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Sereia Assassinada

“Da primeira vez em que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que tinha...Depois, de cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha...”

Mário Quintana

Mas, é bem do modo como vemos. Nada lhe faltava não fosse sua resistência. Seu senso de vitória. E se olhasse bem, assim como nós olhamos, ela tinha qualquer traço de madona renascentista. Esses olhos amendoados e entediados. Essa face difícil de ser delineada como uma pintura da renascença descuidada. Esses cabelos de pincel despreocupado de pintor perdido a contemplar sua musa. Sabendo de antemão que jamais conseguirá prender a beleza dela em seu quadro. Ninfa dos rios doces. Sua pele não brilha, queima. Incendeia até por longe. Não se aquietou para ser pintada, nós sabemos. Não tinha interesse na pressa. Sentou-se para descansar talvez, somente para esquecer que os mares revoltosos afogariam marinheiros experientes.

Nós víamos que o sol a contemplava assim como nós e para tanto não houve surpresa. Bem porque só notamos isso depois. O sol deitou-se ali naquelas águas antes de adormecer e dar seu posto a lua, porém antes. Pôs-se ali. A fulminá-la. Havia qualquer tragicidade no ar. Como lençóis levados pelo vento. Era um peso invisível aos olhos que eu desejei não sentir.

O corpo meio sentado meio deitado. Torto. Como numa dança estrangeira congelada. E desde que a vi daquele modo, os ceús despencaram sobre mim. Talvez, até sobre todos.

Porque nós todos íamos por lá despreocupadamente. Caminhando animados. Quando a tarde já caía. E se eu pudesse adivinhar o que eu viria, teria tomado outro caminho. Sem dúvida, teria ido por longe. No entanto, como não se é possível adivinhar o futuro, tomamos a trilha errada, embasbacados pelas marolinhas que o mar lançava na praia. Molhando os nossos pés, trazendo uma sensação de liberdade para num espaço mais afastado darmos de súbito com ela ali apoiada. Naquela rocha ao largo da praia. O mar trouxera? Pois sim. Disso não haveríamos de duvidar. Pelo menos não de início, mas depois acercou-se de nós toda espécie de pensamento. De causas, de soluções daquele enigma. Acercou-se de nós um receio maligno do desconhecido, criatura ou ser humano que a deixou ali jogada com sua beleza de ninfa. Sereia assassinada. E nos surpreendemos ao ver como aquilo poderia ter acontecido. Então, chegou a polícia e nos lançou de volta ao mundo real com suas buzinas e ordens. Com suas perguntas sobre o que estávamos fazendo ali. Por que estávamos ali mesmo? De fato, diríamos.

Diríamos que estávamos a passear naquela praia, contando histórias de um tempo que passou e jamais voltaria. Falando dos nossos amores e desamores. Contando uns aos outros, os nossos planos para depois das férias quando a vida começaria dolorosamente a nos cobrar responsabilidades que ainda não tínhamos. Alana se casaria. Laura faria curso de veterinária porque era louca por animais. Marcus sem dúvida, prestaria vestibulares.

E eu? Bem, meu plano inicial era não planejar nada. Eu sentia um receio de planos, porque os meus sempre se desfizeram. Os meus planos eram mais projetos do que eu não deveria fazer. Mas, vá lá. Não importa mais. Não importava porque nós víamos o sangue que havia escorrido pelos lábios azulados dela e depois vimos a equipe da perícia colocando seu corpo frágil e quebradiço na maca para levá-la para uma sala porcamente iluminada e fria. Para deitá-la numa caixa gelada coberta por um plástico cinza e triste. E as ondas na praia já pareciam mais geladas e indiferentes. E o sol já se escondera. As cores joviais dela morreram junto com o sol.

Nós éramos adultos demais. Laura brincava com seu cachorrinho numa manhã ensolarada quando me confessara seu desejo de se casar assim como Alana faria. E os dias foram passando. Logo, todos nós tínhamos destinos diferentes e para nos despedirmos resolvemos dar um último passeio na praia. Assim, ao entardecer. Muitas pessoas fazem isso. Eu me certifiquei de não envelhecer muito rápido, mas quando a vi ali, morta. Não tenho dúvidas, perdi ao menos 5 anos de juventude. Todos nós perdemos. Uns mais do que os outros. Eu voltei para casa de trem, tentando lembrar onde ficava o meu apartamento. Logo após responder infinitas perguntas de um policial de barba grisalha. Eu olhava todos aqueles desconhecidos no trem. Uns sentados, outros em pé. O viva voz dando informações sobre as estações. São Paulo é uma cidade apressada, mas neste dia eu fiquei lenta, parei de acompanhá-la.

