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Virada dos Mortos

“O relógio soa, anunciando a morte da nossa tranquilidade. Ao mesmo tempo, é o canto do galo para o fantasma que nos assombrou. Ele voa, desaparece — estamos livres. A velha energia retorna. Agora podemos pôr mãos à obra. Infelizmente, tarde demais!” O Demônio da Perversidade - Edgar Allan Poe


1

Ah, existe época do ano melhor do que o Natal e o Ano Novo? Claro que não, e se você não é um recluso dos infernos que prefere passar esses dias em casa, trancado no seu quarto, jogando joguinhos no computador ou invejando a vida de outras pessoas no Instagram ou reprisando aquelas mesmas séries de comédia sem graça de sempre — cito Friends aqui só para exemplificar — ou assistindo aos incríveis e enriquecedores conteúdos do Pornhub, é bem capaz que concorde comigo. É impensável que você prefira essa lista anterior a passar por um jantar espetacular com sua família, no Natal, enquanto troca presentes e observa aquele seu tio velho — com uma barriga maravilhosamente redonda e escapando das calças — fazendo aquelas grandiosas piadas sobre o tal pavê enquanto ouve Barões da Pisadinha gritando a noite toda nos novos aparelhos de som que o mesmo tio velho estava o ano todo ansioso para exibir aos parentes. Sério, é muito impensável.

Também é impensável que você prefira aquelas outras coisas em detrimento de passar a gloriosa virada de ano na praia, admirando aqueles explosivos fatais e barulhentos estourando no céu e jogando uma chuva de luzes coloridas em sua direção enquanto, no palco logo ali na frente, ou no carro estacionado não muito longe de você — bem perto de você, na maioria das vezes — toca a mais nova música de algum Mc de funk ostentando um carro do ano que custa o equivalente a uma década do seu trabalho de merda e que, pra ser honesto, ele também não tem, já que as produtoras é que fornecem o material para o clipe.

A verdade, meus amigos, é que você, assim como o resto desse Brasil, deve adorar essa época do ano e todas as ocasiões festivas que ela proporciona.

Mas, bom, o nosso amigo aqui, o querido Michael Douglas, não gostava muito de nada disso. Ele seria aquele cara que não despreza a família, mas que prefere ficar em casa do que sair para a rua. Ele é do tipo que diz “eu tenho cérebro”.

Ah, e como ele tem! E descobriria em breve.

Estava ele sentado em seu Gol g4, ao lado da Bruna, descendo pela BR 116, deixando Curitiba para trás e indo para Iguape, no litoral sul de São Paulo. Na verdade ele estava indo para Ilha Comprida, que é uma cidade litorânea bem ao lado de Iguape, fazendo com que essa segunda cidade seja apenas uma espécie de corredor obrigatório que você acaba passando para chegar até o destino final. Bruna estava muito feliz e, a cada curva, árvore, pedra, ou qualquer coisa pela qual passassem, sua felicidade aumentava um pouco mais. Já fazia um bom tempo desde a última vez que fora até a Ilha, e seria a primeira vez que conseguiria, enfim, mostrar ao Michael o que era um Ano Novo de verdade. Convencê-lo não fora uma tarefa fácil, mas com um pouco de tato e diálogo é possível convencer qualquer um.

E mesmo sendo um recluso dos infernos, Michael também adoraria ganhar um Ps4 no ano seguinte. Talvez tenha sido só por isso que ele aceitara o “convite”. Pelo menos, era o que Bruna achava.

Mas a verdade, por mais que ela não enxergasse, era que ele era extremamente apaixonado por ela e odiaria passar a virada sem tê-la ao lado. Claro que ele poderia ter dito isso, só que assim ele não ganharia o console. Então preferiu o silêncio e os acenos de cabeça.

Quando chegaram à Ilha — depois de um trânsito desgraçado antes da ponte, perto do pedágio desativado —, foram direto para o hotel. Bruna queria dar uma passadinha rápida na praia, para molhar os pés, e foi por bem pouco que Michael não recusou, mas quando ele viu uma pancada de gente amontoada na areia embaixo de uma multidão de guarda-sóis, chamando aos berros pelos rapazinhos e mocinhas que empurravam carrinhos enquanto gritavam “PICOLÉ TREIS REAIS. COMPRA TREIS PAGA DOIS”, ele decidiu que queria tudo, menos molhar os pés.

