Nunca foi tão fácil e óbvio escolher um assunto ou a primeira palavra para uma conversa. Ainda mais com você aí deitado, nesse sono profundo. De tudo que ela envolve: Fofocas, ironias, alegorias, elementos de narrativa, tempo, cenário, conflitos e ou personagens, esse é o único ponto que não terei trabalho: o tema e a sensação que vai percorrer todo nosso colóquio. Todavia, debruçar-me sobre minha própria história é o que mais amedronta. Reviver memórias e considerar que o que está estabelecido não é só uma possibilidade. É a realidade mórbida de um futuro que chegou, não o percebi; e, quando me dei conta, nada pude fazer para evitá-lo. Deixe-me fazer as digressões necessárias. Já que você só vai ouvir mesmo, nem vou chamar mais de conversa, vai ser um monólogo.
Lembra-se de quando era pequeno, nos idos e bregas anos oitenta? A sensação de “vai estourar a Terceira Guerra Mundial?”, era a primeira vez que sentia seu destino não guiado por suas mãos. Naquela época não entendia porque nomeavam esse evento como se a continuidade numérica, a sequência não pudesse ser evitada. E, mesmo criança, entendia que os nomes foram criados para facilitar as aulas de história, para situar os eventos. Como a possibilidade era noticiada todos os dias nos periódicos televisivos, menino com a cabeça cheia de ideias e com aguçada criatividade, pensava como poderia viver uma situação horrenda, tal aquela ilustrada nos livros ou representada nos filmes americanos. Foi seu primeiro tormento.
Você não era como Indiana Jones que lutava com nazistas, nem mesmo um Luke Skywalker que explodia a Estrela da Morte. Era um menino. Tudo era alimentado por ecos da Segunda Guerra e profetas do apocalipse propagavam o prenúncio da Terceira. E jornais, revistas, filmes, livros, letras de músicas só faziam alimentar o seu martírio. Você não se sentia livre, seguro. Havia uma insegurança e o pior é que isso era reforçado até mesmo por desenhos animados. Como escapar? Lendo.
Graças a uma tia, você lia muito. Perigos no Mar de Aristides Fraga Lima, seu primeiro livro sem figuras. Lembra-se? E aí iniciou uma grande série de leituras de entretenimento puro: Marcos Rey era seu preferido. Sabe Deus o porquê, depois de ler todos os livros indicados para sua idade, um dia sua tia lhe emprestou 1984 de George Orwell, devia ter uns doze anos. Mais uma vez a sensação de insegurança; nessa época, sua noção de estado totalitário era toda moldada por esse livro. A arte parecia lhe dar lições. Principalmente de como o homem é carregado de barbárie; a civilização era apenas uma casca para disfarçar a sombria e funesta essência do humano. Em sua ânsia de aprender, você lia, mesmo quando a leitura era nauseante.
Houve, então, uma ruptura com a leitura de fruição, talvez motivada por essas leituras duras. A última foi Um Lugar ao Sol de Veríssimo. Angustiava, sufocava. Esse foi o ponto de quebra. Mas como estudava Música, lia livros de teoria musical, história da música, harmonia. Passou a entender o livro como uma ferramenta de aprendizado. Valorizou o livro, deu sentido à sua existência. Era a tecnologia disponível para o pedagogismo que encontrou nas páginas de livros didáticos. “A escrita era o que dividia a história do homem.” Ouviu essa frase e guardou para si. Achava a escrita valiosa, poderosa. Livros eram armas. Quando assistiu, em um filme antigo baseado no livro Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, livros alimentarem fogueiras. Ficou chocado. Tudo era distopia? Tudo era autoritarismo? A angústia de talvez viver essas situações lhe ia e vinha. Essa eterna luta do Bem contra o Mal. E parecia que o Mal sempre era mais forte, sempre encontrava um meio. E o Bem sempre dependendo de uns poucos idealistas. Desarmados, fracos, indefesos. Que se não houvesse um milagre ou um Deus ex Machina, toda sua luta era vã. Mais tarde professores de Língua Portuguesa lhe disseram que isso era culpa do Teatro Grego. E que cineastas, roteiristas e escritores, algumas vezes, com preguiça de pensar em algo novo, se valiam desse recurso.
