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TRINTA E UM DIAS - Parte 2 (Alice) - 14º dia



Capitulo Parte II ALICE

Décimo quarto dia - Os olhos da Alice

Horas antes…

Inspira.

Expira.

Inspira.

Expira.

Sente o ar quente, Alice, sente seu corpo receber o oxigênio. Pulmão inflado, ombros, peito e barriga acompanhando, sente como o ar muda de temperatura, ele entra frio e sai quente, trazendo para o mundo afora todo aquele calor que contém na gente… E não se preocupa, Alice, não se preocupa com nada, com o futuro, com as escolhas erradas, com o passado e as oportunidades abandonadas, não se preocupe com absolutamente nada, apenas continue, continue respirando, inspirando, expirando. Vai dar tudo certo, sempre foi assim, você segurou tudo desde o começo até o fim, não há porque ter desespero, notícias ruins são somente notícias ruins.

Eu tenho um método, uma coisa que imagino quando preciso passar por algo gigantesco. Primeiro sinto como se estivesse entrando no banho quente de óculos, aquele vapor molhadinho vindo ao meu encontro, grudando levemente em minhas lentes e embaçando minha visão; depois eu vou fechando os olhos devagarinho, deixando o opaco esbranquiçado nas lentes do óculos, vou entrando de mansinho na água quente, bem quente, que provavelmente vai deixar minha pele vermelha e então… Depois disso, estarei preparada para adentrar meu lugar feliz e aí imagino, substituo toda as imagens reais por meus devaneios eloquentes, vou além daquela água quente, vou para um rio, na verdade uma cachoeira, nem pequena e nem grande, média. Ela desemboca em um rio, parado, escondido, entre a vegetação de uma grande floresta densa e verde, úmida, com aqueles musgos clichês brotando dos troncos ao chão e com pedras grandes o suficiente para se sentar nelas, vou deixando minha mente vagar. Agora estou lá, no meu mundo particular, estou vestindo um branco que, molhado, fica transparente. Na minha cabeça tenho uma coroa de flores, tão linda e exuberante. Estou entrando naquele rio, minha meta é deixar a água da cachoeira desaguar em minha cabeça para então meus cabelos ruivos serem molhados e ficarem com um cobre opaco…

Ali, naquele lugar, ninguém pode me alcançar, retirar minhas expectativas, afogar meus sonhos, porque ninguém mais ali conhece aquele lugar, ele é meu e somente meu, todos deveriam, sabe, ter um refúgio particular, um espaço individual onde pudessem rir, gritar ou chorar, apenas… Apenas deveríamos ter um recinto no mundo, algo só nosso, sem as regras e sem as rédeas. Não é proibido fugir e muito menos execrável, fugir, às vezes é o caminho mais difícil e mais rentável, porque fugindo se descobre o novo e quem sabe encontre um outro caminho.

— Entendeu, Alice?

Senti a mão de Ambrósia, apertar gentil e delicadamente minha mão. As mãos dela eram rachadas e marcadas pelos traços da vida, pelos esforços de uma existência nem tão bem provida, mas agora estavam ali, aquelas mãos calejadas e gentis, amparando as minhas, minhas pequenas mãos com poucas marcas e poucas linhas… Ela não havia dito nada ainda, apenas apertou minha mão trazendo-me para a realidade das palavras do doutor Gustavo e novamente ele perguntou:

— Alice, entendeu tudo o que eu disse?

— Hum… Me desculpe, doutor Gustavo, pode repetir?

Agora era a hora de encarar a realidade, sem espaços para o meu espaço e a fala do doutor era a fronteira, entre a realidade e eu. Ele franziu o cenho, quase juntando as duas sobrancelhas grossas e castanhas, sua testa comportava três linhas e seus cabelos já haviam se perdido para o estresse de ser um médico, de findar vidas e no meu caso, apagar visões. Ele continuou:

— Como estava dizendo, Alice, você é muito jovem, é bem raro isso acontecer na sua idade, mas os sintomas que apresentou, os exames foram conclusivos… Você tem melanoma coroide, é um tipo raro de câncer, mas acontece.