— Por Deus, amor. Vamos ter bastante tempo na praia depois, mas vamos pro hotel primeiro. A viagem foi cansativa e eu quero um banho. De preferência, de água de chuveiro.

— Ah, que chato você, também, né? Tá bom, mas depois você vai me pagar um sorvete com o seu dinheiro.

Michael respirou fundo. Olhou para Bruna e, ao ver aquele sorriso lindo, também sorriu.

— Só se estiver por treis reais.


2

Pelo menos o hotel era bem parecido com as fotos que viram no Trivago. Bruna havia insistido para que eles pegassem uma casa no boqueirão norte, perto das dunas e com uma vista linda, que encontrara no Airbnb, mas Michael era meio burro e desatualizado das últimas novidades no mercado de alugueis, e, segundo ele “o Airbnb não é confiável”. Então, acabou pagando o dobro do preço naquele quarto e, ops, descobriu que o ar-condicionado não funcionava.

— Inferno do caralho — ele disse. — Filho da puta dos diabos.

— Eu não sei nem calcular quanto você deve para a caixinha dos palavrões — disse Bruna, incapaz de deixar de sorrir. — Esquece isso, amor. Vai tomar o seu banho e depois vamos descer. Fiquei sabendo que vai ter um show ali no centro. Não sei de quem é, mas quero ir.

Michael ouviu isso e foi até a janela. Dali ele tinha uma vista privilegiada da praia, assim como do palco. Também podia ver as pessoas se aglomerando na areia em frente, carregando isopores lotados de cerveja e, talvez, frango com farofa. Michael também não sabia quem cantaria no show, mas já sabia o que aquele show era: uma amostra do inferno que seria a virada.

Uma amostra do inferno que seria a virada. Com toda certeza.


3

O inferno seria mais agradável, mas Michael sobreviveu.

Quando voltaram para o hotel, ele notou que havia o triplo de carros na garagem. Também viu o triplo de pessoas circulando pelos corredores dos quartos. Mais gente havia descido para a praia, o que significava que haveria ainda mais gente na noite da virada.

Que seria dali a um dia.


4

O grande dia chegou. Dia 31 de dezembro. O melhor dia do ano para Bruna e para o resto do planeta que, repentinamente, decidiu se reunir ali na Ilha. Havia tanta gente que Michael poderia jurar que a praia afundaria. Levando metade deles pra puta que pariu, não seria uma péssima ideia, ele pensou, apertando-se no meio das pessoas e tentando encontrar algum metro quadrado em frente ao palco em que houvesse espaço para ele e Bruna.

A noite estava linda. O céu estrelado era como um sinal dos deuses. Havia uma estrela grande e de cores vermelhas bem acima deles, exibindo toda a sua glória naquela noite única e especial. O som do mar a poucos metros deles também era incrível. Tudo estava incrível. O grande problema, meus amigos, era que tudo isso estava inalcançável.

O som dos carros tocando Mc Livinho era tão alto que o “toma toma toma toma toma, sua gostosa” inibia qualquer som que o mar poderia emitir. As luzes do palco eram tão fortes que a bela estrela estava invisível para aquelas pessoas. Não que a maioria delas se importasse, já que os olhos não estavam virados para cima, e, sim, para a mocinha dançando até o chão bem na sua frente. Esse é só um resumo daquele lugar. Claro que eu poderia te mostrar bem mais, porém, acredito que isso já seja o bastante pra você entender mais ou menos o estado de espírito que o nosso amigo Michael se encontrava.

Ele queria morrer. Cara, ele nunca quis morrer com tanta intensidade quanto naquele dia.

Já Bruna estava em êxtase. Não como aquele grupo de rapazes ao lado deles, vestindo camisetas do Ramones e fumando um baseado do tamanho de um cone de trânsito, mas, realmente, ela estava em êxtase. Ela dançava, cantava, gritava e abraçava Michael de cinco em cinco minutos, como se aquele fosse o melhor e último dia de sua vida — sem saber que realmente era. Ela curtia a cada segundo com o máximo de intensidade que a sua alma permitia. Também bebeu bastante, mas nada além de cerveja — que custavam malditos dez reais a latinha.

