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Cena 8 – A moça que morava sozinha


Créditos iniciais ou Prefácio para quem preferir.


Uma vez ao andar em um trem turístico, não pude evitar ouvir uma conversa. Ao olhar uma casinha fincada no pé da serra, a senhora sentada no banco em frente ao meu, disse: Olha lá, João! Parece casa de pintura. Daquelas que Odete pinta.

Não sei quem é João, nem Odete. Mas o que seguiu na conversa me deixou encafifado. João, perdido em olhares profundos disse: Ali deve ter história.

Narrativas que se cruzam, histórias que não são contadas. Amores, traições, derrotas, vitórias. Coisas que acabam bem. Novelas sem casamento no final. O herói da profecia que falha, o anti-herói sem redenção. Mortes estúpidas. Vidas gloriosas. Tudo acontece ao nosso redor e nem notamos. Nem tudo tem registro ou sentido. Algumas vezes apenas passamos ao longe e vemos uma moça na janela, um menino na rua, uma manchete de jornal. Não há ligação, mas tudo está ligado. Basta olhar com atenção. Ler atentamente. E olhar cada capítulo da vida como quem olha um álbum de retratos velhos e imagina o antes e o depois do abrir e fechar do obturador. Leia o texto a seguir com esses olhos. Olhar de quem imagina e enxerga além da fotografia. Divirta-se.



Cena 8



A moça que morava sozinha era uma heroína. Pelo menos era assim que sua mãe lhe chamava. Conhecendo sua vida, não teria outro adjetivo mais acabado para definir ou classificar sua incrível capacidade de resiliência e superação. Ela, essa moça a quem me refiro, tornou-se minha razão de viver, mesmo passadas décadas do verdadeiro fim de minha vida. Após esses anos de existência niilista, aparece-me na velhice, um sopro de vida; ardente motivo dos meus sorrisos ao dizer-lhe em manhãs comuns: Bom dia.

Antes de continuar, preciso esclarecer alguns pontos: Há a necessidade de dar nomes, contar histórias – que não serão contadas agora -, aprofundar em minhas lembranças e considerações. Fazer-me íntimo de ti, meu leitor, escancarando minha alma. Esta carta que lhe escrevo jamais será lida. Sim, eu tenho a noção disso. E não me torturarei imaginando qual seria a reação de qualquer um que a lesse. Mas levarei adiante a tarefa e a escreverei. Sublimados os sentimentos de abandono e solidão, que foram assim forjados no decorrer dos anos podres, infelizmente, vividos em flagelo, causados pelas lembranças deformadas que não sei se realmente vivi ou se as criei em meu íntimo para aliviar a escuridão da minha alma amargurada. Tentarei desabafar escrevendo e assim abafá-los em meu coração. Talvez os consiga descrever. Talvez a idade avançada cause essas dúvidas de o sucesso vir ou não. Mas garanto que, no que se refere ao meu passado, fiz tudo ao meu alcance. Fiz tudo que pude para satisfazer as vontades de Iolanda. Mas hoje sinto que poderia ter feito mais. Quando as pessoas se vão no findar dos dias aqui na existência material, quando percebemos a verdadeira importância e descobrimos o quanto o tempo é fluidamente escorrido como areia entre os dedos. No fim, sendo sincero sei que só será uma tentativa. Jamais poderei recriar em textos qualquer sensação que vivi fosse boa ou ruim.

Sempre disse para Dona Guiomar, minha vizinha, que os cachos da moça que morava sozinha, me lembravam dos cachos de Iolanda. E, dando asas a imaginação, pensava que nossa filha poderia, também, parecer ou possuir cachos como os dela. Se algum dia ela tivesse visto a luz, chamaríamos de Violeta. Tal como a flor. Uma vez li que são raríssimos, mas existem olhos dessa cor. Não há vez sequer que não choro lembrando-me do dia em que Deus me abandonou e mandou um médico dizer que eu não seria mais pai ou marido. Alguma coisa relacionada à pressão arterial levou minha mulher. Eclampsia, eu acho. Nome que não ouso falar, nem faço questão de lembrar. A reles menção me maltrata. Durante anos me julguei um covarde por não tirar minha própria vida. Mas o que Iolanda pensaria de mim? Que seria um fraco, um egoísta? E nossa fé? Como responderia isso a Deus? No íntimo de meu coração nem queira saber de Deus. A única prece verdadeira de minha vida, Ele não ouviu. Mas como são as coisas, não é? O tempo me fez acreditar que se há algum Deus, que Ele permita-me ver novamente minha amada Iolanda e que no Paraíso eu encontre Violeta pela primeira vez.