Médicos tem dons peculiares, eles nascem com um peso enorme e não digo pelos estudos ou pela longa jornada até o desfrute dos benefícios da carreira. Eles possuem, muitas vezes, literalmente nas mãos, a vida de muitas pessoas. É curiosamente trágico. Você pode estudar, pode ser o melhor, pode se dedicar ao extremo, mas ainda haverá coisas além de suas capacidades. Aceitar que não podemos mudar o mundo, que ele é uma engrenagem, nós somos as peças e que o concerto destas peças nem sempre depende do mecânico e que nessa engrenagem algumas peças se recuperam, no entanto outras se perdem para sempre ou ficam defeituosas, não acho isso ruim, porque às vezes o que eles consideram um defeito pode ser uma grande individualidade, pode ser o ápice da diferença entre uns e outros. Encarei o doutor, argui as sobrancelhas e disse:

— E?

Ambrósia, com os olhos vermelhos, pois deveria ter ouvido toda a explicação científica do doutor enquanto eu divagava, me refugiava, apertou mais forte minha mão e disse:

— Tem… Tem alguma forma menos invasiva de tratamento, doutor?

Olhei para o médico e ele cerrou os lábios. Pois é! Naquele momento ele deveria estar em conflito, porque as palavras erradas seriam as deflagradoras da própria esperança:

— Co-como eu disse… Há duas espécies indicadas de tratamento e do ponto de vista mais benéfico, no caso da paciente, seria a enucleação, ainda mais pelo custo benefício…

— Pelo amor de Deus, doutor! Estamos preocupados com a recuperação dela, valores pouco importam…

Algumas raras vezes vi Ambrósia se exaltar e aquilo me pegou de surpresa. Senti meu peito pular em ressonância com o coração.

Novamente doutor Gustavo embarcou em um monólogo sobre os benefícios da enucleação, tentando convencer Ambrósia que agora jazia com uma expressão séria e nada calorosa, pois prestava a atenção mais que devida aos mínimos detalhes.

Meus pensamentos ficaram turvos como as águas de um rio, as vozes foram ficando ao fundo e eu meio que me desliguei do mundo. Algumas saídas são difíceis, mas não impossíveis.

Ao final da discussão encarei o doutor e aceitei o procedimento. As escolhas mais difíceis são aquelas que nos tiram algo, mas você sempre tem que ser esperto o suficiente para saber como o tomará de volta. Nem sempre ter coragem é a resposta. Às vezes nós vamos com o medo mesmo e depois, bom, o depois é só questão de seguir em frente, porque se você viveu até aqui, eu sei que não importa o que aconteça, sei que vai conseguir, porque sempre estaremos programados para nos reconstruir.

Agora:

Não ceder à pressão que a vida faz, aos acontecimentos e situações que fogem do nosso controle, acho que essa é uma das coisas mais difíceis de se fazer. Digo, manter o controle, não colocar o peso nos ombros e arrastá-lo por quilômetros e quilômetros para só então perceber que aquela bagagem era totalmente desnecessária e que quando ficar em apuros e necessitar de algo para a sua própria sobrevivência, aquele peso, que penou tanto para levar… Não terá nenhuma utilidade.

O mais difícil sobre a vida é que nós não a controlamos, tudo é sempre uma grande e inesperada surpresa, porque as coisas, elas simplesmente acontecem, independente do que você quer ou até mesmo do que você sente.

Vou me usar como exemplo: em um belo dia ou talvez em um dia nublado, nasci, chorei e cresci, vi primaveras sem nem ao mesmo desejar por elas e então enfrentei os invernos mesmo que desgostasse de todo aquele frio que parecia eterno e então, em um dia, recebi uma notícia, talvez ela mudaria minha vida, talvez a mudança fosse algo bom ou talvez fosse apenas uma pequena e insignificante notícia, mas ainda assim… Não escolhi recebê-la! Pensando nas palavras do doutor Gustavo, pensando no meu melanoma, no que ele retiraria de mim e, ao mesmo tempo, buscando sanar com voraz vontade, tudo aquilo que queria viver, mas devido a notícia, não teria oportunidade…

Estava lá, rente a uma estante repleta de livros grossos, capas duras e moles, enormes, contendo em si muito mais do que palavras. Os livros eram as almas de seus escritores, tudo que podiam oferecer estava insculpido naquelas páginas. Se parar para pensar, um único exemplar de uma obra qualquer, traz em seu bojo todas as expectativas, experiências e promessas de seu autor, então com base nisto e apenas nisto, delineei minhas últimas vontades: devorar cada página que pudesse, ler quantos livros me restassem e aproveitar cada minuto de cada palavra e de seu mais intenso significado.