Essa cena, a de Bruna dançando e se divertindo, era a única coisa feliz naquela noite. O sorriso dela parecia resplandecer com o brilho que vinha do palco. Quando ela fechava os olhos, como que para concentrar toda a sua habilidade naquela dança, fazendo uma expressão muito sedutora, Michael achava que poderia morrer a qualquer momento. Porém, quando ele viu que…

Drã dã dã dã dã dã… PAAAA!

Esse foi o som que quase fez Michael cair em um ataque cardíaco. Na avenida a beira mar, não muito longe deles, um desgraçado passou com a moto empinada e cortando giro, fazendo esses sons com o escapamento furado como se ele fosse o cara mais foda do mundo. Michael só conseguiu fechar os olhos, respirando fundo e tentando manter a calma. Se controla, ele dizia para si mesmo, é só o começo da noite.

E realmente era. Ele sabia que “tinha cérebro”, mas sabia que o resto ali, aparentemente, não tinha, e caso ele não ficasse calmo, enlouqueceria a qualquer instante. Então, vamos manter a calma, meu rapaz.

Ele resolveu beber um pouco. Afinal, como ele poderia passar por aquilo sem uma única gota de álcool?

Parou um dos vendedores ambulantes e pediu por cinco latinhas que, na teoria, deveriam custar 50 reais, mas o cara resolveu dar um desconto.

— Vai ficar quarenta e três.

— Ótimo — disse Michael. — Quarenta e treis reais. Na sua mão. — Pagou com uma nota de cinquenta.

O cara deu cinco de troco e saiu andando. Michael não reclamou.

Ele virou as cinco latinhas o mais rápido que pôde, sabendo que teria um ataque inveterado de mijo a qualquer momento. Todo mundo sabe que, quando você dá a primeira mijada pós cerveja, as outras vêm como se fossem a coisa mais importante do universo. É algo como “se você não mijar, você morre”. Mas ele também não se importou com isso. Só precisava ficar bêbado, e o mais rápido possível.

Agora, amigos e amigas, já eram 23h50. Faltavam apenas dez minutos para o fim daquele ano e o início de um outro. Bruna puxou Michael pelo pulso.

— Vamos, amor. Vamos pular as ondinhas.

— O que seria de nós sem a Iemanjá, não é?

Eles foram até a beira da praia e pularam as ondinhas. Ali, com o pé na água, ele finalmente conseguiu ouvir o som do mar. Como os carros estavam estacionados lá na avenida, a música não chegava até eles, e, finalmente, ele teve uma folga. Só não gostou de ver um casal transando perto de um coqueiro a alguns metros deles. Olhou para o mar e fingiu que não estava vendo nada.

Olhando para o mar, ele pensou: “Vamos lá, Cthulhu, eu sei que você está aí. Que tal levantar do seu sono e destruir a humanidade? Também pode ser você, Poseidon. Veja o que estamos fazendo com o mar. Esqueça um pouco o Percy e destrua todo mundo. Por favor”.

Porém, para o azar do nosso amigo Michael, nenhum dos Deuses Antigos vieram em seu resgate. Quando virou as costas para o mar e caminhou de volta para o meio da multidão, todos ainda estavam lá. Tudo estava lá, e só faltavam cinco minutos para a virada do ano

Cinco minutos.

Cinco minutinhos, cara.

E foi bem nesse momento que a primeira pontada da Mijada Pós Cerveja resolveu chegar.

— Amor, preciso ir ao banheiro — ele disse, com o desespero estampado em seus olhos.

— Porque não fez na água? Não tem banheiro por aqui.

— Na água? Pelo amor de Deus, né, Bruna.

— Todo mundo faz! Às vezes até por cima da roupa.

— Puta merda. — Foi a única coisa que ele conseguiu dizer.

— Ué, é verdade.

— Tá bom. Mas e aquele banheiro químico?

— Se eu fosse você, não iria lá.