Todos os dias seguiam assim: com filmes violentos, guerras que se sucediam em noticiários vendendo a ilusão da liberdade. E no fim é isso mesmo: a normalidade é uma ilusão.
Eis que um dia, não me lembro de qual, mas após um movimento na União Soviética, você viu no noticiário que o muro de Berlim caíra. Você notara que naquele momento trocaram Guerra Fria por Perestroika e a Glasnost?, nem lembro-me o que realmente significam essas palavras, mas parece que o mundo estava caminhando para algum lugar mais bonito. Aos doze anos, você respirou muito aliviado. E como. Não haveria mais a tão falada guerra nuclear, seguida de o inverno nuclear, onde o Sol seria tapado pelas cinzas das explosões e toda vida vegetal e animal seriam devastadas. Não mais morreríamos de fome. Esse era o fim proclamado pelas ondas de rádio e TV. Não mais. Caíra o Muro. As nações poderosas eram aliadas.
Acabara a infância. Uma Nova Ordem era avistada ao longe, no horizonte da História.
Em sua adolescência, nos anos noventa você viveu uma época de ouro. Não havia mais o apocalipse nuclear. O perigo agora – pelo menos na ficção – vinha do espaço. Livros sobre conspirações encobrindo avistamentos de óvnis. Seriados de TV. Parecia um remake dos anos cinquenta. Você adorava. Estuda música, dava aulas de violão erudito. Lia revistas sobre ufologia, comportamento, cinema. Livros? Só os de história da música, arte. Nada de deleite, fruição. Só técnica, só para aprender. Foi a sua década de estudo, do surgimento de novos ideais, novos conceitos. De namoradas, viagens, bebedeiras. Ilusões e desilusões amorosas. Uma loucura. Mas havia uma leveza, um otimismo, Não havia mais terror. Decadência e totalitarismo? Apenas em livros cyberpunks que você olhava as capas, mas nunca lia. Conhecia o conceito, mas nem considerava perder tempo lendo. Queria dividir seu tempo em ler para aprender e tocar o mais que pudesse até sentir as pontas dos dedos doerem. Foi intenso. Memórias dignas de guardar na mente.
Mas em onze de setembro de dois mil e um. Tudo voltara ao começo.
Era uma terça-feira, você nunca esqueceu. Um amigo liga para seu telefone e diz: “Corre! Liga a TV! Estão atacando os Estados Unidos”. Você desliga o aparelho telefônico, liga a TV a tempo de ver o segundo avião bater no prédio, fato transmitido ao vivo para o mundo todo. Os jornalistas que apresentavam a notícia impensável, claramente não sabem o que falar. Tamanha era a perplexidade que o silêncio era assustador. Nesse momento a música “The sound of Silence” de Simon e Garfunkel faz total e desolador sentido. Tudo volta. Toda a sensação de angústia. Toda a tristeza de só enxergar incertezas geopolíticas na ameaçadora face do futuro que novamente se avizinhava estava lá, olhando para você. Com aquele meio sorriso de anti-herói. Um personagem cinza. Nem bom nem ruim. Pragmático. Estava lá para realizar um trabalho. Apenas isso. Realizar um trabalho, não importando quão sujo ele fosse.
Nem cinco segundos depois de assistir a cena dantesca, você diz para si: “Pronto! Agora começa a Terceira Guerra Mundial.”.
Mais uma vez essa ameaça, esse terrorismo, esse tom apocalíptico. Em mil novecentos e noventa e nove, apesar do Bug do Milênio e das profecias religiosas, o mundo não acabara. Dera certo. Não havia ameaças reais. Somente as possibilidades que, mesmo assustando um ou outro, não eram tão desgraçadamente nefastas quanto o poder da nuvem de destruição nuclear que, pairava sobre todos, nos anos oitenta. Bom, pelo menos para você, claro.
