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É, parece que o tiro saiu pela culatra - Parte 2

Ambos foram vizinhos a vida inteira e desde pequenos já sabiam que iam ser grandes amigos. Conseguiram atingir os 10 anos de idade e isso era uma puta sorte, considerando que moravam em um dos bairros mais violentos do Rio de Janeiro, o Estouro Vermelho. A má sorte lhe apareceu quando um dia, depois de ver a mãe doente e tossindo muito (embora não tivesse visto o sangue), Raul pôs na cabeça que ia roubar a pequena farmácia do bairro. Sondara a porta do quarto dos pais e ouvira o médico prescrevendo à sua mãe dois antibióticos: rifampicina e isoniazida. Ele entregou a receita ao pai e, chamando-o a um canto, disse-lhe, bem baixo para que a esposa não pudesse ouvir: “O tratamento dura, no mínimo, seis meses. No pior dos casos, se ela apresentar resistência aos antibióticos, a única solução será um tratamento com medicamentos mais intensos que pode durar 2 anos ao todo, mas com efeitos colaterais graves. Mas vamos rezar e manter a fé para que isso não venha a acontecer.”

Seu Romário, o esposo, passou a mão lentamente pelos cabelos ralos e segurou o choro de angústia.

― Eu lhe daria amostras se eu pudesse, Seu Romário, acredite. Mas, se me permite uma sugestão amigável?

Seu Romário assentiu com a cabeça.

― Não sei se o senhor é religioso ou não, mas, por favor, chame o seu filho e rezem por ela dia e noite. A medicina e a esperança salvam, de fato, mas a fé é o que move tudo neste universo. Sem ela, estaremos perdidos. Façam isso com amor, sim?

― Tá… tá certo, eu vou fazer isso.

O médico, antes de sair pela porta da sala, passou a mão na cabeça do pequeno Raul.

O pai levou-o consigo até a farmácia na mesma noite e, por sorte, conseguiu pegar a farmácia ainda aberta. Perguntou ao farmacêutico o preço dos remédios e foi informado de que os dois, rifampicina e isoniazida, custavam, respectivamente, R$200 e R$250. O pai conseguiu parcelar em até 3 vezes, sabendo o quão escasso era o seu dinheiro. Ele só não suspeitava de que o filho também soubesse da situação financeira da família.

Sendo assim, Raul já sabia o que fazer. Ele tinha uma boa memória e se lembrava da posição exata dos remédios e também dos preços. Sua sorte era que farmácia de bairro pobre não pode se dar ao luxo de ter câmeras. Comprou, com alguns trocados, uma caixinha de fósforos e um cabeção de nego. Foi até o fundo do terreno baldio ao lado da farmácia, acendeu-o e tacou por cima do muro. O barulho foi alto na outra casa, e todos os vizinhos saíram apressadamente para prestarem socorro aos moradores, pensando se tratar de um tiro ou algo assim. Com eles, o farmacêutico e o seu estagiário também saíram correndo, deixando a farmácia desprotegida. Raul aproveitou a chance e se esgueirou para dentro do prédio de interior branco. Sem perder tempo, pegou a escada de três degraus que o estagiário sempre usava para alcançar os remédios e subiu-a. Mas ainda não alcançava os remédios, era muito pequeno. Procurou no caixa por alguma coisa que pudesse ajuda-lo e encontrou uma régua de trinta centímetros. Usou-a e conseguiu levantar as duas caixas dos remédios pela base, fazendo-as cair e escorregar pela extensão da régua. Catou os remédios do chão e devolveu a régua e a escada aos seus respectivos lugares. Saiu do local sem ninguém suspeitar de nada, embora houvesse gente na outra rua, acudindo as vítimas do que todos pensavam ser um tiro.