Mas ele não tinha mais opções. Agora ele precisava mesmo ir para o banheiro. Olhou para o relógio e viu que faltavam “treis” minutos para a virada. Ok, vai dar tempo. Ele deu um beijo — o último — em Bruna e correu para o banheiro. Agradeceu por não ter fila e amaldiçoou todos os Deuses Antigos pelo cheiro que aquela porra tinha do lado de dentro.

Mijou. Aaaah!

E quando saiu, meus amigos, vocês não sabem o que ele viu.

Ele saiu do banheiro 00h00. Os fogos não estouraram. E o que ele viu foi a coisa mais enlouquecedora que seus olhos poderiam ver.

Todo mundo havia se transformado em zumbi. Sério.

Mortos-vivos estavam por toda parte.


5

Ele esfregou os olhos. Balançou a cabeça de um lado para o outro. Olhou de novo. Eles ainda estavam lá. Mortos-vivos perambulando de um lado para o outro. Ok, talvez se eu esfregar os olhos de novo. Foi o que fez, e quase arrancou os olhos para fora. Porém, quando os abriu novamente, foi agraciado com a imagem de uma multidão de quase quarenta mil zumbis andando na beira da praia, com os braços esticados e… bem, o que exatamente era aquilo?

Levando em conta que estamos falando de zumbis, é natural que achemos que o nosso amigo Michael estava em sério risco de vida. Porém, após passar por aqueles primeiros minutos, atônito, em frente ao banheiro químico, ele descobriu que aqueles seres descerebrados não tinham o menor interesse nele. Michael já havia jogado muito Residente Evil nessa vida, assim como perdeu muito do seu tempo assistindo às aventuras de Rick Grimes, em The Walking Dead, sem falar nas mais de 30 horas de frente para The Last of Us e também sobreviveu ao clássico de George Romero, Madrugada dos Mortos. Tudo isso já dava a ele um certo currículo para passar por aquela experiência, mas qual não foi a surpresa do nosso amigo ao notar que os zumbis apenas passavam por ele, sem ao menos olhá-lo.

Tem algo de errado por aqui, ele pensou e, embora fosse tão óbvio que beirasse a burrice, era uma observação interessante. Qual era a única função de um zumbi que não fosse dilacerar a carne de qualquer ser vivo enquanto grita alto alguma coisa parecida com braaaaaains? Nenhuma, certo?

Certo. Mas, nesse caso, não era o que estava acontecendo. Aqueles zumbis, os zumbis do litoral, os zumbis do Ano Novo, estavam cagando para a presença de Michael. Bom… isso só deu a ele a vantagem da observação.

Ele saiu andando pela praia, olhando para aqueles seres esquisitos e apodrecidos.

Eram zumbis “normais”, como você já pode imaginar. A pele estava podre e ressecada, quase cinza, e boa parte dos membros já haviam caído no chão e estavam sendo pisoteados pela multidão. Sangue seco manchava as roupas brancas de todos, mas o som de funk ainda tocava alto e forte. Delícia de trilha sonora.

Não muito longe dele, Michael notou que havia uma roda de zumbis. Eles estavam um ao lado do outro e pareciam estar batendo palmas. Michael se aproximou para ver.

Os olhos daqueles monstros eram brancos feito leite e pareciam girar sem o menor controle dentro das órbitas. Mas, ainda assim, estavam batendo palmas. No centro desse círculo havia uma jovem zumbi, que não devia ter mais de 20 anos e estava com uma garrafa de Jack Daniels nas mãos, tomando cada gole daquilo direto no gargalo. Claro que ela não conseguiu realmente beber, já que havia um buraco em sua garganta e todo o whisky escorria de lá depois dos goles. Mas ela tentava. E os zumbis envolta gritavam sem parar:

— Vira! Vira! Vira! Vira!

Por um segundo, Michael achou que estava ficando louco. Teve que olhar mais uma vez para aquelas pessoas, como se tentasse afastar aquela névoa da loucura que estava diante dos seus olhos.

Será que aquela nojeira de banheiro químico possuía algum tipo de alucinógeno no ar que o fez sair de lá vendo coisas? Porque, vamos combinar, esses seres ainda eram os mesmos de antes, com a única diferença de agora serem zumbis. Era uma diferença apenas visual.

