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Rasga Mortalha

Atualizado: 25 de set. de 2020

A noite era densa e o pássaro piou na janela de dona Alda, que acordou com o barulho. Imediatamente se levantou procurando o cartão da advogada e ligou.

— Agatha, a Rasga Mortalha passou na minha casa.

— Dona Alda, são duas e meia da manhã.

— Eu sei, numas tinha que te falar isso.

— Eu não sei se a senhora sabe, mas eu sou advogada.

— Eu sei. Estou avisando para ficar atenta à minha morte.

— Dona Alda, o que a senhora tomou antes de dormir?

— Então você não conhece a história da coruja que pia na janela de quem está perto de morrer?

— Conheço, mas é exatamente isso: só uma história. Agora se apruma e vai deitar.

— E os meus bens? Eu não estou doente. Alguém quer me matar pra ficar com as minhas coisas. Eu não tenho herdeiros e todos sabem disso.

— Dona Alda, mantenha a calma.

— Eu venho sentindo olhares diferentes. E se alguém estiver me seguindo? Não posso dormir mais.

— Pode sim.

— E se eu acordar morta?

— Se estiver morta não vai acordar. — Ironizou, desejosa de voltar a dormir —Boa noite.

 

Na manhã seguinte, um novo telefonema.

— Dona Agatha, delegado Mello Sá.

— Bom dia, delegado.

— A senhora é advogada da senhora Alda Maria Simões? Encontramos seu cartão sobre o criado-mudo.

— Sim, sou. Aconteceu alguma coisa?

— Recebemos uma denúncia anônima de barulhos estranhos na casa dela e encontramos um corpo aqui.

— Meu Deus! Mas como assim? É ela?

— Não sabemos. Encontramos seu número nos registros de última chamada e gostaríamos de saber se há algum parente ou se a senhora pode fazer a identificação do corpo.

— Ela não tem parentes próximos que eu conheça, mas posso ir até aí.

A advogada correu para a Vila Madalena. A casa já estava com faixas de contenção na entrada. Um policial na porta logo chamou o delegado.

— Bom dia, dona Agatha. Siga-me.

O corpo estava no canto da sala. As costas rasgadas num corte transversal. O perito, que fotografava o corpo, virou-o com o rosto para frente.

— Essa não é dona Alda.

— Então temos um sumiço, além de um homicídio. Poderia nos explicar por que sua cliente te ligou às duas da manhã?

— Pra dizer que a Rasga Mortalha piou na janela dela.

— Pelo visto ela é supersticiosa — Concluiu o delegado.

— E como!

— Ela tem familiares, parentes próximos?

— Ela é muito solitária, não tem marido, filhos, irmãos.

— E tem algum patrimônio, empresa, aposentadoria?

— Ela tem algumas casas que recebeu de herança dos pais e comprou outras com a renda dos aluguéis. Mas sempre teve uma preocupação imensa com os bens. Nessa última ligação mesmo, queria me avisar pra ficar atenta a sua morte e aos bens.

— Por causa da ave.

— Exatamente.

— E ela tem quantas casas?

— Delegado, ela tem trinta e cinco casas.

— Todas alugadas?

— Algumas. Outras são em outras cidades. Ela só usa quando viaja, diz que só dorme em camas suas.

— E qual dessas não está alugada?

— Aí eu já não sei. Mas posso verificar.

— Quantas casas ela tem em São Paulo?

— Vinte.

Nesse momento um policial chamou o delegado e cochichou algo em seu ouvido.

— Ela tem mais casas aqui no bairro?

— Ela é dona de alguns imóveis num edifício a algumas ruas. Edifício Sandes.

— Encontraram um corpo nesse Edifício.

— Será que está num apartamento dela?

— Vamos pra lá.

Ao entrar no apartamento, confirmado por Agatha como propriedade da idosa sumida, o corpo foi avistado preso à janela. Metade dentro do imóvel, metade pendurado. O zelador que avistou o corpo do térreo e chamou a polícia.