Cheguei ao meu prédio. Subi as escadas até o terceiro andar. Me sentei no sofá castanho acolchoado. As mãos inertes no meio das pernas. Os ombros curvados. Os cabelos soltos atrapalhando a minha visão. Meus lábios ressecados. Meus olhos castanhos. Tudo parecia tão comum. Minha bolsa escorregara do meu ombro e agora estava ao lado do sofá. Coçei a cabeça, amassei o rosto entre as mãos. Um metro e setenta de pura confusão. Pisquei os olhos lentamente. O vento assoprava a cortina branca da minha janela da sala. Porém, era pior do que confusão. Era uma letargia que se apossara de mim. Uma inércia. Uma dificuldade de sair de dentro de si mesma e fazer o que eu sempre fizera. Os serviços dométicos, meu trabalho. Eu estava largada dentro de mim tentando entender como alguém poderia matar uma moça tão bonita. Tentando entender por que ela fora refém daquela violência. Embora eu soubesse que beleza nenhuma isenta ninguém da dor. Mas não consegui me livrar dessas interrogações que nasceram na minha cabeça quando a vi.

Havia alguns dos meus livros jogados sobre a escrivaninha. Um abajur floral desligado. No me quarto, uma cama de solteiro bagunçada. Uma estante à esquerda lotada de livros. Uma cômoda com gavetas grandes que guardavam as minhas roupas. E sobre ela, mais livros. Os dias passaram lentos.

Preparei uma xícara de café bem forte para acordar. Tomei um banho frio. Prendi os cabelos e vesti meu uniforme. Saí pela rua movimentada, me desviando de muitas pessoas apressadas. Tomei o trem. Um homem arruivado lia Clarice Lispector. Tinha feições rústicas, lábios pequenos e olhos amanteigados. Parecia concentrado. Macabeia pode confundir muita gente. Ele segurava no apoio superior do trem com uma mão e com a outra segurava o livro. Eu tentava ler a capa traseira do livro quando ele levantou os olhos e me encarou. Eu sorri de leve. Ele estreitou os olhos e sorriu também. Percebi que pretendia puxar conversa comigo, mas minha estação já chegara. Desci. Enquanto o trem avançava para a próxima estação ele me encarava.

O toque do meu celular me serviu de alerta para voltar ao mundo real. Atendi. O dia amanhecera acinzentado anunciando chuva. Minha chefe pedia que eu terminasse o que ela começara, pois tivera uma emergência familiar. Deu-me as instruções de como deveria proceder. Quando entrei no corredor do trabalho, a porta da sala de autópsia estava entreaberta. Começava uma chuvinha fina. Peguei o formulário, vi as incisões que deveriam ser feitas incluindo uma na artéria carótida que eu não sabia o porquê. A rádio tocava um samba canção da década de oitenta. Realmente, ela acabara de sair. Esqueceu o rádio ligado. A lâmpada do pequeno corredor estava fraca, amarelada. Eu achei melhor desligar o rádio. Não combinava com o barulho da chuvinha lá fora. O formulário estava numa mesinha à minha direita. Mencionava as ferramentas que eu deveria usar. Ao lado do formulário também tinha uma vela e um isqueiro. Eu penso que ela deixou aquela vela para o caso de faltar energia. A chuva ficava mais forte. E o necrotério era escuro mesmo durante o dia. Um relâmpago clareou a janela suja do corredor. Pela fresta da porta, eu via a maca com o corpo. Mas o corpo estava totalmente coberto por um tecido claro. Pelo menos a luz dentro da sala de autópsia era melhor do que a do corredor.

Respirei fundo, deixei minha bolsa sobre a mesinha e trouxe comigo o formulário. Quando entrei na sala. O corpo estava deitado na mesa de autópsia. Coberto. Eu me aproximei da prateleira do outro lado para lavar as mãos e vestir as luvas. Também vesti o jaleco por cima do meu uniforme. Enquanto colocava as luvas de látex eu lembrava do corpo que encontramos na praia. Eu não entendia como aquele corpo na praia me sensibilizara tanto. Eu sou assistente de autópsia há um ano. Vejo cadáveres quase todos os dias. Mas, ela. Ah, eu não sei. Fechei a porta da sala, porque não queria ver o corredor escurecido.

Eu peguei o bisturi na pia e me aproximei da maca. Li a ficha de informações do cadáver. Lia-se: Desconhecida. Um trovão estourou e escureceu a sala. Numa escuridão absoluta eu ouvi duas batidas. Numa fração eterna de segundos, a luz voltou. Senti um calafrio na nuca. A porta estava logo atrás de mim. Então, me virei rapidamente. Continuava fechada. A luz voltou mais fraca pelo que pude notar. Então, abri a porta, mas não havia ninguém. Tornei a fechá-la. O corpo ainda estava coberto, mas percebi que os pés estavam descobertos. Eles estavam descobertos antes? A chuva se transformou numa tempestade. Com o bisturi na mão eu tentava lembrar se os pés do cadáver estavam descobertos antes. Provavelmente estavam. A minha memória nunca foi das melhores.