No dia do estouro, com a ajuda dos vizinhos, os moradores que, diga-se de passagem, eram novos no bairro, averiguaram a casa e acabaram descobrindo os restos do cabeção de nego. Todos da vizinhança conheciam o vendedor de cabeção de nego local e apontaram os dedos para ele. O pobre comerciante, que queria apenas fazer dinheiro com o seu humilde negócio, cedeu rápido ao medo e disse aos novos moradores desafortunados quem havia comprado a bombinha. Eles foram até a casa de Seu Romário e tiraram satisfação com ele a respeito do seu filho e, embora não tenham sido muito duros, Raul levou umas boas palmadas, naquele dia, do seu pai. Prometeu nunca mais envergonhá-lo daquele jeito, especialmente depois que Seu Romário lhe disse para jurar em nome da sua mãe. E, bem, promessa é dívida.

Não demorou muito para que o estagiário percebesse que havia duas caixas faltando, e ele não se lembrava de tê-las vendido a alguém, ainda mais depois de checar o recibo eletrônico do computador. Juntou dois com dois e chegou à conclusão de que a bombinha tinha sido apenas uma distração. Ligou para a polícia e explicou toda a situação por telefone. A equipe investigativa da polícia achou digitais de criança na escadinha e na régua. PIMBA! Levaram as provas até a casa de Seu Romário, a quem mostraram-nas. Quando ordenado a mostrar ao pai as caixas dos remédios (ainda lacradas), Seu Romário não acreditou no que viu. Então era verdade, seu filho se tornara um vagabundo. Ofereceu-se para ser levado no lugar do filho, no entanto, Raul decidira agir sem pensar de novo e pegou a arma de um dos policiais que esquecera de fechar o coldre e travá-la. O garoto apontou a arma para ele e puxou o gatilho, atingindo-o na coxa, próximo à genitália. Eles tiveram que levá-lo a força, apesar dos esforços do pai para impedi-los.

No quarto, dona Marta ficou desesperada ao ouvir os tiros e, numa última tentativa inútil de se levantar da cama, caiu morta no chão. O laudo médico e o obituário diziam que ela tinha morrido de ataque cardíaco, não de tuberculose. Raul foi preso e por repetidas vezes viveu naquele inferno que era o reformatório. Lucas apareceu na primeira dessas vezes seis meses depois, acusado de compra e possessão de crack. Os dois saíram do reformatório quase no mesmo dia, o que foi uma sorte, pois ainda tinham um ao outro.

Raul descobriu, assim que chegou em casa, pelos vizinhos, que seu pai havia se tornado um alcoólatra causador de problemas e tinha sido demitido do seu emprego. O chefe e colegas de trabalho já não aguentavam vê-lo com a barba mal feita, olhos vermelhos e camisa com três botões desabotoados de baixo para cima, revelando um pouco da barriga saliente e cabeluda. Sem contar no hálito de cerveja ruim. Passara a se comportar de forma inaceitável, respondendo atravessado para todo mundo e desacatando as ordens do chefe. Até que um dia comprou briga com o funcionário de um outro setor e os dois saíram na porrada, terminando com Romário quase quebrando as duas pernas dele. Foi demissão na hora.

Raul e Lucas conseguiram arranjar trabalho em uma fábrica na linha de montagem, mas o emprego, que até que pagava bem e ajudava Raul a sustentar a si e a seu pai, durou pouquíssimo tempo, pois a pandemia veio e o proprietário precisou demitir quase 50% dos funcionários.

Perdeu sua mãe e sua liberdade ao mesmo tempo. Ao sair pela última vez do reformatório, soube que seu pai estava vagabundeando por aí, sem rumo e se embebedando. E, depois de apenas um ano e meio trabalhando, foi despedido e voltou ao mesmo patamar que se encontrava antes de ser preso. Parecia até uma piada que daria uma boa letra de samba. Não tão azarada quanto a do Zé Meningite, mas ainda assim, bem trágica.

 

Pablo Vieira Neves nasceu Rio de Janeiro, onde viveu até os 14 anos. Vive em Varginha-MG, desde então. ​Inspirado em um jogo de videogame chamado Alan Wake, passou a escrever. Escreve desde então por diversão. Publicou em no Wattpad (conta deletada, atualmente), no Recanto das Letras e também publicou em uma feira literária, em Varginha.

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No Twitter: @neves_vieira

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