Mas Michael não estava louco. Aquilo estava mesmo acontecendo. Zumbis em círculo batendo palmas para uma zumbi enquanto ela bebia Jack Daniels. Incrível.

Michael deixou esse grupo de lado e saiu caminhando. Ele ainda precisava… meu Deus, pessoal, ele ainda precisava encontrar a Bruna! Como ele poderia ter esquecido dela?

Saiu correndo no meio da multidão de zumbis, olhando para todos os lados e esperando vê-la em algum lugar. No caminho, encontrou alguns zumbis que andavam em fila indiana enquanto erguiam os dedos em forma de arminha. A famosa mão de arminha. Também passou por zumbis fumando maconha, cantando músicas, dançando, bebendo e fazendo tudo aquilo que já faziam antes.

E foi perto da avenida, que era onde eles estavam antes de irem pular as ondinhas, que Michael viu a coisa mais incrível daquela noite.

Um zumbi estava andando de moto. Esse zumbi resolveu empinar essa moto. Drã dã dã dã dã… PAAAAA!

Nesse momento, o braço do zumbi descolou do ombro, e enquanto ele empinava a moto, acabou perdendo o controle da direção e voou de peito no chão, deixando 90% do seu corpo despedaçado no caminho.

Michael ergueu as mãos e deu um grito:

— Vocês viram isso? Vocês viram? Até que enfim um desses idiotas caiu!

Mas ninguém viu. Os zumbis continuavam vivendo suas “vidas” da forma que sabiam fazer tão bem. E esse foi o momento mais triste da noite de Michael. Finalmente ele vira um daqueles palhaços cair no chão, mas infelizmente fora o único a ver.

Que se foda, pensou, ainda tenho que encontrar a Bruna.

Porém, antes mesmo de retomar a busca, ele viu outra coisa. E essa, acima de tudo, era a mais… estranha, digamos.

Ele viu, do lado oposto de onde estava, lá em cima no camarote, um homem. Era um homem alto e gorducho. Era totalmente careca e, daquela distância, parecia estar normal. Sim, exatamente isso. Talvez a vista não tão boa de Michael estivesse pregando uma peça, mas ele poderia jurar que aquele cara era, além dele, o único que não havia se transformado em um zumbi.

Como ainda não encontrara a Bruna, não viu outra opção que não fosse falar com aquele cara. Ele correu em direção aos camarotes e, assim que pisou lá, dois homens de terno foram até ele. Pareciam os seguranças. E também eram zumbis.

— Com licença, senhor.

Eles revistaram Michael da maneira mais porca possível. Depois de dois segundos de revista, deram um passo para o lado e deixaram que ele passasse. Caso estivesse portando um fuzil, por exemplo, não teria problema algum. Aqueles caras não pareciam nem um pouco interessados em encontrar alguma coisa escondida com ele.

Caminhou até o homem.

— Ora, mas veja só, venha, Michael, sente-se comigo. Vejo que está com fome. Aceita um pedaço?

O careca, que Michael ainda não sabia quem era, afastou-se um pouco para o lado e deixou que ele se sentasse ao lado no banco. Estendeu para ele um potinho com dedos humanos e perguntou se ele queria comer um pouco. Com nojo, Michael fez um aceno com a cabeça e negou.

— Tem certeza? Se quiser beber, tenho bastante sangue bem ali. Sangue fresquinho, direto da fonte. Pode ficar à vontade. Ah, você vai querer provar os petiscos de cérebro também. Estão particularmente deliciosos. — Após dizer isso, o homem pegou de uma cesta um braço humano e levou até a boca. Mordeu-o com ferocidade e jogou-o para o lado, como quem faz com uma coxa de frango após a primeira mordida. Depois pegou um pedaço de miolo de cérebro e jogou na boca, como fazemos com pipoca. A cada mordida, o sangue escorria pelo queixo do sujeito.

Parecia muito suculento.

Já arrependido de ter ido até ali, mas sem saber o que fazer, Michael disse:

— O que está acontecendo?

— Ah, meu rapaz. Por que não nos apresentamos primeiro?

O homem limpou o sangue da mão e esticou-a para Michael:

— Sou Willian Wilson, o prefeito da cidade.