Para evitar que ficasse um breu total quando as luzes falhassem novamente, eu resolvi trazer a vela do corredor para onde eu estava. Trouxe a vela comigo e fechei novamente a porta. Peguei o formulário para conferir a lista de afazeres e coloquei a vela do outro lado, na pia. Mas, no formulário os quadradinhos da lista já estavam marcados. Estavam marcados antes? Quando estreitei os olhos, percebi que o cadáver ali tinha nome. Valentina Soares. Talvez, eu estivesse com a lista errada, mas onde estava a lista que eu tinha visto antes? Talvez, eu tivesse pegado a prancheta errada. Passei os olhos pela sala. Não tinha nenhuma outra prancheta. Eu pensei que pudesse estar no corredor. Mas quando me aproximei da porta ouvi uns passos. Um relâmpago clareou a sala. O silêncio pesou. Por isso ouvi nitidamente os passos. Vinham firmes. Depois pararam. Eu aguçei a audição. Eu queria encontrar logo o formulário certo para prosseguir com a autópsia e sair dali. Por que eu não abri a porta? Estava assustada. Se fosse a minha chefe ela abriria a porta. E me chamaria. Mas, os passos pararam. Eu fiquei com a sensação de não estar sozinha. No entanto, não tive coragem de abrir a porta. Então, o trovão estremeceu e as luzes apagaram novamente. Mas, a vela permaneceu acesa. Depois do susto eu fiquei feliz por ter trazido a vela e fui em direção a ela na pia do outro lado. Se fosse como da primeira vez, as luzes voltariam rapidamente. Infelizmente, o resto da sala ficou entre as sombras e o amarelo encardido da luz da vela. As luzes não voltaram. Aproximei a vela da lâmpada, mas ela continuava apagada. Os relâmpagos clareavam momentaneamente quando olhei pela janela. Porém, ouvi um barulho arrastado e me voltei depressa. A perna direita do cadáver estava descoberta. Sim. E não estava antes. Eu lembro de ter decorado como ele estava depois do episódio dos pés descobertos. Não estava assim. Eu sei que não. A luz da vela tremia, pois eu tremia.

A chuva continuava a cair maldosamente do lado de fora, e os relâmpagos cortavam os céus. Eu resolvi que já estava mais do que na hora de sair dali. Eu diria a minha chefe que passei mal e tive que voltar para casa. Devagar, afastei-me ao máximo da maca e dei a volta até a porta. Toquei no trinco, mas não abria. Voltei a olhar o cadáver...Tentei novamente a porta e não abriu. Me desesperei. Pela escuridão, pelo relâmpago e pelo cadáver agora parcialmente descoberto. Somente o tronco, a cabeça e o estômago estavam cobertos. As pernas estão totalmente descobertas. Puxei o trinco violentamente com a mão direita. Com a esquerda eu segurava a vela. Comecei a suar frio e nesse momento bati na porta. O barulho foi altíssimo. Quebrou o silêncio mortuário da sala. Eu pensei em gritar, mas não tive coragem. A voz não saía. Presa na garganta. Meu coração a cavalgar dentro do peito. Um bate bate enlouquecido. A chuva torrencial. O trovão. O relâmpago lançando flashs de luz no cadáver. O corpo que se mexia. Uma mão cadavérica afastando o lençol do resto do corpo. Minha voz não saía. Minha angústia aumentava. Eu esmurrava a porta, mas acredito que os trovões abafavam minhas batidas. Então, o cadáver colocou as pernas para fora da maca, infelizmente do meu lado. Ela se sentou na maca e me encarou. Os olhos vazios. Sem cor. Seu tórax estava aberto ainda. A caixa torácica era visível por baixo da carne sangrenta quando os relâmpagos clareavam. Parte do interior de sua garganta estava exposta. E meu café da manhã queria voltar pela minha garganta. Eu não consegui controlar minha tremedeira e derrubei a vela. E naquela saleta sufocante e escura, quando a vela escapou das minhas mãos, caiu no chão e apagou-se. A luz daquela vela levou com ela a minha sanidade, pois eu vi. Juro que aquela coisa sentada na maca era a moça assassinada na praia. Na escuridão total salva apenas pela luz piscantes dos relâmpagos, ela me disse com a voz arrastada:

─ Aaachoo..que eu lembro...de vooocê....


 

Sobre a Autora:

J. Brandão (ou Josiene Brandão Campos) é alagoana, atualmente radicada em São Paulo. Escreve por hábito, terapia e gosto. É amante da leitura desde a adolescência e louca por animais desde sempre.

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