O céu pesado trouxe leveza ao peito de Tersa. A luz, matiz do entardecer e amanhecer, aquietou-lhe os pensamentos acelerados e arrefeceu o calor do sofrimento. A chuva digitou, no telhado, o consolo que os familiares não conseguiram mensurar pelo WhatsApp. Em sua linguagem inefável, entregou palavras que lhe encheram de um alívio eficaz.
Um luto à queima-roupa, abriu uma chaga que nada conseguia sanar. A companhia dos amigos, mensagens de otimismo, livros de autoajuda, medicamentos e terapias, sequer funcionaram como placebo. Acordava no desespero e dormia na exaustão da dor. Nos últimos quinze dias, refugiou-se na casa que traduzia todo o absurdo para o qual não encontrava resposta. Não havia contado a ninguém sobre ela, seria uma surpresa para eles e suas famílias, assim que chegassem da volta ao mundo que planejaram.
Nenhum detalhe dela era ocasional. Tudo fora programado em função de uma vida cheia de significados. Por ironia, a construtora a entregou antes do prazo, e ela teve que receber logo o projeto autossustentável que desenhou durante anos. A mata preservada, os pequenos geradores eólicos, as placas solares, a mobília feita com madeira reciclada, o enxoval vegano, o quarto com teto para observar as estrelas, a máquina de café expresso, a cozinha com sua pequena horta e a fonte térmica do quintal, até aquela manhã, só lhe falavam de ausência e ruptura violenta.
O vento, cantando nas frestas das janelas e nos canais de ventilação, encheu a casa com tanta presença e sentido, que o sofrimento pareceu um susto do qual se ri. Tudo estava leve e respirava ares saudáveis. A disposição, que havia lhe abandonado há meses, animou-lhe o corpo e a mente, com uma saúde que lhe encheu o âmago e acordou o estômago. Não lembrava a última vez que cozinhara com tanta alegria e criatividade, cantarolou La vie en rose involuntariamente e sorriu quando a máquina de café encheu uma caneca e não uma xícara. Dispensou a etiqueta.
Tomou café defronte à enorme janela da sala, assistindo ao balé da chuva. Sentiu vontade de ser livre como as gotas d'água que valsavam com o vento. Bafejando-lhe o rosto e os cabelos, elas convidaram-lhe a dançar:
— Por que não? Venha, venha sim! — disseram-lhe em sua língua livre e refrescante.
Unidas a ela, correram por seu corpo como pequenos rios que sabiam, com uma precisão divina, quando, onde e como lhe acariciar. Com o espírito de uma criança que simplesmente se entrega, ela deixou pelo caminho os pedaços do casulo e entrou no palco pluvial. Serenamente, as gotas beijaram a sua pele, fazendo correr, por todo o seu corpo, a energia de bons arrepios que fundiram-na a leveza.
Quando a última gota a deixou e escorreu pelos mistérios da terra, levou o último traço da lagarta. Envolta na névoa, teve a pele perfumada pelo mato, enquanto gozava de uma satisfação sem culpas, medos e dúvidas. Com cheiro herbal suave, entrou em casa refeita e o roupão quentinho, pendurado em um cabide, convidou-lhe para um abraço demorado no sofá da sala.
Deitada, sentiu um calor confortável que não vinha somente dos tecidos. Os braços e o coração que a continha: um espaço onde ela encaixava-se perfeitamente. Nele, o tempo corria tão devagar que parecia não existir. Naquele enlevo, só um incômodo a desafiava: não saber que presença lhe acolhia. Passou pela memória todas as referências e nenhuma se encaixava naquele amor que ultrapassava os padrões.
Gastou tanto a mente naquele cismar, que decidiu não mais querer prender aquela presença com a razão. Silenciou, fechou os olhos, respirou fundo e encontrou alguém de quem fugira durante vinte anos de uma história que já durava trinta e seis. Correu ao encontro dela, lançou-se lhe ao pescoço e demorou-se no clímax do abraço que sarava feridas, revogava sentenças, declarava paz e fechava brechas.
Quando tudo se aquietou novamente, a grande amiga, tomando a sua mão esquerda, pôs em seu anelar a aliança que trazia o nome do grande amigo. Em seu juramento, ela lhe disse:
— Ágape, Ágape, Ágape.
Selando-o com um ósculo, uniram as partes de um mesmo hálito, em laço de fio dourado que, estendido no rumo do céu, parecia ter a tensão dos que sustentam uma pipa. Segurando-o, sentiu a tensão diminuir vertiginosamente até o completo repouso. Puxando a ponta que não estava no seu controle, foi abrindo a pesada cortina de suas pálpebras sonolentas.
Brilhando em um dedo de sua mão esquerda, o sol a despertou para um dia de um outro tempo, projetando nas paredes da sala as palavras inscritas no anel: Se um dia o amor me chamar de volta, não te entristeças! Sou contigo, minha vida.
Aquiles não havia partido.
Ele era amor nela.
Gostei muito do trecho da auto libertação. Magistral!!!
Nunca deixe de escrever.
Obrigado Luiz
Parabéns meu caro!!!