As costas continham um rasgo semelhante ao do corpo anterior. A cintura, pressionada pelos dois lados da janela de alumínio, estava cortada, de modo que a janela adentrava no corpo até atingir a coluna. Era uma mulher raquítica imprensada no quarto andar.

— Esse corpo também não é a dona Alda.

— Precisamos localizar sua cliente, dona Agatha.

 

Durante dois dias Mello Sá e Agatha mantiveram contato, mas sem notícias do paradeiro de Dona Alda. No terceiro dia, o telefone de Agatha tocou novamente.

— Bom dia, dona Agatha. Delegado Mello Sá.

— Eu sei, delegado. Já reconheço sua voz.

— Sinal de intimidade?

— Não. De aperreação mesmo. Brincadeira.

— A senhora, sempre espirituosa. Um prazer falar com a senhora, mas a notícia não é nada prazerosa. Encontramos mais um morto num imóvel da sua cliente.

— Mais um?

— Exatamente. Liguei para as delegacias de algumas regiões dos endereços que a senhora me passou  e houve uma morte no imóvel que ela tem no Bixiga.

— Era a casa dos pais dela. Essa ela não alugava.

— O corpo foi encontrado essa manhã. Estamos indo pra lá, a senhora tem disponibilidade?

— Sim, sim.

Ao abrir a porta da casa, lá estava a idosa. Nua. Os cabelos brancos sujos pelo sangue, os olhos perfurados. As paredes estavam tomadas por escritos, aparentemente feitos com batom.

Agatha começou a ler as palavras. A primeira foi o nome dela. Depois, o resumo das mortes anteriores.

O perito observou o corpo, e viu que a velha ainda respirava.

— É dona Alda.

A idosa acordou, ainda com um ar de tontura. O perito levantou o tronco da senhora que, tateou até sentir o corpo de Agatha.

— É você, Agatha?

— Sim, dona Alda.

— Elas queriam os meus bens.

— Elas quem?

— Todas elas.

— O que aconteceu com a senhora?

— Não verei mais.

— Quem vazou seus olhos?

— A Rasga Mortalha. Eu burlei os avisos dela. Agora não tenho como ver pra me proteger.

Mello Sá chegou perto de Agatha e lhe entregou um pequeno punhal encontrado no chão da sala.

— A senhora tem certeza disso?

— Você acha que estou maluca?

— Não, é que...

O delegado chamou Agatha num canto.

— Provavelmente ela mesma se cegou.

— Eu sei. Acho que ela abilolou mesmo. Precisa de cuidados.

Agatha se voltou a dona Alda.

— Dona Alda, a senhora precisa de atendimento médico.

— Você vai me internar? Acha que estou maluca? Elas vão insistir até me matar... elas querem tudo que eu tenho.

— Elas quem?

— Todas elas. Primeiro a Gilda, a diarista. Consegui me safar e corri pra casa mais próxima que eu tinha, e lá, a inquilina também estava tramando contra mim. Elas querem os meus bens. Vão me matar pra ficar com tudo. Você não pode deixar.

— Calma, dona Alda. Vamos proteger a senhora.

— Elas vão me matar.

— Não vão, estamos aqui.

— Elas já tentaram. Agora sem os olhos não vou mais me defender. Elas iam me matar, iam ficar com tudo que eu tenho. Mas antes disso, eu burlei os avisos e matei elas primeiro.

 

Capixaba natural de Ecoporanga, atualmente residindo em Feira de Santana-BA; estudante de Pedagogia, escreve desde criança. Apaixonado por café, criança, história, arte e cultura brasileira. A Arte de Viver foi sua primeira novela publicada, além da coletânea Contos Oh! Ríveis, de humor, estando presente em coletâneas de contos e poemas do Projeto Apparere e contos disponibilizados na Amazon.

O gênero policial vem sendo seu novo foco na escrita, explorando a temática familiar, um prato cheio para discutir as relações da sociedade e refletir sobre as atitudes passionais.

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