Os anos que se passaram após a partida de meus amores foram tenebrosos, insípidos, sem cor. Minha vida se resumiu a trabalhar e esperar que algum dia minha morte acontecesse. Mas, propositadamente, tentei adiantar alguns anos o fatídico estertor. Houve tempos que bebia assustadoramente, mas a bebida não oferecia muita torpecia. Rapidamente a realidade voltava. Eu tentava me distrair lendo vorazmente. Mas todas as mulheres da ficção literária tinham o rosto e a voz de Iolanda. Então o tempo foi desanuviando a escuridão da dor. O tempo não cura nada. Isso é mentira que falam para aliviar o desespero. O tempo fortalece a saudade. Enrijece a importância e só aumenta a falta que ela me faz. Mas tinha que ser forte. E em uma reviravolta, dessas que o destino nos prega, vem morar em frente a minha casa, uma moça. Dona Guiomar rapidamente ofereceu-lhe amizade e a moça pareceu aceitar de bom grado. Eu, velho que sou, e carcomido pelas perdas não tentei criar laços de afeição, tornar-me amigo. Mas a guardava platonicamente. Não com o amor dos jovens envergonhados pelas incertezas da vida em seu começo. Guardava-a como uma joia em um museu ou em lugar qualquer que estivesse exposta. É-me estranho explicar isso, sem parecer um homem desequilibrado, impulsivo, regido por hormônios e vontades trazidas por instintos quase animalescos. Eu que nunca fui pai, me vi cuidando dela como o pai que seria se Violeta estivesse presente em minha vida.

Não me lembro de quando a moça mudou... Minha lembrança mais antiga é de uma conversa com a Dona Guiomar. Conversa que me constrangeu muito. Malditos preconceitos e ideias concebidas erroneamente influenciadas por estereótipos machistas. Eu, o velho viúvo que olha para a moça recém-chegada nas redondezas. Nojento, mas isso deve ter sido o que a Dona Guiomar pensou. Pelo menos notei doses de veneno em sua frase: “O senhor deveria olhar assim para uma mulher de sua idade.”. Meu Deus que vergonha. E como me defender desse julgamento? Explicando que via nela uma possibilidade de como seria minha filha Violeta? Pois era assim que havia contado os dias até ali: idealizando o crescimento de Violeta. As alegrias da infância; primeiros passos, primeiras palavras, a vida escolar. As dúvidas da adolescência. Cada casal que via andando pelas ruas e com uma menina, me fazia cogitar se assim seria comigo e com Iolanda. Era dolorosa a sensação. Nunca sentia inveja, sentia apenas um vazio. Um dor que aperta a garganta e esmaga o peito. Essas dores da alma são as piores.

A moça me diminui essas dores. Ela era belíssima. Mas não era a forma que me agradava, era a força da bondade que emanava de sua alma. Ela era daquelas pessoas que subvertiam as regras. Uma vitoriosa. Enfim... Ficamos amigos!

Um café já tradicional todo sábado acontecia e era a celebração da nossa amizade. Reuníamo-nos, eu, Dona Guiomar e a Moça, na varanda da cozinha de Dona Guiomar. Era divino. Conversas fluíam caudalosas como um portentoso rio. Assuntos variados. E lembro-me de um que me foi causador de uma reflexão imensa. A nostalgia. Desculpe-me, a moça chamava-se Antônia. Lindo nome. Antônia falava de como nossas conversas eram recheadas de nostalgia. Minha reflexão foi por achar que nostalgia era um sentimento bom, mas havia um tom pejorativo em sua essência. Parafraseando dicionários, nostalgia: Saudades de algo, de um estado, de uma forma de existência que se deixou de ter; desejo de voltar ao passado. Ser nostálgico poderia ser prejudicial. Ainda mais no meu caso, remoer minhas lembranças ruins. Lembrar com saudades de um grande amor, de um momento da vida, de um gosto de fruta colhida no pé. Talvez essas lembranças, essas nostalgias boas, aquelas que aquecem o coração, fizessem bem. Mas minhas lembranças eram marcadas por negatividades, por desventuras. Ser nostálgico com a mulher amada ao lado seria um paraíso. Posso imaginar horas e horas de conversas que teria com Iolanda, me lembrando de coisas de nosso passado. De eventos engraçados, felizes. Viver décadas ao lado de alguém promove essas maravilhas. Mas fui proibido de viver esse sublime sonho. Engraçado. Antônia parecia fazer questão de fazer-me reviver coisas boas. Perguntava-me, e também a Dona Guiomar, de antigamente. Sempre queria saber como eram as embalagens, produtos, a vida. Um dia eu ri quando me lembrei de vidros de achocolatado com tampas de metal. Ela não conseguia conceber a ideia de tudo ser de vidro ou metal. O plástico era coisa do futuro. Dona Guiomar apenas falava: “Vidro não deixa gosto. Muita coisa hoje em dia perdeu o sabor. Tudo tem gosto de plástico.”. E não adiantava falar que era mais prático, mais barato. Dona Guiomar já emendava dizendo: “E não polui. Vidro é areia! Plástico vai ficar ai quando a gente morrer.”. Eu olhava para Antônia como que diria: “Jamais irá convencê-la.”. Antônia sorria e concordava com a vizinha que confeccionava bolos maravilhosos. Claro que a vida hoje é melhor em termos de conforto e qualidade, mas algumas coisas são melhores como eram e acho que nunca vão ser superadas. Coisas como as tarde de café na varanda, as conversas, o cheiro do café filtrado. Eu passei a nos considerar uma família. Dona Guiomar era minha amiga há anos. Viúva também, o marido que era militar reformado, morreu de câncer de estômago. Dona Guiomar resignou-se. Nunca tocava no assunto. Enterrou o marido e os sentimentos. Mas cada um reage de um modo. Eu deixava claro que sofria e muito. Não sei se Dona Guiomar sentia o mesmo, mas era incrivelmente fantástico passar esses momentos a três. Foi como se Deus, Aquele mesmo que não ouviu minhas preces, depois de anos de angústia, resolvesse agora no fim de minha vida, mandar a cura. Jamais minha Iolanda e Violeta seriam substituídas, mas o café de sábado era uma simulação de como poderia ter sido minha vida.

