A noite era densa e o pássaro piou na janela de dona Alda, que acordou com o barulho. Imediatamente se levantou procurando o cartão da advogada e ligou.
— Agatha, a Rasga Mortalha passou na minha casa.
— Dona Alda, são duas e meia da manhã.
— Eu sei, numas tinha que te falar isso.
— Eu não sei se a senhora sabe, mas eu sou advogada.
— Eu sei. Estou avisando para ficar atenta à minha morte.
— Dona Alda, o que a senhora tomou antes de dormir?
— Então você não conhece a história da coruja que pia na janela de quem está perto de morrer?
— Conheço, mas é exatamente isso: só uma história. Agora se apruma e vai deitar.
— E os meus bens? Eu não estou doente. Alguém quer me matar pra ficar com as minhas coisas. Eu não tenho herdeiros e todos sabem disso.
— Dona Alda, mantenha a calma.
— Eu venho sentindo olhares diferentes. E se alguém estiver me seguindo? Não posso dormir mais.
— Pode sim.
— E se eu acordar morta?
— Se estiver morta não vai acordar. — Ironizou, desejosa de voltar a dormir —Boa noite.
Na manhã seguinte, um novo telefonema.
— Dona Agatha, delegado Mello Sá.
— Bom dia, delegado.
— A senhora é advogada da senhora Alda Maria Simões? Encontramos seu cartão sobre o criado-mudo.
— Sim, sou. Aconteceu alguma coisa?
— Recebemos uma denúncia anônima de barulhos estranhos na casa dela e encontramos um corpo aqui.
— Meu Deus! Mas como assim? É ela?
— Não sabemos. Encontramos seu número nos registros de última chamada e gostaríamos de saber se há algum parente ou se a senhora pode fazer a identificação do corpo.
— Ela não tem parentes próximos que eu conheça, mas posso ir até aí.
A advogada correu para a Vila Madalena. A casa já estava com faixas de contenção na entrada. Um policial na porta logo chamou o delegado.
— Bom dia, dona Agatha. Siga-me.
O corpo estava no canto da sala. As costas rasgadas num corte transversal. O perito, que fotografava o corpo, virou-o com o rosto para frente.
— Essa não é dona Alda.
— Então temos um sumiço, além de um homicídio. Poderia nos explicar por que sua cliente te ligou às duas da manhã?
— Pra dizer que a Rasga Mortalha piou na janela dela.
— Pelo visto ela é supersticiosa — Concluiu o delegado.
— E como!
— Ela tem familiares, parentes próximos?
— Ela é muito solitária, não tem marido, filhos, irmãos.
— E tem algum patrimônio, empresa, aposentadoria?
— Ela tem algumas casas que recebeu de herança dos pais e comprou outras com a renda dos aluguéis. Mas sempre teve uma preocupação imensa com os bens. Nessa última ligação mesmo, queria me avisar pra ficar atenta a sua morte e aos bens.
— Por causa da ave.
— Exatamente.
— E ela tem quantas casas?
— Delegado, ela tem trinta e cinco casas.
— Todas alugadas?
— Algumas. Outras são em outras cidades. Ela só usa quando viaja, diz que só dorme em camas suas.
— E qual dessas não está alugada?
— Aí eu já não sei. Mas posso verificar.
— Quantas casas ela tem em São Paulo?
— Vinte.
Nesse momento um policial chamou o delegado e cochichou algo em seu ouvido.
— Ela tem mais casas aqui no bairro?
— Ela é dona de alguns imóveis num edifício a algumas ruas. Edifício Sandes.
— Encontraram um corpo nesse Edifício.
— Será que está num apartamento dela?
— Vamos pra lá.
Ao entrar no apartamento, confirmado por Agatha como propriedade da idosa sumida, o corpo foi avistado preso à janela. Metade dentro do imóvel, metade pendurado. O zelador que avistou o corpo do térreo e chamou a polícia.
As costas continham um rasgo semelhante ao do corpo anterior. A cintura, pressionada pelos dois lados da janela de alumínio, estava cortada, de modo que a janela adentrava no corpo até atingir a coluna. Era uma mulher raquítica imprensada no quarto andar.
