Vi, também, centenas de pessoas, umas sem a pele do rosto, outras com buracos pelo corpo — vítimas de Alceu —, todas com roupas rasgadas e, ao meu redor, instruindo-me. Elas pareciam ainda mais furiosas que ele. Meu colapso terminou quando me vi rasgando a barriga do meu bisavô.

No momento em que abri os olhos, nada doía mais e não havia medo em mim. Eu sabia exatamente o que deveria fazer.

 

Sobre a Autora:

Mineira, formada em Licenciatura em Letras e perseguida pelo número 42 desde a primeira vez que leu “O Guia do Mochileiro das Galáxias”.

Tenho dois minicontos publicados no instagram e na plataforma da Bilbbo e um publicado em uma coletânea impressa da plataforma Sweek, além de ter perfis na própria Sweek, no Wattpad e Spirit Fanfics.


Instagram: @maurylia_m.

13 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


Post: Blog2 Post
bottom of page