Durante a semana ficava ouvindo as músicas que tocavam no rádio de Antônia. Acabei atualizando minhas preferências. A moça tinha bom gosto. Escutava uma rádio que só tocava músicas de décadas passadas. Mesmo Antônia falando que eram músicas antigas, eu ainda considerava novidades. Devo ter pulado uma década de produção artística-musical. Não queria me embriagar em letras ou melodias que iludiam ouvintes sem cuidado. Algumas letras de música nos fazem acreditar em possibilidades felizes. Mas eu era como o ébrio que perguntava ao Papai Noel se felicidade era brinquedo de papel. Todavia, existia agora a moça de nome Antônia. Como a ação divina é jocosa, quase de mau gosto. Esse Deus de coração de criança que não se preocupa com o tempo dos homens. Nunca pude ver minha filha. Mas décadas depois, já com a dor encravada fundo na alma. Aparece uma moça que em semblante e brilho de alma era como imaginava minha Violeta. Vez ou outra trocava os nomes. Antônia notava, mas não se incomodava. Ela sabia de minha história. E se solidarizava dela. Mas de uma forma tão real e honesta que não me sentia um coitado. Antônia traduzia bem o que eu sentia. Ela era boa com as palavras. Antônia era o chá que aquece o peito em noites frias de inverno rigoroso. Eu brincava com ela: “Não sou seu paciente. O café de sábado vai virar terapia.”. Riamos muito. No fundo ela sabia que me fazia um bem tremendo.

Acredito que já é óbvio. Ao falar dela apenas no passado é de se imaginar que ela se mudou ou outra coisa possa ter acontecido e nos separado. Ainda choro. Cansei de questionar a Deus por Ele sempre levar quem eu amo verdadeiramente. Prefiro pensar que Ele as quer perto dele e que eu estou sozinho para pagar algum pecado ou realizar alguma missão. Quero buscar lógica e razão na minha fé. Seria mais fácil ser fideísta. Mas não sou assim.

Perdi uma esposa, uma filha na aurora da vida e décadas tardias já no fim da minha vida, eu perco outra filha. A heroína, psicóloga recém-formada, morta por um namorado ou quem quer que seja. Nunca quis saber. Choro todos os dias e rezo para o fim não tardar. Mas sempre que perco a esperança, lembro-me de uma frase que Antônia me disse: “Quem sabe no céu, Violeta o espera acompanhada da mãe.”.

É só isso que penso, em um dia vê-las novamente. Não quero viver mais em um mundo onde moças são jogadas da sacada de seus apartamentos por maridos desequilibrados. Ou que moças são esfaqueadas por namorados ciumentos. Eu que tanto amei estou aqui. Sozinho. É triste ver o noticiário falar de crimes contra a mulher com a banalidade de quem somente lê mais uma notícia. Mataram minha Antônia e após lamentos formais, passam a outra notícia.

Agora me resta a saudade de três mulheres que amei. A esposa, a filha pequena e a moça que morava sozinha que adotei e amei como a filha que não vi crescer. A carta que planejei escrever não será publicada em jornal como protesto. Não será lida nos telejornais. Aqui termino meu desabafo. Enterro a dor, a revolta, o inconformismo. Meu grito silencioso, abafado pelas agruras da vida onde pessoas são só dados estatísticos, será gravado nas palavras que uso para traduzir a revolta que sinto. Pena um homem velho não ter voz.

Dessa vez não brigarei com Deus. Irei agradecê-Lo por ao menos aos sábados do limiar de meu tempo agraciar-me com horas de conversas saborosas e risos sinceros de quem eu imaginei ser como uma filha.

Deus!

Obrigado por Antônia. Que na eternidade ela encontre abrigo em seu amor.

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