Oh, não! Não quero dizer que pessoas cegas não podem ler, mas quero tomar meus últimos momentos de visão e homenagear quantos livros puder, talvez seja por mim, talvez seja pelos autores e seus ideais triunfantes ou talvez seja porque eu preciso de algo para agarrar, pendurar-me, preciso de uma última vontade louvável que ao menos justifique meus últimos dias, preciso de algo que faça tudo que já enxerguei, tudo que já vi, ter um propósito maior ou um melhor proveito, porque no fim de tudo, algumas pessoas aprendem o valor somente após a perda.

Sim, sou um deles, egoisticamente buscando fazer história com os meus últimos dias, aproveitar tudo quando puder, até minha última hora!

No canto central do espaço onde as pessoas deveriam apreciar os livros, mas ao contrário os deixavam abandonados à mesa e se entregavam a conversas frívolas e altas, naquele canto tinha um rapaz estranhamente conhecido aos meus olhos condenados, mas ele estava ali, pálido, corpo retesado, no meio daquelas pessoas, mas sem falar com nenhuma delas, na sua frente repousava um caderno aberto e uma garrafa com água pela metade, um lápis no centro e ele encarava tudo aquilo como se estivesse vivenciando o fim do mundo…

Sua expressão pálida e fria, seus olhos, olhos que trouxeram em mim uma estranha sensação de coincidência. Por algum momento lembrei de canela, balas de canela enquanto o encarava e lembrei dos pássaros, daquele dia, coisas que ficaram no passado e também mantinham o seu impacto no presente.

Não sei por qual motivo, mas o garoto, não consegui parar de encará-lo e nem desviei o olhar, aquela expressão, aquelas mãos que checavam o celular toda hora e aquela face que se esforçava mais em repelir o caos e ao mesmo tempo fracassava explícita e visualmente.

Não ceder à pressão, controlar o que se sente é algo muito difícil, poderia dizer que alguns se atrevem a lutar contra o desconhecido e, na maioria, se perdem dentro dele. Senti como se ele precisasse de ajuda, olhei em volta e parecia que ninguém mais além de mim o via, seria ele um prospecto dos meus sentimentos reprimidos? Aquele garoto definhando pelas próprias emoções incontroláveis, agitando a perna, olhos estatelados, boca seca e desespero evidente, era mesmo real? E se o era, porque só eu conseguia ver aquilo tudo?

O telefone dele tocou ou recebeu uma mensagem. Ele olhou a tela, seu rosto suavizou bem pouco, como se caos passasse, fornecendo lugar agora somente para a angústia, então ele se levantou, pegou suas coisas e saiu, deixando aquele espaço vazio, sem arrumar a cadeira, apenas foi embora. A presença não foi notada, nem mesmo quando sua ausência se transmutou naquela cadeira, arriada, vazia, rente à mesa!

Foi então que percebi uma coisa: todos em volta, todas aquelas pessoas gozavam da companhia dos amigos, riam em grupo, brincavam ou conversavam com alguém, as únicas pessoas sozinhas eram eu e aquele garoto, somente nós dois estávamos ali buscando ou sofrendo por alguma coisa, somente nós dois não conseguimos disfarçar tão bem quanto às outras pessoas, somente nós dois… então pensei: “a solidão tem o condão de aproximar os solitários. Aqueles que percebem a dor do outro, sinto muito, mas isso quer dizer que vocês já provaram da similaridade de se estar perdido na própria intensidade”.

 

Sobre a Autora:

Uma autora independente que gosta de escrever tanto quanto de respirar, participou de varias antologias e foi uma das dez finalistas no concurso "cuenta me un cuento" de 2020. Também participou da antologia anjos caidos da dar books, onde o livro esta na amazon com o conto intitulado: "o testemunho de Delphin". Foi selecionada para o a antologia Teleportados com o conto: " Por de trás da pálpebras", no entanto não participou na formação do livro. Uma escritora inovadora, aspirante a poeta e muito concentrada em sempre dar o seu melhor, buscando uma oportunidade de provar o valor de suas palavras.


 

Revisão: Tatiana Iegoroff

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