— Esse corpo também não é a dona Alda.
— Precisamos localizar sua cliente, dona Agatha.
Durante dois dias Mello Sá e Agatha mantiveram contato, mas sem notícias do paradeiro de Dona Alda. No terceiro dia, o telefone de Agatha tocou novamente.
— Bom dia, dona Agatha. Delegado Mello Sá.
— Eu sei, delegado. Já reconheço sua voz.
— Sinal de intimidade?
— Não. De aperreação mesmo. Brincadeira.
— A senhora, sempre espirituosa. Um prazer falar com a senhora, mas a notícia não é nada prazerosa. Encontramos mais um morto num imóvel da sua cliente.
— Mais um?
— Exatamente. Liguei para as delegacias de algumas regiões dos endereços que a senhora me passou e houve uma morte no imóvel que ela tem no Bixiga.
— Era a casa dos pais dela. Essa ela não alugava.
— O corpo foi encontrado essa manhã. Estamos indo pra lá, a senhora tem disponibilidade?
— Sim, sim.
Ao abrir a porta da casa, lá estava a idosa. Nua. Os cabelos brancos sujos pelo sangue, os olhos perfurados. As paredes estavam tomadas por escritos, aparentemente feitos com batom.
Agatha começou a ler as palavras. A primeira foi o nome dela. Depois, o resumo das mortes anteriores.
O perito observou o corpo, e viu que a velha ainda respirava.
— É dona Alda.
A idosa acordou, ainda com um ar de tontura. O perito levantou o tronco da senhora que, tateou até sentir o corpo de Agatha.
— É você, Agatha?
— Sim, dona Alda.
— Elas queriam os meus bens.
— Elas quem?
— Todas elas.
— O que aconteceu com a senhora?
— Não verei mais.
— Quem vazou seus olhos?
— A Rasga Mortalha. Eu burlei os avisos dela. Agora não tenho como ver pra me proteger.
Mello Sá chegou perto de Agatha e lhe entregou um pequeno punhal encontrado no chão da sala.
— A senhora tem certeza disso?
— Você acha que estou maluca?
— Não, é que...
O delegado chamou Agatha num canto.
— Provavelmente ela mesma se cegou.
— Eu sei. Acho que ela abilolou mesmo. Precisa de cuidados.
Agatha se voltou a dona Alda.
— Dona Alda, a senhora precisa de atendimento médico.
— Você vai me internar? Acha que estou maluca? Elas vão insistir até me matar... elas querem tudo que eu tenho.
— Elas quem?
— Todas elas. Primeiro a Gilda, a diarista. Consegui me safar e corri pra casa mais próxima que eu tinha, e lá, a inquilina também estava tramando contra mim. Elas querem os meus bens. Vão me matar pra ficar com tudo. Você não pode deixar.
— Calma, dona Alda. Vamos proteger a senhora.
— Elas vão me matar.
— Não vão, estamos aqui.
— Elas já tentaram. Agora sem os olhos não vou mais me defender. Elas iam me matar, iam ficar com tudo que eu tenho. Mas antes disso, eu burlei os avisos e matei elas primeiro.


Capixaba natural de Ecoporanga, atualmente residindo em Feira de Santana-BA; estudante de Pedagogia, escreve desde criança. Apaixonado por café, criança, história, arte e cultura brasileira. A Arte de Viver foi sua primeira novela publicada, além da coletânea Contos Oh! Ríveis, de humor, estando presente em coletâneas de contos e poemas do Projeto Apparere e contos disponibilizados na Amazon.
O gênero policial vem sendo seu novo foco na escrita, explorando a temática familiar, um prato cheio para discutir as relações da sociedade e refletir sobre as atitudes passionais.
Começamos com o pé direito, quando este foi o primeiro conto publicado. O primeiro texto após o editorial.
Muito boa, a história. A lenda da rasga-mortalha me atrai bastante. Parabéns!
Obrigado a todos 😊
Adorei o texto, e queria continuação! rsrs
O texto me lembrou a pegada de JK Rowling em "O bicho da seda", parabéns!
Começamos com o pé direito, com esse jovem talento! Parabéns!