Lembrando-se apenas de um conto antigo do Poe, mas sem poder dizer mais nada, Michael apertou a mão do careca e se apresentou. Após algumas amenidades, eles retomaram a conversa:

— O que está acontecendo aqui, querido, é a grande festa de Ano Novo. Achei que já soubesse disso. É a festa mais incrível na região, e todo ano é essa abundância toda que está vendo.

— Acho que você não tá entendendo, Willian — disse Michael. — Estou falando dos zumbis. Estou falando dessa… coisa que você está comendo. Estou falando de tudo. O que está acontecendo? Cadê a Bruna?

— A Bruna… — O homem levou a mão até o queixo e ficou batendo com o indicador ali, tentando se lembrar de quem era a tal Bruna. — Bruna, Bruna, esse nome não me é estranho. Rapazes! — ele gritou. — Tragam o estoque, por favor.

Os dois seguranças que estavam na entrada do camarote, tentando interceptar qualquer engraçadinho que quisesse entrar lá sem pagar, foram até os fundos e, após alguns minutos, voltaram com quatro cestas cheias de restos humanos. Haviam cabeças inteiras, braços, pernas, peitos, dentes, olhos — muitos desses —, cérebros e línguas. Mais ao fundo das cestas haviam alguns órgãos. Corações, intestinos cheios de fezes, bexigas, rins, pulmões e uma quantidade absurda de outras coisas. Uma das cestas em especial era reservada apenas para a pele humana. Antes de continuar a falar, o homem levou a mão até um pedaço de pele e enrolou um olho dentro dela, quase como um sushi, e jogou na boca.

Ao morder o olho, um estalo surgiu. Ploc! Parecia que ele tinha comido uma jabuticaba.

Mas Michael não estava realmente atento a isso. Embora aquilo tudo fosse inacreditável, os olhos dele estavam voltados para a cesta de cabeças.

No topo da cesta, em cima de todas as outras cabeças, estava a de Bruna.

— Eu sabia que já havia ouvido esse nome — disse Willian Wilson. — Aí está a Bruna, tão linda quanto nunca.

Michael estava prestes a entrar em colapso. Iria chorar, gritar, espancar o homem, mas antes disso, a cabeça no cesto disse:

— Meu amor, não fique triste, esse é o nosso propósito. Alimentá-los. Você ainda me deve um sorvete.

Willian começou a gargalhar.

— Está vendo, querido? É assim que se fala. Eu só fico me perguntando no porquê de você não se juntar a eles. Olha lá para fora. Veja aquela multidão. Porque não se junta? Porque gosta tanto de ser “diferentão”? Não seria mais fácil viver morto enquanto sente alegria do que apenas morrer enquanto vive, afundado nessa sua tristeza?

Eita, pensou Michael, por essa eu não esperava.

— Seria mais fácil, realmente… mas eu não consigo. Não dá.

— Aaaah, agora eu entendi. Você é daqueles que se alimenta. Você é daqueles que se revolta ao ser confrontado com a ideia de alimentar e prefere se alimentar. Você é como eu, rapaz. Agora coma um pedacinho dessa língua fenomenal e curta o momento.

Michael negou com um aceno de cabeça.

— Eu não quero comer isso.

— Mas nesse caso entramos em um embate. — O homem ergueu a voz, como se fosse dar um discurso. Como era prefeito, Michael imaginou que essa fosse a voz que ele usava em seus comícios. — Senhoras e senhores, temos aqui um justiceiro! Aquele que não come, mas não quer dar de comer. — Depois ele abaixou a voz. — Vamos, Michael, você tem que se decidir.

Silêncio. Aquilo estava indo a níveis tão insanos que ele mal conseguia pensar.

— Amor, decida logo — a cabeça no cesto disse. — Meus olhos sempre foram seus. Coma um deles.

— Ok, ok — disse o prefeito. — Que tal mudarmos a abordagem? Tive uma ideia. Rapazes!

Os seguranças retornaram.

— Tragam a seringa.

Os homens voltaram lá para trás e retornaram com uma maleta pequena. Entregaram-na para Willian e retornaram aos seus postos. Era uma maleta preta de couro. As fivelas pareciam ser feitas de ouro.