Era como se cada década tivesse uma característica tão amplamente diferente que você nem mesmo se reconhecia. Não por simples evolutivo crescimento, mas por ter que se adaptar às novas realidades.
E nessa nova década, nesse novo milênio, mais guerras. Não quero nomeá-las. Você sabe de quais estou falando. É a guerra que perpassa todo o assunto de nossa conversa/monólogo. Guerra. Guerra. Agora televisiva, em tempo real. E guerras de narrativas, versões versus fatos. Onde estava a verdade? Época de pós-verdade. Momentos de meta-história. Nada era real. Liberdade? Semiliberdade? Escravidão? Era nessa espiral tormentosa, rascunho de furacão, que você se encontrava. Novas doenças, novos nomes para dores antigas. Depressão, neuras, bipolaridades. Remédios, drogas, coquetéis. Discussões de lugar de fala, liberdade de expressão, costumes, comportamento, cultura instantânea que em instantes perecia. Tudo efêmero, nada perene. Chega.
Em dois mil e dois. Em meio à desgraça global. Você ganha um livro: O Senhor dos Anéis. Ah, Tolkien! Onde você esteve esse tempo todo? Onde você esteve? E Harry Potter! Ah, o escapismo. A fruição voltou. Esqueça o Cyberpunk, a ficção científica. Esqueça a guerra. Não a do Anel. As dos homens, dos políticos.
Você mergulhou nesse universo. E tanta coisa ficou clara. Tantos desenhos, elementos de narração, cenários, jornadas, tudo se ligou. Os jogos de computador, filmes, histórias em quadrinhos, brinquedos! Tudo tinha uma ligação. Você era fruto dessa coisa toda. Em outros tempos era chamado de nerd. Agora era geek. Estrangeirismos. Ora pejorativos ora elogios. Mas não fazia diferença. Você estava empolgado pelas ligações. As referências, as influências. Tudo fez sentido. Esqueceu por muito tempo a sensação que lhe atravessava a alma. Rasgava a esperança. E imergiu nesse mundo de fantasia. Chega de distopias. Até aparecia uma ou outra, mas você, formado, trabalhando, ligou a suspensão da descrença em sua mente e nadou nos oceanos dos mundos criados por esses autores do fantástico. “Deixe que acabem com o mundo, não vivo mais nele”. Quero viver em fluxos de consciência, jornadas de heróis ou heroínas. Deixem as falácias políticas para lá.
A década segue em direção ao seu final e algum profeta da infelicidade, do infortúnio, diz: Segundo os Maias, o mundo acabará em dois mil e doze. Ah, não... Tudo de novo? Nem ligou dessa vez, acostumado aos constantes fins do mundo, preferiu continuar com seus livros e músicas. E o mundo não acabou. A não ser no cinema.
E a vida seguiu. Sobreviveu à profecia Maia. Há uma falsa sensação de segurança. Um torpor, uma anestesia. Entretanto, lembra-se do “não vai ter copa”? Aquelas manifestações que deram um alento ao desejo de existir uma “Primavera Tupiniquim”, como a “Primavera Árabe”? Não houve. Foi só um traque. Depois outro impeachment, alguns gritos de não vai ter golpe. Uma crescente polarização política. Uma nova sensação. A do terror somado à ignorância. Tempos sombrios. Elegemos um Palpatine, só falta dissolver o Senado como o Imperador fez em Star Wars e está feita a imitação da ficção. Porque é assim que você se sente. Sente-se preso nos livros distópicos. A fantasia escapista não lhe salvou. E por fim essa doença. A pandêmica doença que nem nos mais loucos sonhos literários você leu.
E agora, flutuando diante de você, como diante de um reflexo no espelho, olho para os aparelhos ao seu lado e vejo o monitor cardíaco, com uma linha luminosa plana, emitindo um som contínuo. Agora em outro plano, iniciarei uma nova jornada.
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