O prefeito a abriu, e, dentro dela, havia duas ampolas e uma seringa. Cada ampola estava cheia de algum líquido. Uma delas era vermelha, a outra, azul.

— Sabe o que é isso, filho?

Ser chamado de filho por aquele homem era extremamente desconfortável, mas Michael tentou ignorar isso e voltou a sua atenção para o conteúdo da maleta.

— Não faço ideia.

— Essas são as suas possíveis escolhas. Se escolher a azul, você será um homem assim como eu. Vai se alimentar das multidões. Vai poder usar o, como é que você diz? O cérebro deles em sua vantagem. Ou a falta deles, no caso. Vai ser aquele que se alimenta. Vai viver a Verdade da forma como ela foi programada para ser. Caso escolha a vermelha, você terá uma ajudinha e se transformará em um deles. Você será um zumbi e servirá de alimento para aqueles que escolhem a azul, entende? Vai viver a sua vida normalmente, mas estará imerso na mentira, no prazer carnal, na cegueira e na ilusão, totalmente feliz dentro da mentira. O que me diz? São ótimas opções, não são?

Claro que são. Eram opções ótimas. E enquanto pensava em um filme antigo que assistira há alguns anos, provavelmente Matrix, Michael olhou para as ampolas e para a seringa. Antes de dar a sua resposta, fez uma pergunta:

— Você já passou por isso? Tipo, você já teve que escolher por uma dessas coisas?

— Claro que sim! Todos nós somos confrontados por essa decisão difícil. Como você mesmo disse, ser a pessoa que alimenta é realmente mais fácil, porém vazio. Agora, alimentar-se do vazio alheio já não é tão simples, porém é verdadeiro. Todos passamos por essa bifurcação, e agora, meu amigo, estou lhe dando a opção de escolher. Qual vai ser?

Michael se levantou e foi até a cerca de contenção que delimitava o camarote. Olhou para aquela multidão. Lá na avenida viu um outro zumbi empinando uma moto. Viu aquele grupo em círculo enquanto bate palmas para uma outra zumbi enquanto ela vira uma garrafa de Jack Daniels. Todos mortos, mas vivendo intensamente. Todos mortos, mas felizes.

E ele ali, naquela amargura dos infernos. Qual seria a sua decisão?

— Ah, meu amor, venha comigo — disse a cabeça no cesto. — Desse lado nós estaremos juntos para sempre.

Michael ouviu a voz de Bruna vindo até ele e lembrou-se de cada um dos dias que passaram juntos. Sentiu aquela pontada forte da paixão ardendo em seu peito. Pensou em tudo isso e descobriu que já tinha uma decisão.

O amor é ilusório, mas é tão verdade quanto a própria Verdade consegue ser, então, como já disse um antigo amigo nosso, um tal de Shakespeare: “é muito melhor viver sem felicidade do que sem amor”.

— Me dá a vermelha.

O prefeito gargalhou. Gargalhou muito. Gargalhou tanto que até cuspiu um pedaço de fígado que estava preso em seus dentes. Depois, antes de pegar a ampola, disse:

— Rapazes! Tragam o facão!

E eles trouxeram.

— Vou lhe dar a honra me servir de alimento de uma maneira diferente, querido.

— E como vai ser?

— Observe.

Willian Wilson enfiou o facão na barriga de Michael e abriu um buraco ali. Com a mão, arrancou o intestino do homem para fora, fazendo com que o sangue quente escorresse por todo o chão. O prefeito enfiou a cabeça naquele buraco e mordeu tudo que seus dentes alcançavam. Estava uma delícia.

— O que está achando, rapaz? — disse ele, o rosto vermelho de sangue.

— Encantador.

Era verdade? Não sei. Talvez nunca saibamos. Afinal, a mentira, na maioria das vezes, se une com a nossa realidade. Mas a cabeça no cesto estava sorrindo. Isso era um bom sinal, não era?

 

Sobre o Autor:

Douglas Noleto, nascido e criado em Iguape, SP, é autor de romances e contos de suspense e terror psicológico.

Atualmente mora em Curitiba e escreve quinzenalmente para a Revista Perpétua, sua casa literária, e mensalmente para o Literatura Errante.

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